A bomba está entre nós
Hubert Reeves
A hora do deslumbramento. Terá o universo um sentido?
Lisboa, Ed. Gradiva, 1991
Excertos adaptados
A bomba está entre nós
Da minha janela vejo o pôr-do-sol sobre a cidade. As vidraças reflectem-lhe a luz dourada sobre as ruas já ensombradas. Entre as bancadas do mercado, onde se alinham frutos e legumes, as pessoas discutem, compram e abalam com os cestos bem cheios.
Ao observar esta vida calma e pacífica, como pensar na ameaça que pesa sobre ela? Armazenadas nos silos nucleares, 30 000 bombas atómicas estão prontas a saltar em poucos minutos. Uma única bastaria para aniquilar uma cidade inteira, deixando de ponta a ponta uma imensa cratera vítrea como as que se vêem na Lua.
Mil milhões de mortos, mil milhões de feridos graves, tal é o cálculo das vítimas imediatas de um conflito nuclear generalizado, mas os efeitos a longo prazo seriam ainda mais aterradores, porque os sobreviventes lamentariam não terem sucumbido prontamente. Segundo as melhores estimativas, milhões de toneladas de poeiras e fuligem, dispersas na atmosfera, mergulhariam grande parte da superfície terrestre numa noite de vários meses e o calor solar deixaria de atingir o solo. A temperatura desceria por toda a parte e manter-se‑ia algumas dezenas de graus abaixo de zero, provocando, assim, o inverno nuclear...
Depois disto, tempestades de grande violência disseminariam nos dois hemisférios substâncias tóxicas cujo teor radioactivo neutralizaria as defesas imunológicas de pessoas e animais. A agricultura, os cuidados médicos, os transportes públicos, seriam reduzidos a nada. A fome, o frio, as epidemias, poderiam, segundo alguns, provocar a extinção do género humano. (Estes cálculos e previsões têm sido contestados. O grau de incerteza é grande, mas não exclui o extermínio da nossa espécie).
Como chegámos a isto? Por que aceitámos este cavalo de Tróia dentro das nossas muralhas? Por que espécie de perversidade fomos levados a construir, nós próprios, os instrumentos da nossa destruição? Porquê, em vez de nos livrarmos delas, damos em cada ano, a essas armas, uma potência maior, uma precisão mais mortífera?
Este primeiro capítulo é uma reflexão sobre um tema entristecedor: a Humanidade faz tudo o que pode (e ainda mais) para chegar o mais depressa possível à sua autodestruição.
O advento da bomba é melhor contado no estilo das grandes epopeias mitológicas do que no tom frio e impessoal da história contemporânea; a linguagem épica revela de modo mais eficaz a verdadeira dimensão dos trunfos em jogo.
Longe de não ser mais do que uma crendice, cuja falsidade se demonstrou, o mito, tradicionalmente, é uma maneira de transmitir sabedoria e arte de viver. Não se trata de saber se é verdadeiro ou falso, mas sim de medir a sua eficácia como técnica de ensino.
O mito de um ser do além que incarna e irrompe no nosso mundo surge com frequência nos escritos tradicionais. Precursores, profetas, grandes sacerdotes e sacerdotisas anunciam e preparam a sua vinda.
De todas as divindades, a bomba é, sem dúvida, a mais despótica, a mais cruelmente exigente. Como vestais romanas, os seus discípulos consagram-se inteiramente ao seu serviço. Sentido do dever, competência, eficácia, honestidade científica, todas as qualidades que se exigem aos melhores são indispensáveis para levar a bom termo os trabalhos que o seu nascimento implica.
A bomba não tolerará nenhuma lentidão, nenhuma fraqueza, nenhuma infidelidade, e os que quiserem deixá-la arrepender-se-ão. Sem demora serão substituídos por outros adoradores mais zelosos ainda, os quais, em grande número, esperam com impaciência a ocasião de a servir.
Em menos de dez anos a bomba atómica passa do estado de especulação pura ao de realidade aterradora, gerada por uma das mais prodigiosas concentrações de matéria cinzenta da história humana. Em 1942, em Los Alamos, vila perdida no deserto do Novo México, reúnem‑se os melhores cientistas do planeta: físicos, matemáticos, químicos.
O exército americano instala lá um super-laboratório, onde todos os meios são postos à disposição dos investigadores. O ambiente é de alta tensão, trabalha-se noite e dia, sem quaisquer férias. O parto é longo e difícil. A bomba manifesta-se pela primeira vez em Julho de 1945, em Alamogordo, também no Novo México. Pouco depois revela a sua verdadeira face, com o aniquilamento de duas cidades japonesas: Hiroxima e Nagasáqui. Em alguns segundos dezenas de milhares de pessoas passam, literalmente, ao estado gasoso. No total, mais de 150 000 vítimas.
A bomba ganha em potência. No atol de Bikini, nas neves siberianas de Nova Zembla, atingirá o equivalente a dezenas de milhões de toneladas de dinamite. E ela prolifera: mais de 30 000, segundo as últimas notícias, encontram-se disseminadas nos arsenais do planeta.
Instaladas sobre engenhos balísticas de assustadora precisão, várias de entre elas são‑nos destinadas e têm o doce nome de Paris, outras chamam-se Nova Iorque, Moscovo, Pequim. Para os técnicos que todos os dias as mantêm e acariciam, Paris é, antes do mais, o nome de um dos seus belos engenhos.
Mas voltemos à génese do armamento nuclear. Os primeiros rumores sobre a possibilidade de fabricar uma super-bomba, dita atómica, começam a circular no mundo científico alguns anos antes da Segunda Guerra Mundial.
É o despontar da era nuclear. Pressentem-se então as propriedades explosivas do urânio, cujo átomo, radioactivo, se quebra facilmente, com emissão de energia. Um bloco de mineral de urânio liberta continuamente calor. Para o sentir basta tocar-lhe com a mão. Em cada instante, no interior do bloco, dá-se a fissão de milhões de núcleos.
Pode-se acelerar artificialmente esta fissão submetendo os átomos a um fluxo de neutrões. Ao absorver um neutrão, o átomo de urânio torna-se muito mais vulnerável à fissão e cinde-se rapidamente, emitindo numerosos neutrões. Daí a possibilidade de uma reacção em cadeia.
Um núcleo de urânio absorve um neutrão, cinde-se, emite neutrões, imediatamente absorvidos pelos átomos vizinhos, que se cindem por sua vez, etc.
