Violência «com sentido» e violência «gratuita»
Wolfgang Salewski; Peter Lanz
A Nova Violência – e como enfrentá-la
Lisboa, Ed.Livros do Brasil, 1978
Excertos adaptados
«O direito do mais forte é a mais forte injustiça»
Marie von Ebner-Eschenbach
Marie von Ebner-Eschenbach
Ainda não foi há muito tempo que lemos, na obra mestra da criminologia alemã (Ernst Seeljg, Lehrbuch der Kriminologie, 2ª Ed. Nürenberg, Düsseldorf, 1951), o seguinte:
Nas cidades europeias, pelo contrário, quase não se dão assaltos à mão armada a casas de comércio e bancos, enquanto que, na América, essa maneira de agir se tornou no modo mais generalizado de acção dos bandos dos gangsters (o Hold-up). Um outro método dos gangsters, disseminado na América, é o rapto de pessoas com vista ao resgate (o Kidnapping), que veio a transformar-se quase num novo desporto, principalmente depois do rapto e assassínio do bebé do grande aviador Lindbergh, o primeiro a atravessar sozinho o Atlântico Norte (1932).
Aquilo que então era quase inimaginável na Europa, é hoje em dia, na Alemanha, uma actividade diária, como o demonstram os assaltos a bancos e a tomada de reféns. Os autores desta nova violência são muitas vezes levados por motivos diferentes dos dos kidnappers; mas servem-se dos mesmos métodos. A nova violência apanhou-nos de surpresa e temos dificuldade de a compreender. Chegou aliada a uma brutalidade mais forte do que os delitos até agora usuais. Basta-nos contemplar a crónica dos últimos anos para verificarmos como as inibições de ferir outras pessoas ou até de matá-las decresceram constantemente. Observemos alguns números provenientes da República Federal da Alemanha. Desde 1967 que o crime de roubo cresceu mais de duzentos por cento, nos casos de assaltos a bancos e estações de correio e ainda a lojas. A Polícia teve de registar, entre 1972 e 1976, um recrudescimento de mais de sessenta por cento. Em 1976, na República Federal da Alemanha, foi cometido “um assalto de meia em meia hora”, num total de 19 466 roubos. Proporcionalmente, a maré de criminosos aumentava para o dobro do crescimento normal da população. Acções de terror fizeram cem mortos e feridos. Em média, anualmente, eram destruídas vinte e uma mil cabinas telefónicas. Só no ano de 1976 a Polícia registou, nos seus processos, dois mil casos em que pessoas foram feridas com armas de fogo. Num período de doze meses, lamentaram-se setenta e duas vítimas da fúria de disparos com armas de fogo.
Estupefactas, as pessoas reagem contra a violência crescente: seiscentos milhões de marcos são todos os anos empregues na instalação de sistemas de alarme. O número daqueles que possuem armas de fogo, sem licença para isso, só muito dificilmente pode ser avaliado: situa-se no campo sombrio dos vinte e cinco a trinta milhões. Porém, o certo é que essas pessoas que adquiriram esses milhões de pistolas, revólveres ou espingardas, as compraram nalgum sítio. Há duas possibilidades de chegar a essas armas: pode comprar-se a arma no estrangeiro (como, segundo alguns cálculos, o fazem, por ano, cinco mil turistas e viajantes em negócios), ou adquirem-se no mercado negro. No caso da compra no mercado negro, fecha-se o círculo, porque é grande a possibilidade de que nele se tenha comprado uma arma roubada. Seja como for, o que se sabe é que em 1876 trocaram de donos 3145 armas de fogo roubadas.
Ao mesmo tempo entra em acção um novo círculo diabólico: a arma, concebida para assustar, tem de ser experimentada. Vejamos um caso dos últimos tempos. Certa manhã, em Wetzlar, cidade com cerca de 37 000 habitantes junto do rio Lahn, o dirigente da companhia de electricidade local conduziu o seu carro para o parque de estacionamento, em frente do seu local de trabalho. Infelizmente, porém, não levou o carro para o local que lhe estava destinado, mas para um outro, reservado a um serralheiro da mesma companhia. O presumível atrevimento do director da companhia enraiveceu de tal modo o serralheiro que, no decorrer da discussão, este pegou na pistola que sempre trazia consigo, e feriu imediatamente o seu opositor, com quatro tiros mortais.