As energias libertadas por cada uma destas fissões somam-se e podem atingir proporções gigantescas. Donde a ideia de uma bomba. Um quilo de urânio liberta, assim, mais calor do que mil toneladas de dinamite. Quanto basta para devastar uma pequena cidade. Uma tonelada de urânio fará desaparecer do mapa a maior das cidades do planeta.
Mas naquela época ninguém sabe se o projecto é realizável. As dificuldades técnicas parecem inultrapassáveis; a maior parte dos cientistas mantém-se céptica. Um projecto utópico, a remeter para as prateleiras do esquecimento, juntamente com o «movimento perpétuo» e a «máquina de viajar no tempo».
«Um conto de dormir em pé», dizia Ernest Rutherford, um dos maiores físicos do nosso século.
No seu livro Os Grandes Momentos da Humanidade, Stefan Zweig descreve certos acontecimentos históricos (os gansos do Capitólio, a escrita do Messias de Händel, etc.) que, mau-grado a sua curta duração e, por vezes, a sua aparência anódina, influenciaram profundamente os destinos da Humanidade.
Gostaria de acrescentar um acontecimento à colecção de Zweig. Estamos em Londres em 1935. Um cientista judeu húngaro, recém-chegado de Budapeste, aluga um quarto num hotel e transforma imediatamente a casa de banho em laboratório. Na água da banheira mergulha pequenas fontes radioactivas, subtraídas à universidade onde ensinava e transportadas em segredo na bagagem. Chama-se Leo Szilard e encontra-se submetido a uma viva agitação.
Acredita firmemente na possibilidade de libertar a energia dos átomos e espera executar rapidamente as manipulações requeridas para o conseguir.
Não o impulsiona somente o entusiasmo por um projecto fantástico; sobre as implicações do eventual êxito da sua tarefa há um olhar lúcido. Szilard sabe da ameaça que pesaria sobre o destino da Humanidade caso conseguisse fabricar uma bomba atómica. «A Humanidade corre para a sua perda», repetiria ele mais tarde, à medida que as dificuldades se aplanavam.
Mas ao mesmo tempo sente-se aterrorizado pela amplitude que o movimento nazi vem assumindo desde há alguns anos. Por causa da subida do anti-semitismo abandonara a sua cadeira na Universidade de Budapeste e fugira do continente. São-lhe evidentes as intenções guerreiras de Hitler, a barbárie que ameaça a Europa.
Ei-lo, refugiado político sem laboratório, inclinado sobre a sua banheira de hotel, obcecado pela ideia de que é preciso, por qualquer preço, desenvolver a bomba e ganhar a corrida contra os físicos alemães ao serviço do nazismo.
Em 1935 Leo Szilard suporta sozinho a carga de angústia que emana da bomba ainda nos limbos. A maior parte dos seus colegas não acredita nela.
Mas a bomba não tardará a impor-se. A pouco e pouco, acabará por fascinar toda uma geração de físicos e engenheiros, a quem, como a Szilard, inspirará alguns sentimentos contraditórios: a excitação ante as forças a libertar, a consciência do risco mortal que ela importa, mas também a necessidade imperiosa, em face da conjuntura política, de acelerar, por todos os meios, o seu nascimento.
Em 1935, um rumor; em 1986, uma realidade terrível. Os historiadores que, após um eventual cataclismo nuclear, desejarem narrar as suas etapas preliminares, citarão Los Alamos como um dos lugares altos dessa preparação. Na logística do grande golpe contra a Humanidade, este laboratório terá assumido um papel-chave.
Na película The Day after Trinity são entrevistados vários participantes, tanto sobre o seu papel como sobre os seus estados de alma ao longo de todos estes anos. Ao mesmo tempo emocionante e instrutivo, o filme propõe abundante matéria à nossa reflexão.
O Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, divulgou a imagem do cientista atómico, paranóico genial, obcecado por engenhos cada vez mais destruidores. Se esta representação não é sempre destituída de fundamento (alguns quiseram ver nela o retrato de Edward Teller, outro refugiado húngaro, grandemente responsável pela bomba H), decerto não se aplica à maioria dos artesãos do «projecto Manhattan» (nome secreto da operação atómica de Los Alamos).
Estudante na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, no fim dos anos cinquenta, conheci, pessoalmente, vários dos responsáveis deste projecto. Todos eram ardentes pacifistas, activos oponentes ao maccartismo, esse anticomunismo primário que, na época, se comprazia em exercer sevícias a torto e a direito.
Hans Bethe dirigiu a secção teórica do projecto Manhattan de 1943 a 1946. De origem judia alemã, fugira da Europa alguns anos antes. «É uma das mais belas ofertas da Alemanha nazi aos Estados Unidos», dizia-se dele. Já antes da guerra o classificavam entre os melhores físicos nucleares.
Muito jovem, tinha resolvido um problema secular: o da fonte de energia do Sol. Em 1938, com alguns colaboradores, demonstrou que o coração das estrelas era palco de reacções nucleares, cuja energia era mais do que suficiente para explicar a luminosidade das estrelas. Este trabalho valeu-lhe o prémio Nobel em 1967.
Estou ainda a vê-lo, alto, digno e sereno, percorrendo a largas passadas os corredores do Rockfeller Hall, edifício do departamento de física da universidade, rodeado por um cenáculo de jovens investigadores.
Nas conferências semanais daquele departamento sentava-se no fundo da sala e prosseguia os seus trabalhos, aparentando não dar nenhuma atenção às discussões que se desencadeavam entre os assistentes. Todavia, quando a situação se obscurecia, ouvíamo-lo tossir gravemente. Seguia-se um longo silêncio; depois, em algumas frases, dissipavam-se as brumas, tudo se tornava luminoso. Creio que tínhamos por ele uma verdadeira veneração.
A cada um dos estudantes do laboratório dava uma atenção amigável e exigente. Com regularidade, vinha até nós e, fingindo querer saber apenas as novidades, acabava por nos submeter a um interrogatório cerrado sobre o andamento dos nossos trabalhos. A sua passagem criava muita apreensão: «Fulano está com o mestre, vi-os pela janela. Cheira-me que as coisas não vão lá muito bem». Mas apreciávamos muito os seus conselhos, o seu olhar sobre os nossos trabalhos. Deixávamo-nos levar pelo seu vigor e rigor e aceitávamos, de boa mente, as suas normas de excelência.
Consciente da responsabilidade do cientista, consagrou, depois de Los Alamos, uma parte importante da sua actividade a opor-se à escalada nuclear, argumentando que só o diálogo entre as partes adversas, só a união ao nível político e humano, podiam afastar a ameaça de guerra. Membro do conselho científico do presidente dos Estados Unidos, a ele ficámos a dever a interdição dos ensaios nucleares na atmosfera, decidida em 1963.
Nunca cheguei a saber exactamente qual o papel que Robert Wilson desempenhou em Los Alamos, mas sem dúvida que se ocupou das experiências. Durante os meus estudos em Cornell, partilhava ele com Hans Bethe a direcção do Newman Nuclear Laboratory. Tanto quanto Bethe se nos impunha pela gravidade da sua atitude, assim Wilson era directo e jovial. Durante as suas aulas não perdia ocasião de implicar com os físicos teóricos, afogados em equações. Com ele tudo era simples, claro e eficaz.
Wilson é o homem dos aceleradores de partículas. Depois de ter construído o betatrão de Cornell, dirigiu no Fermi Laboratory, de Chicago, um dos maiores aceleradores actuais, comparável ao CERN, de Genebra.
Apaixonado pela arquitectura, tinha particular afeição pelas construções do período gótico, de que falava muitas vezes, com competência e calor. Para ele os aceleradores gigantes são, de certo modo, as catedrais dos nossos dias. Wilson tem pelo seu trabalho o fervor de um artesão medieval.
Quero apresentar-vos agora Philip Morrison, sem dúvida o meu preferido. Impossível perder um curso, uma conferência pública de Morrison. Era o grande espectáculo. Ouço ainda o seu passo claudicante para o estrado, revejo os seus gestos um pouco patéticos para se instalar e o seu belo sorriso inteligente, um nadinha malicioso.
A exposição arrancava a todo o vapor, as ideias encadeavam-se numa torrente inspirada, pontuada de truculência e de entusiasmo irresistíveis. A mistura, sabiamente doseada, de rigor lógico, de arrebatamentos líricos e de piadas insolentes contra as «instituições», mergulhava-nos num estado de êxtase, de que se emergia a custo. Queríamos sempre mais... Um dos seus números favoritos começava por uma iniciação às maravilhas das técnicas de telecomunicações, para terminar por uma sátira contundente à inépcia das mensagens veiculadas pelas ondas.
Posto na lista negra das autoridades americanas por causa das suas simpatias de esquerda, foi-lhe cortado, durante os anos cinquenta, todo o acesso aos documentos secretos da defesa nacional. Nessa época, o seu telefone estava ligado a um posto de escuta e o seu correio era sistematicamente aberto.
Facecioso, criou um método de detecção das explosões nucleares (pelo seu reflexo sobre a face escura da Lua), de que enviou uma memória a Washington. Aterrorizados, os funcionários lembram-lhe as interdições de que é objecto. «Se não o querem, a quem me sugerem que o envie?».
Havia ainda Richard Feynman, preocupado com a filosofia e os problemas religiosos. Almoçava muitas vezes com os estudantes. Sentíamo-nos fascinados por esta personagem genial, que fazia física, como jogava bongo.
Não conheci Robert Oppenheimer. Segundo a opinião geral, era um ser de excepção. Além do seu perfeito domínio da física, possuía uma vasta cultura literária e filosófica. Sentia-se tão à vontade no domínio das mitologias hindus como no da literatura francesa medieval. Antes da guerra não dava muita importância aos acontecimentos da política internacional.
Mas ninguém, sobretudo um judeu, pode desinteressar-se da política no início dos anos quarenta. Em todas as frentes Hitler triunfa. A sua ambição é sem limites, os exércitos alemães invadem a Europa, subjugando populações inteiras. Os campos de extermínio multiplicam-se. A nova ordem que se vai impondo ameaça a própria civilização, é o retorno à barbárie e, para os judeus, a morte a curto prazo.
Por acréscimo, certos rumores deixam entender que os nazis se interessam pela bomba atómica... Sabemos agora que os Alemães tentaram, efectivamente, desenvolver o armamento nuclear. Mas não foram muito longe. Para Hitler, o cientista era mais útil na frente de batalha do que no laboratório. Felizmente! Uma bomba atómica alemã teria mudado o curso da história.
Nessa época opera-se uma aliança simultaneamente espantosa e significativa. O exército americano confia o projecto nuclear ao general Groves, um militar de carreira, cabeçudo, da extrema-direita, alérgico aos intelectuais e liberais.
Para seu colaborador científico principal chama Oppenheimer. Estas duas personagens, na aparência, o mais incompatíveis possível, vão trabalhar em estreita colaboração durante anos.
As vitórias alemãs, os campos de extermínio de judeus, estimulam e dinamizam a equipa de Los Alamos. No plano moral, a situação é límpida: não é hora para hesitações e escrúpulos. É preciso fabricar a bomba. E depressa. Creio que, se então tivesse a idade necessária e me tivessem convidado, ter-me-ia lançado com entusiasmo nesta aventura, com o sentimento exaltante de participar na salvação da civilização.
Em 8 de Maio de 1945 os exércitos alemães capitulam. É a vitória das forças aliadas na Europa. No Pacífico, os Japoneses resistem ainda, mas, com toda a evidência, a guerra está perdida também para eles. A bomba atómica não está ainda pronta.
Como se reage em Los Alamos? Mais tarde Bob Wilson dirá: «Nesse dia devia ter devolvido o meu distintivo, fechado o laboratório para nunca mais lá pôr os pés. Por que não o fiz? Nunca consegui compreendê-lo. É, em toda a minha vida, o que mais lastimo».
A hipótese de uma interrupção dos trabalhos é timidamente evocada por numerosos cientistas, mas sobretudo por descargo de consciência. Ninguém, em verdade, acredita nisso. O clima psicológico não é propício.
Sem dúvida, os argumentos a favor da bomba existem ainda, mas de uma forma singularmente enfraquecida. Já não se trata de salvar a civilização, mas apenas de poupar as despesas da invasão do território japonês, poupando, assim, alguns milhões de soldados e civis. Mais vale sacrificar uma centena de milhar de japoneses...
É bom em termos contabilísticos, mas de uma contabilidade a curto prazo, porque, a longo prazo, seria necessário ter em conta as centenas de milhões de mortes que uma futura guerra nuclear poderia ocasionar. «Cá estou, cá fico», diz a bomba.