A cerca de quinhentos quilómetros de Wetzlar, em Munique, deu-se um caso semelhante no dia 5 de Fevereiro de 1977. Por volta das dezanove horas e quinze, um empregado do comércio de 53 anos, Josef B., atravessou a estrada para Pelkoven (esquina da Rua Jakob), em Hagenbuch, no bairro de Moosach. Atravessou, segundo as regras, pela passadeira, e foi quase atingido pelo automóvel do mecânico de 29 anos, Rüdiger H.. Furioso, o peão desferiu um golpe, com um saco de plástico que levava na mão, no guarda-lamas do carro, fazendo-lhe uma pequena mossa. E continuou o seu caminho, sem se voltar para trás. O outro ouvira a pancada, parou, desceu e deu a volta ao automóvel. Quando viu que Josef B. se afastava, correu atrás dele e segurou-o pela manga do casaco, para o obrigar a explicar-se. Josef B. soltou-se-lhe das mãos, deu alguns passos atrás, tirou uma pistola da algibeira e disparou alguns tiros sobre o condutor do automóvel. Rüdiger H. ficou gravemente ferido e, alguns dias mais tarde, Josef B. foi preso pela Polícia. De um momento para o outro, nos dois casos descritos, vê-se que a arma que se destinava à defesa se transforma numa arma de ataque.
Acontecimentos como estes provocam uma outra reacção altamente inquietante: mesmo até entre os que não estão envolvidos nasce, involuntariamente, o desejo de possuírem uma arma de fogo, quando chegam à conclusão de que outras pessoas transportam armas. Segue-se a ideia de que «também tenho de possuir uma arma, para poder defender-me de eventuais agressores». É por isso que se encontram constantemente passageiros de avião que procuram levar armas consigo para sua própria defesa. Só no aeroporto de Düsseldorf a Polícia surpreendeu, de Janeiro a Setembro de 1977, noventa e três homens e mulheres que transportavam, nas suas bagagens, armas letais. Em Hamburgo, no mesmo espaço de tempo, foram contados vinte e seis passageiros; em Colónia, dez; em Berlim, quatro e em Hannover, três. Ao todo, os passageiros procuraram levar consigo, num ano, cerca de vinte mil armas e objectos contundentes, como facas, machados, bengalas de ferro, e até explosivos; isto apenas em aeroportos da Alemanha Federal, antes do início da viagem.
A necessidade de desmontar a violência, enquanto se encosta os outros à parede, provoca uma reacção contrária e faz com que a violência entre numa escalada. O voluntário ou involuntário desrespeito das leis demonstrado pelos assaltantes parece justificar a própria indiferença que os restantes cidadãos manifestam. Desconfia-se da protecção do Estado, e todos querem agir por conta própria. Isto é, para uma pessoa se defender do perigo, torna-se perigosa e coloca-se, assim, ainda mais em perigo.
Na República Federal da Alemanha a revista juvenil Bravo inquiriu os seus leitores acerca do tema da violência. 120 000 jovens, rapazes e raparigas, responderam, no Outono de 1977, a um questionário cujas trinta perguntas foram examinadas por um computador. E aí se demonstrou quão forte é o impulso da juventude para a violência. À pergunta «Podeis imaginar ter de empregar a violência física contra outras pessoas?», só responderam com «não» 13,5 por cento de raparigas e 8 por cento de rapazes. Todos os outros confessaram exercer a violência de vez em quando, fosse por necessidade de defesa, fosse porque tivessem sido provocados por outros, por terem bebido, por não aceitarem a opinião política de outrem ou, simplesmente «porque sou agressivo» (foi assim que se confessaram 4 por cento de raparigas e quase 5 por cento de rapazes). Os jovens, assim o demonstra o inquérito, não dirigem a sua violência apenas contra os outros, mas até contra si próprios. Uma em cada duas raparigas já pensara uma ou mais vezes no suicídio: 4,3 por cento das raparigas já tinha tentado matar-se; 0,9 por cento das raparigas e 0,9 por cento dos rapazes já tinham cometido várias tentativas de suicídio. E de novo nos aparece o grupo etário, entre os 18 e os 20 anos, como especialmente ameaçado. 17,7 por cento das raparigas nessa idade confessaram já terem atentado contra a vida.