Isto conduz-nos ao ponto crucial da nossa discussão: será a bomba inevitável? Suponhamos que, se se tivesse nesse momento decidido fechar a loja, queimar os documentos, destruir as instalações, porque os Russos já se interessavam pela bomba, cedo ou tarde os Americanos seriam forçados a retomar os trabalhos.
Como um paquete navegando a toda a velocidade, o projecto, dirá mais tarde Oppenheimer, era irresistivelmente empurrado pelo seu próprio impulso. «Quando se nos depara a possibilidade de cometer a proeza técnica, baixamos a cabeça, e atiramo-nos para a frente, sem perguntar o que nos convirá fazer, uma vez concluída a tarefa. Assim aconteceu com a bomba atómica». Senhora de todos os argumentos, a bomba atómica não sofreu nunca qualquer atraso.
Os trabalhos prosseguiram sem interrupção e a bomba de ensaio explodiu no Novo México no Verão de 1945.
Desde esse momento pôs-se a questão do futuro da bomba. Será preciso usá-la? Em que condições? Uns propõem que se convidem os generais inimigos para um novo ensaio no mesmo local, com o fito de os impressionar. Outros pensam que é necessário fazer explodir a bomba sobre território japonês, mas numa região desabitada.
«Ora bolas para os escrúpulos», dizem os falcões de então, «devastemos com firmeza cidades não bombardeadas até aqui, para melhor podermos avaliar a extensão das destruições». É este ponto de vista que triunfa. Depois de Hiroxima e Nagasáqui, os Japoneses pedem a paz.
Como terá Hans Bethe vivido estes acontecimentos? «À partida estávamos muito inquietos. O engenho funcionaria? Quando recebemos as notícias do êxito, ficámos, primeiro, descansados, para depois mergulharmos no horror. Que foi que fizemos? Que foi que fizemos?» Desde esse instante data a sua decisão, nunca posta em dúvida, de se opor ao prosseguimento dos ensaios nucleares.
«Em Los Alamos não reflectíamos», dirá ele mais tarde, «o trabalho absorvia-nos inteiramente. Era preciso terminá-lo. Penso que, uma vez iniciado, o movimento continuou à custa do seu próprio embalo».
Philip Morrison procedeu à última inspecção da bomba na ilha de Tinian, justamente antes da partida para Hiroxima. Na universidade falava livremente, retomando o argumento oficial dos milhões de vítimas que teria custado o desembarque no Japão. Mas sentíamo-lo preocupado, muito mais do que desejava mostrar.
Quanto a Bob Wilson, a sua mulher conta que no dia de Hiroxima regressou a casa aos vómitos. «E ainda vomito todas as vezes que penso nisso», acrescenta ele.
Sobre o estado de alma dos cientistas de Los Alamos, Oppenheimer dirá mais tarde, com grande lucidez – e aborrecimento de muitos –, que os físicos conheceram o pecado.
Libertar a energia das estrelas é, como fez Prometeu, arrancar o fogo do céu. É a Natureza controlada, domesticada, dominada, como nunca antes na história dos homens. O físico torna-se demiurgo.
É fácil imaginar a exaltação no momento da primeira explosão. Oppenheimer conta como, nesse mesmo instante, lhe vêm à memória as palavras de Krishna no Mahabharata (um dos livros sagrados da tradição hindu). São versos de ressonância profética:
Os raios de um milhão de sóis
Resplandecendo num só golpe no céu,
Assim será o esplendor do Todo-Poderoso.
Tornei-me a morte,
O destruidor do universo.
No seu livro Disturbing the Universe, o físico Freeman Dyson fala, com justeza, do «pacto faustiano». Tal como Fausto aceita o pacto de Mefistófeles, os físicos aliam-se ao exército para ascenderem a um nível superior da ciência e do poderio. Mas, enquanto Fausto suporta sozinho as consequências do seu gesto, o peso das experiências de Los Alamos cai sobre a Humanidade inteira.
Assim será o esplendor do Todo-Poderoso.
Tornei-me a morte,
O destruidor do universo.
No seu livro Disturbing the Universe, o físico Freeman Dyson fala, com justeza, do «pacto faustiano». Tal como Fausto aceita o pacto de Mefistófeles, os físicos aliam-se ao exército para ascenderem a um nível superior da ciência e do poderio. Mas, enquanto Fausto suporta sozinho as consequências do seu gesto, o peso das experiências de Los Alamos cai sobre a Humanidade inteira.
O mito de Prometeu tem duas faces. A primeira remete-nos para Fausto: a embriaguez do saber e do poder. A segunda é messiânica: Prometeu, benfeitor da Humanidade.
O mito da «força benevolente» é uma imagem intemporal, um desses arquétipos profundamente gravados na psique humana e que vem regularmente ao de cima na literatura mundial. É Gilgamesh entre os Assírios, Sansão para os Judeus, Hércules na Grécia antiga e, mais próximo de nós, o Super-Homem, Tarzan ou Zorro. O poder que vem em socorro das boas causas, da viúva e do órfão.
No mesmo espírito, Oppenheimer evocará outra passagem do Mahabharata, um acontecimento da vida de Xiva, o criador dos mundos, mas também o destruidor universal, quando os tempos chegam ao fim. Xiva tenta trazer à razão um reizinho despótico e quezilento. Como os seus conselhos de nada servem para lhe instilar um receio salutar, Xiva metamorfoseia-se e enverga os terríveis trajes de destruidor dos mundos. «Cada um de nós em Los Alamos foi influenciado, nesse momento ou noutro qualquer, por uma imagem análoga», acrescenta Oppenheimer.
«Esperamos que o poder quase ilimitado que vai nascer nos nossos laboratórios sirva para paralisar as más intenções e para impor aos humanos uma conduta razoável. Oferecemos à Humanidade uma arma que, nas mãos das Nações Unidas, se tornará uma garantia de paz». Estas palavras, segundo Oppenheimer, sustentavam os investigadores nas horas de dúvidas e escrúpulos. «Quem ama castiga», diz o provérbio, mas é preciso um chicote.
Ainda na mesma via, o financeiro americano Bernard Baruch apresentará, alguns anos mais tarde, um projecto de acordo soviético-americano no qual se pede que as Nações Unidas criem um arsenal atómico para castigar toda a nação que, tendo reconhecido a nova agência, ousasse infringir as suas regras. O projecto foi rejeitado por unanimidade...
Quem quer que duvide do poder dos mitos, tem de considerar o espectáculo extraordinário ao qual assistimos aqui: uma imagética mítica que durante anos alimentou o fervor e apaziguou a consciência desta elite da inteligência mundial.
Ilusão... A sucessão de ocorrências ilustrou abundantemente a vaidade desta esperança. A «força» nunca foi «benevolente». A bomba é uma arma como as outras, se bem que infinitamente mais poderosa.
Mais tarde, a linguagem mítica retorna, mas o mito provincializa-se. Truman espera que a América guarde, para sempre, o exclusivismo deste «depósito sagrado» que lhe foi confiado quase por direito divino. Em 1948 pergunta a Oppenheimer: «Quando serão os Russos capazes de fabricar uma bomba atómica?». «Não faço a menor ideia». «Pois eu sei!» «Quando?». «Nunca!», responde Truman, seguro dos seus apoios celestes. Três anos mais tarde um engenho nuclear explodia na União Soviética...
Por igual religiosamente inspirado, o senador Brian McMahon afirma, depois da capitulação, que o bombardeamento do Japão é o maior acontecimento da história do mundo desde o nascimento de Jesus Cristo. E acrescenta: «Os Estados Unidos devem manter-se à cabeça na corrida aos armamentos, porque, se por infelicidade a URSS os apanha, este poderio ilimitado nas mãos das forças do mal só poderá conduzir à destruição total».
Depois da guerra santa contra o nazismo, a guerra santa contra o comunismo. A bomba, decididamente, tem muita sorte, todos os trunfos no seu jogo. Num ritmo infernal, desenvolve-se, aperfeiçoa-se, arranja descendência. Os arsenais enchem-se. E quem faz ouvir a voz da razão?
A actividade de Niels Bohr, o pai da física quântica, para travar o processo infernal é, sem dúvida, uma das passagens mais emocionantes desta história sombria. «É da máxima urgência», dizia ele antes mesmo de a bomba estar pronta, «pôr Estaline ao corrente. Na ausência deste gesto de confiança e boa vontade, será impossível mais tarde estabelecer um controle internacional da energia nuclear. E teremos direito», predizia ele correctamente, «à escalada do terror».
Durante vários meses Bohr tentou, em vão, avistar-se com os dirigentes da época. Finalmente, Churchill concedeu-lhe uma rápida entrevista... na presença de outro convidado. Escutou distraidamente a petição de Bohr, depois voltou-se para o outro visitante para falar de um assunto completamente diferente. «Posso escrever-lhe?», perguntou Bohr, desesperado. «Sim, na condição de não me falar mais de política». Mais tarde Churchill dirá: «Nunca gostei desse sujeito cabeludo, que queria revelar os nossos segredos aos Russos. Era melhor tê-lo debaixo de olho».
Com Roosevelt, apesar de mais afável, o resultado será o mesmo. A bomba atómica para os Aliados é uma arma de poder, e não uma força benevolente. E isto desde 1943, muito tempo antes da sua concretização.
A pedido de Leo Szilard, Albert Einstein contactou duas vezes com o governo americano. Quando em 1939 quis interessar Roosevelt pelo projecto atómico, foi recebido favoravelmente. Quando, a seguir à vitória sobre a Alemanha, os dois físicos quiseram opor-se ao prosseguimento do projecto Manhattan, a Casa Branca fez ouvidos moucos.
Um outro físico inglês, o Dr. Blackett, vencedor do prémio Nobel, apresentou ao primeiro-ministro Attlee, sucessor de Churchill, uma memória contra a continuação do armamento nuclear da Inglaterra. Foi acolhido com rudeza e brutalidade. «O autor, um cientista distinto, fala de problemas políticos e militares de que nada sabe». Para assinalar o facto, Blackett foi excluído da comissão de defesa nacional.
Contrariamente ao mundo científico, o mundo político parece ter ficado impermeável ao mito da «força benevolente».
Inclinado sobre a banheira do hotel em Londres, em 1935, Leo Szilard é, de certa maneira, o anunciador da deusa bomba. O general Graves e Robert Oppenheimer, enfeitiçados por filtros bem diferentes, mas igualmente eficazes, são os seus grandes sacerdotes.
Quando Groves escuta «o apelo da bomba», todo ele se desunha a construir depósitos de artilharia. Como verdadeiro soldado, só sonha com a glória militar. «O ministro da guerra designou‑vos para uma missão da mais alta importância. Se a desempenhardes correctamente, a guerra está ganha».
Nomeado general-de-brigada, Groves passa imediatamente à acção. Organiza o transporte das suas «tropas» – os melhores cientistas da época, entre os quais alguns prémios Nobel – para um canto perdido do Novo México. Quer que eles vistam o uniforme do exército americano, façam a saudação militar e fiquem sujeitos ao segredo mais completo. Para sua grande decepção, as três exigências são-lhe recusadas.
Groves espumará de raiva ao saber que alguns cientistas manifestaram oposição ao lançamento da bomba sobre cidades japonesas. Numa memória intitulada «Tratamento reservado aos investigadores científicos indesejáveis», escreveu que «o projecto Manhattan foi prejudicado logo à partida pela presença de certos homens de ciência de uma discrição aproximativa e de uma lealdade duvidosa».
Ao aproximar-se a vitória na Europa, fará circular uma nota de acordo com a sua devoção à causa: «Aconselha-se a que se encarem desde já programas educativos para o pessoal, os quais sublinharão a importância de manter os trabalhos e a necessidade de acelerar o seu ritmo a seguir ao dia da vitória, tomando o Japão como objectivo final. O pessoal receberá instruções no sentido de evitar perdas de tempo a celebrar a vitória sobre a Alemanha com festejos inconsiderados».
Mas a bomba não tem pátria, está acima das nações, só deve fidelidade a si mesma. O erro de Groves foi pensar e propagar a ideia de que os Russos seriam incapazes de fabricar bombas atómicas. Embriagado pelo triunfo, convencido da superioridade absoluta da América, Groves redigirá um relatório técnico sobre o projecto Manhattan, uma espécie de «fanfarronada US», distribuído em numerosos exemplares e que os engenheiros soviéticos muito apreciaram e exploraram em seu proveito.
Não se lhe perdoou a proeza. O seu zelo intempestivo tornou-o indesejável e foi substituído por homens mais modestos, discretos e competentes. A sua carreira terminou, a bomba vai continuar sem ele.