Nesse questionário também se demonstra que os rapazes são mais predispostos a resolverem os seus problemas por intermédio da agressividade (55,3 por cento dos rapazes responderam nunca na vida terem pensado em suicídio; e é por isso que mais de metade dos rapazes reage com violência contra os outros que os provocam), enquanto as raparigas preferem fugir de casa. Isto também pode ser confirmado pelas estatísticas dos departamentos juvenis da República Federal. Todos os anos desaparecem, na Alemanha, vinte mil raparigas e dez mil rapazes. A maior parte deles são de novo apanhados, mas tentam também novamente fugir de casa. A maior parte das raparigas que foge de casa tem uma idade compreendida entre os 12 e os 18 anos.
Tem de se enfrentar a nova violência com novos métodos e novas soluções. O que significa que devemos desistir dos princípios de vingança e de ameaça sobre os que atentam contra a lei, pensando, sim, em novos métodos para solucionar o problema. Para encontrá‑los, teremos de descobrir qual a evolução errada que se processa na nossa sociedade e como esta está na base da nova violência.
A Münchner Abendzeitung informou, em Dezembro de 1977, num artigo de duas colunas, com o título «O silêncio das vítimas enfurece os malfeitores», o seguinte:
Um caso horrendo de brutalidade e perversidade teve lugar no domingo à noite no centro de Munique. Quatro jovens arruaceiros assaltaram três rapazitos de quinze e dezasseis anos, atiraram-nos ao chão e esfaquearam-nos. As vítimas eram surdos-mudos. Os três rapazes voltavam de um passeio de domingo e dirigiam-se para o seu Lar nas proximidades da Praça Goethe. Pouco depois das vinte e duas horas, atravessaram o velho Jardim Botânico na Rua Elisa, quando, de súbito, surgiram “dos arbustos, quatro jovens vestidos à maneira dos rockers, que lhes cortaram o caminho e lhes dirigiram insultos.” Dado que os surdos-mudos não podiam obviamente compreendê-los, tentaram a fuga, mas foram depressa agarrados pelos díscolos. Presumivelmente os malfeitores interpretaram como cobardia o silêncio dos atacados, dado que os seus insultos começaram a ser cada vez mais contundentes, descambando finalmente em pancada. Quando os assaltados tentaram defender-se, brilharam as facas. E de facas em riste, os malfeitores atiraram-se às suas vítimas, ferindo um na mão, enquanto ao outro lhe cortaram a pele das costas, de alto a baixo. Foi devido a ter-se aproximado gente que os assaltantes interromperam a sua agressão. Desapareceram na escuridão.
Embora a Polícia tenha iniciado imediatamente buscas, os malfeitores conseguiram fugir sem deixar rasto. O autor que escreveu este artigo enganou-se num ponto decisivo. Os malandros que atacaram os surdos-mudos não consideraram o seu mutismo como cobardia mas como agressividade. A essa presumível agressividade reagiram como lhes tinha sido inculcado: com violência! O caso dos surdos-mudos mostra-nos, com toda a clareza, quais as formas que a agressividade pode tomar. Porque quem não comunica também procede, aos olhos dos outros, em certas circunstâncias, com agressividade. Uma discussão que não podia ser resolvida pelos surdos-mudos de outra maneira que não fosse através do mutismo e de fuga, é muitas vezes resolvida pelos pais, todos os dias, perante os filhos, da mesmíssima maneira. Aqueles calam-se e afastam-se. As crianças sentem isso como um acto de agressividade, o que é compreensível porque também nós nos sentimos provocados quando, numa discussão factual, deparamos, de súbito, com o mutismo do nosso interlocutor. Quem tiver a intenção de discutir com alguém, espera compreensão e resposta. Se estas são negadas, cresce a agressividade.