Oppenheimer é uma personagem de tragédia, o seu fim será muito mais dramático. Consagrando a maior parte da sua carreira ao desenvolvimento do armamento nuclear, será «queimado» logo que manifesta algumas reservas. A propósito, rememoro as palavras de uma canção de Edith Piaf: «A vida dá-vos todas as hipóteses, para as anular em seguida».
Desde a infância que Robert Oppenheimer é um «pequeno génio». Aos 12 anos apresenta uma comunicação à Academia de Ciências de Nova Iorque sobre os seus trabalhos em geologia.
«Nunca encontrei ninguém tão rápido a captar um raciocínio», dirá mais tarde Hans Bethe, que conhecia muito bem a matéria. «Em alguns segundos ele refaz interiormente o trajecto que nós levámos horas a percorrer».
Este espírito subtil, familiarizado com as altas esferas da abstracção, logrou levar a bom termo o projecto eminentemente concreto de dirigir um laboratório com várias centenas de pessoas e de fabricar, num tempo recorde, um engenho atómico. Isto ilustra bem os dons extraordinários com que a Natureza o dotara. Acrescentemos, para maior exactidão, a sua grande cultura literária e artística, bem como os talentos culinários, fortemente apreciados pelos colegas.
Oppenheimer é a pessoa designada para enfrentar o desafio faustiano da conjuntura política: dar à luz a bomba atómica. Ganhará a parada e será elevado ao vértice da glória. Depois da guerra residirá em Washington, onde as potências mundiais dão às suas palavras a maior consideração. Enquanto milita a favor da bomba, a sua vida roça pelo sonho e as honras chovem sobre ele.
O seu destino inflecte-se quando começa a manifestar reticências, objecções de consciência, dúvidas morais. Militares e cientistas não lhe perdoarão o ter penetrado nas suas motivações profundas. Se, para os soldados, a bomba utiliza o filtro da glória militar, é o filtro do poder que é servido aos cientistas, juntamente com o das boas intenções.
Quando Oppenheimer insiste em obter isótopos para aplicação médica, é considerado suspeito de pretender leiloar segredos atómicos. Mas sobretudo será censurada a sua oposição à prioridade concedida à estratégia dos bombardeamentos nucleares maciços. Contra ele será montado um processo odioso; o seu passado será vasculhado. A queda será brutal, com a exclusão da comissão de defesa e a proibição de acesso a todo o material científico correspondente. Nunca mais recuperará. As últimas imagens do filme The Day after Trinity mostram-no abatido, precocemente envelhecido, uma sombra de si mesmo.
Apesar da sua oposição ao prosseguimento da escalada nuclear, Hans Bethe não sofrerá uma sorte tão cruel. Contudo, passa a ser objecto das críticas acerbas por parte dos jovens lobos da corrida aos armamentos. «O senhor estava cheio de entusiasmo no momento em que se fabricava a bomba atómica, apesar da oposição dos seus antecessores, que a julgavam irrealizável. Portanto, agora acabe com esses sermões e deixe-nos aproveitar as nossas possibilidades». Este discurso dá-nos a medida exacta do nível de reflexão ética e de responsabilidade moral dos novos trabalhadores do armamento nuclear. Quem falará mais eloquentemente da potência dos filtros da bomba?
A bomba americana nasceu num transporte eufórico de zelo e entusiasmo. A bomba soviética apareceu no terror, sob a vigilância das metralhadoras.
Não foi sem razão que Truman duvidou da possibilidade deste engenho nuclear russo. Os Alemães tinham devastado o país, que se transformara num imenso campo de ruínas. Para levarem até ao fim o seu projecto, os Estados Unidos tiveram de usar a fundo a sua formidável infra-estrutura industrial e técnica. Comparando a situação económica dos dois países nessa época, é caso para efectivamente perguntar como conseguiu Estaline que o seu projecto triunfasse.
Sabemo-lo hoje. Apesar do estado exangue do território, a bomba, fiel a si própria, ganha aos pontos à reestruturação social. Utiliza-se a mão-de-obra gratuita dos goulags. Em condições por vezes medonhas, centenas de milhares de operários trabalham dia e noite sob a ameaça das espingardas.
As instalações são montadas a toda a pressa, sem respeito pelas condições de segurança. Um engenheiro alemão falará mais tarde de «condições criminosas». Aos riscos de incêndio e de inundações junta-se a certeza das irradiações.
Em 1947, a explosão de um depósito de dinamite provoca 70 mortos e 170 feridos. Nada afrouxa a cadência de trabalho. Mesmo os físicos são submetidos ao terror. «Que teria acontecido se não tivéssemos conseguido?», escreverá um deles à família. «Teríamos sido simplesmente fuzilados». O destino do físico soviético Sakharov tem analogias com o de Oppenheimer. Pioneiro da bomba de hidrogénio, menino bonito das autoridades militares durante vários anos, as perseguições de que é hoje objecto relacionam-se com a sua oposição às explosões nucleares atmosféricas. Kruchtchev nunca lhe perdoou.
E em França? Aproveitando as fraquezas da IV República e as mudanças frequentes de governo, a bomba francesa será obra de um pequeno número de tecnocratas, sem licença oficial do parlamento e, sobretudo, na ausência completa de discussões democráticas. Quando explode, em 1960, contentar-se-ão em a... homologar. Sem vergonha, o seu «desenvolvimento» pesa sobre a nação, deixando recordações pungentes. A última, em data, chama-se... Greenpeace.
Em Inglaterra, Churchill, conhecido pelo seu temperamento autoritário, chega ao poder em 1951 e nunca conseguirá compreender como, sob o governo socialista precedente, puderam os engenheiros ingleses gastar um milhão de libras para a bomba, sem que alguma vez o parlamento tivesse ouvido falar dela.
A maldição é que a bomba tem todos os trunfos no seu jogo: Bob Wilson mencionava «o impulso irresistível do poderio tecnológico associado à máquina burocrática» quando procurava compreender por que é que a capitulação da Alemanha nazi não provocara a interrupção dos trabalhos.
Acrescentemos o pavor paranóico e a histeria causados pela bomba russa, que, na opinião dos especialistas, «nunca devia ter causado um tal pânico». Os falcões passam por cima de tudo e aproveitam todas as circunstâncias sem se preocuparem com as responsabilidades políticas.