Os pais têm aparentemente bons motivos para provocar os filhos através da desatenção e da falta de diálogo. Têm de ir para o trabalho, têm de ganhar dinheiro, estão cansados. À pergunta: “Por que motivo têm de ir trabalhar”, aparece prontamente uma resposta muito lógica e natural: “O nosso filho deverá ter um dia uma vida muito melhor do que nós.” Mas, analisando com maior acuidade, isto é uma grande asneira: na medida em que os pais não dedicam aos filhos tempo para lhes prestar atenção, negam-lhes o caminho para um futuro feliz. E não importa que queiram suprir essa falta com meios materiais. O fenómeno de já não falarmos uns com os outros não se limita a pais e filhos. É um mal do nosso tempo e um pesado erro da nossa sociedade.
De Mark Twain, conta-se a seguinte história verídica: o escritor e satírico americano chegou, certa vez, demasiado tarde a um jantar para o qual tinha sido convidado. Quando a dona da casa, distraída pela organização do banquete e pelo grupo de ilustres convidados, lhe deu as boas-vindas, Twain pediu desculpa pelo seu atraso com as seguintes palavras: “Tem de desculpar-me por ter chegado só agora, minha querida senhora, mas tive necessidade de matar a minha velha tia antes de vir.” E a dona da casa respondeu-lhe: “Claro que lhe perdoo, caro mestre, isso por vezes acontece.” Assim, superficialmente, a história pode provocar o riso. Mas, se pensarmos um pouco, podemos ser invadidos pelo medo. O que há cem anos Mark Twain quis tratar como uma graça tornou-se hoje numa triste verdade. Trocam-se argumentos sem, de facto, se entrar em contacto uns com os outros. Falamos, sem dúvida, mais do que outrora. Os meios técnicos de comunicação tornam possível as pessoas falarem umas com as outras, em quase todos os pontos do mundo. Com o auxílio de cabos submarinos e satélites transpõem-se os oceanos. No entanto, compreendemo-nos cada vez menos.
Os nossos próximos conseguem ser muito mais do que um mero espelho de nós mesmos, da nossa alma. Permitem também a cura espiritual. Para explicar melhor, basta-nos apontar um exemplo muito simples. Um terapeuta que procure tratar um comportamento humano errado, não o faz que não seja através da fala. Fala em privado com o seu paciente e procura desenterrar as raízes dos seus problemas. Ou, então, vários pacientes tentam, entre si, auxiliar-se nas terapias de grupo, sob a orientação de um terapeuta. Possivelmente, embora cada homem saiba, enquanto adulto, o significado de uma conversa, a verdade é que não se deixa convencer por ela. Porque não falamos “directamente” do coração.
Pelo contrário, há cada vez mais pessoas que sentem o desejo de se isolar, de viverem numa ilha deserta, para se sentirem felizes, sem os seus entes mais próximos. Estes sonhos de muitos milhares, se não milhões de pessoas, uma vez realizados, transformam-se numa pura desilusão. O isolamento, a solidão egoísta, não são uma finalidade digna de ser procurada pelo homem, mas sim um castigo. Os tribunais aplicam ainda hoje uma forma especial de castigo: o isolamento prisional. Ao delinquente, não só é negado o acesso ao trabalho, mas também o de conviver com outras pessoas. Aquilo que, por lei, é reconhecido em diversos países como um castigo draconiano, é o que, hoje em dia, já costumamos fazer em liberdade. Retiramo-nos para dentro de nós próprios, e privamo-nos, assim, da possibilidade de, em conversa com outras pessoas, nos libertarmos de um enorme peso sentimental. À pessoa madura é possível, mas só até um certo grau, substituir a falta de comunicação com as outras pessoas. Pode fazê-lo por meios especiais, dentro de uma profissão, ou através de um extraordinário envolvimento social.
Nas crianças e nos jovens, tudo é diferente. Sentem a contradição entre o sentimento e a possibilidade de lhe dar expressão, e sentem-no com muito mais força. Evidentemente que, devido à sua experiência e ao convívio com outras pessoas, se conseguem adaptar uns aos outros. No entanto, o mal-estar perdura. As consequências estão à vista: desvios de comportamento, quer sejam o roer das unhas e “descuidos” na cama, gaguez, emagrecimento inexplicável, más digestões e enfermidades do estômago. Uma criança, entre cinco, na República Federal, pode ser incluída neste caso. Este panorama foi reconhecido por diversos psicólogos e atesta já graves desvios de comportamento. Uma criança, entre dez que frequentam a escola, tem dificuldade de contactos, é surpreendida em mentiras, ou em pequenos roubos. Completamente isentos de defeitos psíquicos, assim o calcularam os especialistas, só se encontram cinquenta por cento dos alunos da República Federal. Da impossibilidade de comunicar sentimentos podem, porém, nascer: a fúria súbita, a raiva, a agressividade – marcas infantis que apontam veementemente para um futuro desvio para a violência.