«Ao longo da história atómica as decisões são sempre apresentadas ao público como inelutáveis. Contudo, nunca as iniciativas pessoais, os temores histéricos e os entusiasmos passageiros terão, neste ponto, ditado o curso da história mundial.», escreveram Pringle e Spiegelman... em Les barons de l’atome, um livro cuja leitura nunca me cansarei de recomendar.
Num autor chamado Peter Sloterdisk encontrei este belo texto, completamente em harmonia com as páginas precedentes: «Perfeita, soberana, indiferente, a bomba atómica é o verdadeiro buda do Ocidente. Imóvel, repousa no seu silo: actualidade pura e pura potencialidade. É a encarnação das energias cósmicas e a participação dos homens nessas energias; é a obra-prima da espécie humana e a exterminadora desta espécie; é o triunfo da racionalidade técnica e a dissolução na paranóia...
Não é mais viciosa do que a realidade, nem mais destruidora do que nós. Ela é, muito justamente, o reflexo do que nós somos e a expressão materializada dos nossos modos de agir.
Mais do que considerações estratégicas, é um profundo exame que temos de fazer em relação à bomba. Ela não requer nem luta nem resignação, mas a experiência de nós próprios. Nós somos ela».
Depois dos Estados Unidos, a União Soviética, a França e a Inglaterra, a China e a Índia fabricaram e fizeram explodir engenhos termonucleares. Cinco outros países encontram-se em excelente posição nesta corrida: a Argentina, o Brasil, Israel, o Paquistão e a União Sul-‑Africana. Embora não possuam ainda um arsenal atómico completo, estas nações deram já grandes passos nesse sentido.
Há alguns anos foi assinado por vários governos um tratado de não proliferação, o qual, por razões diversas, tem sido largamente contestado. Duas nações do clube nuclear, a França e a China, recusaram-se a assiná-lo, no que foram compreensivelmente imitadas pela maior parte dos países desejosos de obter a bomba.
Corremos o risco de esquecer, ao mitificar a bomba, ao ver nela a encarnação de um ser diabólico, que ela tem antepassados notórios. É a última de uma série de armas mortíferas criadas pela imaginação fértil dos homens durante toda a sua história.
Desde a mais alta antiguidade, todas as invenções, todas as energias novas, são sistematicamente usadas para fins guerreiros. Dardos, flechas, fogos, cavalos, juntam-se ao arsenal dos exércitos em conflito. Lucrécio, o nosso «correspondente romano», dá-nos disso um testemunho eloquente: «Aprendeu-se a domar os cavalos, a dirigi-los com um freio e a montá-‑los. Em seguida, tentou-se combater num carro puxado por dois cavalos, mais tarde, por quatro. Depois vieram os carros armados de foices cortantes, em seguida os Cartagineses domesticaram elefantes e treinaram-nos para a guerra.
Assim, a cruel discórdia inventou armas cada vez mais mortíferas e aumentou em cada dia os horrores da guerra».
Escrito há mais de dois mil anos, este texto é para nós rico de ensinamentos. A última frase podia ter sido escrita ontem mesmo. Apesar do acréscimo prodigioso de conhecimentos, apesar dos progressos tecnológicos, a alma humana mantém-se resolutamente fiel às suas tradições. E esse é que é o problema.
Os elefantes de Aníbal ameaçavam somente as legiões romanas. A pólvora de canhão, a dinamite, aumentam consideravelmente os destroços. Com a energia nuclear, a «cruel discórdia» pode pensar a sério na eliminação da espécie humana.
Mal adaptado, porque com excessivas garantias, nefasto ao equilíbrio do planeta, será o ser humano, em definitivo, um erro da Natureza?
Avaliam-se em mais de um milhão as espécies vegetais e animais que vivem actualmente na Terra. O total de espécies aparecidas no decurso da evolução biológica atingirá os dez milhões. No entanto, nove em cada dez desapareceram.
Nenhuma espécie é sagrada. Cada uma surge do jogo da Natureza, do acaso das mutações biológicas. Para durar precisa de arranjar um nicho, estabelecer um comportamento de trocas, receber e dar, inserir-se num ecossistema. Caso contrário, a eliminação é inexorável.
Há sessenta e cinco milhões de anos, os dinossauros, os fetos gigantes, os amonites, desaparecem bruscamente da superfície terrestre. Sobre a causa desta catástrofe não dispomos de certezas. Pode ter sido a chegada súbita e importante de materiais extraterrestres (meteorito gigante ou nuvem interestelar). Segundo toda a probabilidade, estes seres não foram responsáveis pelo seu desaparecimento. A Natureza não lhes pediu a opinião. Mas o ser humano, se chegar a sua vez de desaparecer, não poderá senão culpar-se a si próprio. Nada nos ameaça além do que nós provocamos.
A destruição nuclear da Humanidade poderia arrastar a eliminação de uma fracção importante – mesmo a totalidade – das espécies animais e vegetais. Se o arsenal não é ainda suficiente para causar esta hecatombe, não demorará muito a sê-lo. De novo temos de saudar a eficácia da inteligência humana. Importa aqui reconhecer o papel pouco invejável desempenhado pela nossa cultura ocidental. Se o grau de civilização de um grupo humano se mede pela harmonia das suas relações com o meio ambiente, a nossa quota é a mais baixa. Tomo por testemunho estas palavras desgostosas de um velho índio do meu país: «Os brancos riem-se da terra, do gamo ou do urso. Quando nós, índios, os caçamos, comemos toda a carne; quando procuramos raízes, fazemos pequenos buracos; quando queimamos a erva, por causa dos gafanhotos, não arruinamos tudo. Sacudimos as glandes e as pinhas das árvores. Só utilizamos a madeira morta.
Mas o homem branco revira o solo, abate as árvores, destrói tudo. A árvore diz: «Pára, estou ferida, não me faças mal». Mas ele abate-a e corta-a em pranchas. O espírito da terra odeia-o. Ele arranca as árvores e abala-as até às raízes... Ele estoira os rochedos e deixa-os em detritos sobre o solo. A rocha diz: «Pára; tu fazes-me mal». Mas o homem branco não lhe dá atenção. Como poderia o espírito da terra amar o homem branco? Por toda a parte onde toca deixa uma chaga».
No nosso planeta habita um grande número de culturas diferentes, cada uma das quais desenvolveu as suas próprias estratégias de subsistência, o seu modo de vida adaptado ao enquadramento natural. A pesca dos Esquimós difere da de Benin. A agricultura maciça das pradarias canadianas não se assemelha à jardinagem familiar dos camponeses da Índia. Tal como as técnicas de vida, as relações do homem com a Natureza variam largamente de um lugar para outro. Como os índios da América, como muitos hindus, numerosas sociedades tradicionais têm pela Natureza um respeito profundo, com vislumbres de animismo.
A ciência e a tecnologia do poder nasceram no nosso mundo ocidental, precisamente onde a relação mística com a Natureza foi desde há mais tempo posta em causa. E, sem dúvida, isso não aconteceu por acaso. Reencontramos aqui a imagem de Prometeu arrancando o fogo do céu: o «pecado» que, segundo Oppenheimer, os físicos conheceram em Los Alamos.
Se há uma relação entre a rejeição da piedade ancestral e a eclosão da ciência, em que sentido se desenvolve ela? Da impiedade à ciência ou da ciência à impiedade? Com toda a verosimilhança, alternada ou simultaneamente, nos dois sentidos.
O importante para nós é o facto histórico do surgimento da cultura tecnológica ocidental, cuja influência hegemónica se propaga e impõe a todo o planeta.
Os imperativos industriais e comerciais, os meios de comunicação e transporte, interditam o isolamento do passado. No século XIX os Japoneses foram forçados a abrir as portas ao Ocidente. As últimas tribos da Amazónia extinguem-se em Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss.
Será inevitável a inteligência e a curiosidade conduzirem à eclosão de uma sociedade tecnológica, apoiada no domínio das energias? Esta interrogação, muitas vezes formulada, parece-me inadequada.
Imaginemos um planeta «lambda» onde, como na nossa Terra, uma multidão de culturas diferentes desenvolve em separado as suas relações com a Natureza. Mesmo que a quase totalidade destes grupos mostre apenas um interesse moderado pela ciência e pela tecnologia, basta que esta paixão apareça algures para se impor a todos. A tecnologia é invasora, arrasta a sua própria expansão territorial.
Na margem arenosa de um grande rio africano um leão dorme. É de tarde, faz calor. Não corre a menor aragem.
Um escorpião aproxima-se: «Levanta-te. Tenho necessidade da tua ajuda», diz ele, dando uma cotovelada ao leão, «preciso de passar para o outro lado do rio. Aqui não há mais ninguém. Põe-me sobre as tuas costas e leva-me a nado».
Surpresa do leão: «Eu, nadar com um escorpião no dorso? Tu vais-me picar e eu morro...». O escorpião defende habilmente a sua causa: «Não sejas estúpido. Se eu te pico, afogamo-nos os dois. Nada te acontecerá». Obstinado, o leão procura argumentos. Mas a agilidade intelectual do escorpião, aliada à lógica insuperável da sua deprecada, acaba por vencer. «Sobe», diz o leão.
A passo lento, o leão, desconfiado, avança na água tépida. Começa a nadar. A meio do rio, uma dor viva paralisa-o. O duo é levado pela corrente.
«Olha bem o que fizeste», diz o leão, «vamos perecer os dois». «Eu sei», responde o escorpião, «lamento muito, mas ninguém escapa à sua natureza».
Os acontecimentos dos últimos decénios dão a esta fábula toda a pertinência. Estará na natureza do homem fabricar, o mais depressa e o mais eficazmente possível, as armas da sua autodestruição? Se tal é o caso, poderemos nós escapar à nossa natureza?
Neste primeiro capítulo esbocei o balanço de uma situação particularmente alarmante: a do futuro do género humano. A acumulação delirante de engenhos termonucleares, a proliferação do armamento atómico, fazem-nos prever o pior.
As armas – a História no-lo ensina – acabam sempre por funcionar. Os pretextos de legítima defesa tornam-se alibis de agressão. Se o passado é a garantia do futuro, quem apostaria no futuro da paz mundial? E, se o tiroteio começa, quem apostará na sobrevivência da espécie humana?
Mas qual o efeito produzido no espaço interestelar por um fogo-de-artifício de bombas atómicas no nosso planeta? Praticamente nenhum... Os habitantes dos sistemas planetários, mesmo os mais vizinhos, serão incapazes de o detectar! Uma peripécia perfeitamente desprezível à escala galáctica e do cosmos. Para que diabo tantas histórias?
E, contudo... Se a vida existe em outros sistemas planetários, à volta de outras estrelas, se neles apareceram civilizações tecnológicas, não correrão elas também o risco, impulsionadas pela «cruel discórdia», de serem confrontadas com o mesmo problema? Quantas populações planetárias chegaram antes de nós à encruzilhada crucial em que nos encontramos neste momento sobre a Terra? Quantas mergulharam no nada por não terem sabido executar a manobra correcta? E quantas souberam passar no exame da coexistência pacífica com o seu próprio poderio?
Pascal assustava-se com o silêncio dos espaços infinitos. Mas o céu, sabemo-lo hoje, não é para nós um estranho. Lá se elaboram, no centro das estrelas, como nas nebulosas, os núcleos, os átomos e as moléculas, que formarão mais tarde a infra-estrutura da consciência.
Existirá vida fora da Terra, noutros planetas, ao redor de outras estrelas, entre os milhares de milhões de galáxias do nosso universo? Temos excelentes razões para pensar que os escalões da complexidade são vencidos quando as condições físicas o permitem. E que estas condições férteis existem em milhões e milhões de exemplares no cosmos.
Porquê então nunca recebemos mensagens, radiofónicas ou de outro género, provenientes do céu? Há várias respostas. Examinemos, sucessivamente, quatro delas:
- Contrariamente à opinião apresentada acima, estamos sós. A vida não se desenvolveu em qualquer outro lugar. É possível, mas, considerando os conhecimentos actuais, esta explicação é difícil de aceitar;
- As civilizações extraterrestres comunicam por métodos de transmissão que escapam ainda à nossa tecnologia. Não se pode refutar esta hipótese;
- Os nossos mais próximos vizinhos estão demasiado longe para os nossos receptores actuais, por exemplo, se habitam na galáxia de Andrómeda. As próximas gerações de radiotelescópios poderão então reservar-nos algumas surpresas;
- Incapazes de gerir a sua agressividade, as civilizações tecnológicas exterminam‑se logo que disso se tornam capazes.
Se a boa resposta é a última, o «silêncio dos espaços infinitos» tem um significado assustador muito diferente do que tinha para Pascal.