Os pais não ajudam as crianças a encontrar a sua identidade
No melhor dos casos, a busca da identidade não se opera sem sofrimento. Por exemplo, um rapaz de 15 anos quer “medir-se” com o pai. Mas, nessa idade, o rapaz é ainda muito fraco para entrar em disputas com o pai. O que, na verdade, sente, compele-o a um processo de construção de uma imagem inimiga, cujas piores características exagera. Para o rapaz, o pai já não é a autoridade, aquele sobre o qual não teve dúvidas durante os primeiros anos; agora é o inimigo. O super-homem do passado manifesta falhas que são alvo de crítica. Na realidade, pode suster-se essa evolução, na medida em que se fale abertamente, sobretudo com a criança em crescimento. Porém, como os pais não dedicam tempo suficiente à família, os erros inevitáveis crescem desmesuradamente, aumentando as possibilidades de a criança só ver erros no seu educador. Erros que já não conseguem ser corrigidos na imagem padrão. A isto junta-se ainda o facto de, para os crescidos, muito do que é reconhecido negativamente pelas crianças não ser considerado acção incorrecta. Quando os pais não têm tempo para a família, há motivações que são consideradas pertinentes pela sociedade que pode, inclusivamente, louvá-los.
Analisemos dois casos extremos. Num deles, o pai de uma menina tem o tempo continuamente ocupado. Trabalha como guarda-livros de uma grande firma. Faz horas extraordinárias, só volta para casa quando a filha já dorme e, nos fins-de-semana, assiste a aulas de reciclagem, ou toma parte em conferências de negócios. Quando a criança vê o pai, o que acontece raramente e por acaso, fica logo de mau humor e ensonada. Mas o pai ganha muito dinheiro e, todos os anos, a família pode adquirir um automóvel novo. No outro caso, o pai de uma outra menina, também se demora no emprego. É pastor da Igreja Evangélica e encontra-se dia e noite ao dispor dos seus paroquianos. Nos fins-de-semana, lecciona cursos de Bíblia. Quando a criança consegue ver o pai fica de mau humor e ensonada. Mas o pastor sacrifica-se pelos outros. A nossa sociedade dá diferentes valores aos dois «sacrifícios». No primeiro dos casos, houve um certo desprezo pela família unicamente devido ao dinheiro. No outro caso, porém, o auto-sacrifício tem alto valor moral. É um sacrifício por outras pessoas à custa da própria família. Esse sacrifício é totalmente reconhecido pela sociedade. É um bom sacrifício.
As crianças, porém, não vêem as coisas sob esse prisma. Nem sequer compreendem o que se passa na sua verdadeira dimensão; não percebem que, graças ao trabalho do pai, todos os anos podem viajar num automóvel novo, nem sequer apreciam o sacrifício do pastor, que deve ser-lhes dedicado a elas, crianças. As crianças vivem ambos os casos de «ausência» com infelicidade, independentemente da noção de que essa «ausência» tenha sido dedicada aos crentes, doentes, pobres, ou ao êxito na profissão. Assim se esclarece também a contradição entre a família “intacta” para o exterior (cujo chefe se encontra ao serviço dos outros e age perante o reconhecimento da sociedade) e a força destruidora que se cria nessa mesma família.
Em resumo: com o desenvolvimento do consciente, a criança inicia a busca de um papel na vida. Essa procura da identificação é apoiada com conversas por parte da família; então os pais dedicam certa compreensão à criança, conseguindo, assim, ultrapassar os anos difíceis, sem muitas perturbações. Mas se as conversas forem substituídas por ameaças, dogmas e refreamentos de contacto, dificulta-se à criança a sua identificação tornando-a impossível. Entramos assim no caminho de uma melhor compreensão da nova violência, dando um passo decisivo: um dos factores deflagradores da nova violência é a comprovação de que o portador dessa violência não conseguiu encontrar a sua identidade.