sábado, 19 de maio de 2007

O cão preto - conto indiano

Shakra, rei dos deuses, ergueu-se do seu trono dourado e observou a Terra com atenção. Havia oceanos reluzentes e nuvens como pérolas, montanhas com cumes de neve e continentes de muitas cores. Embora tudo fosse belo, Shakra sentiu uma certa apreensão.

Os seus sentidos luminosos expandiram-se pelos céus. Sentiu o calor da guerra. Ouviu o balir dos vitelos, o ladrar dos cães, o grasnar dos corvos. Ouviu crianças a chorarem e vozes a gritarem de raiva. Ouviu o choro dos esfomeados, dos sós, dos pobres. As lágrimas rolaram-lhe pela cara abaixo e caíram sobre a terra como aguaceiros de meteoros.

— É preciso fazer alguma coisa! — disse Shakra.

Metamorfoseou-se num guarda-florestal e levou consigo um grande arco em osso. A seu lado caminhava um grande cão preto. O pelo do cão era emaranhado, os olhos brilhavam como fogo incandescente, os dentes mais pareciam presas, e a boca e língua pendente eram da cor do sangue.

Shakra e o cão deram um salto e mergulharam em direcção à Terra por entre as estrelas brilhantes. Por fim, aterraram mesmo ao lado de uma cidade esplêndida.

— Quem és tu, forasteiro? — perguntou, admirado, um soldado, do alto das muralhas da cidade.

— Sou estrangeiro nestas paragens e este — disse, apontando o animal com um gesto — é o meu cão.

O cão preto abriu as mandíbulas. O soldado que estava de guarda às muralhas ficou aterrado. Foi como se estivesse a olhar para um enorme caldeirão de fogo e de sangue. A garganta do cão emanava fumo. As mandíbulas do cão abriram-se ainda mais e mais…

— Fechem os portões! — ordenou o soldado. — Fechem-nos imediatamente!

Mas Shakra e o cão conseguiram saltar os portões cerrados. Os habitantes da cidade fugiram em todas as direcções, como se fossem marés a subir ao longo de uma praia. O cão foi no seu encalço, juntando as pessoas como se fossem um rebanho de ovelhas. Homens, mulheres e crianças gritavam, aterrorizados.

— Parem! — gritou Shakra. — Não se mexam!

As pessoas imobilizaram-se.

— O meu cão tem fome. O meu cão tem de ser alimentado.

O rei da cidade, a tremer de medo, ordenou:

— Rápido! Tragam comida para o cão! Imediatamente!

Em breve, carroças chegavam ao mercado carregadas de carne, pão, milho, frutos e cereais. O cão engoliu tudo de uma só vez.

— O meu cão precisa de mais comida! — exclamou Shakra.

As carroças voltaram de novo, carregadas. E o cão voltou a devorar tudo de uma assentada. Depois soltou um grito de angústia, um grito que parecia emanar das profundezas do Inferno.

As pessoas caíram por terra e taparam os ouvidos, aterradas. Shakra, o forasteiro, fez soar a corda do seu arco, que fez um ruído semelhante ao ribombar do trovão numa noite de tempestade.

— O meu cão ainda tem fome! — Dêem-lhe de comer!

O rei contorceu as mãos e pôs-se a chorar.

— Já lhe demos tudo o que tínhamos. Não temos mais!

— Sendo assim, o meu cão alimentar-se-á de pastos e montanhas, de pássaros e animais ferozes. Devorará as rochas e mastigará o sol e a lua. O meu cão alimentar-se-á de vós!

— Não! — gritaram as pessoas. — Tem misericórdia de nós! Rogamos-te que nos poupes! Poupa o nosso mundo!

— Então acabem com a guerra — disse Shakra. Alimentem os pobres. Cuidem dos doentes, dos sem-abrigo, dos órfãos, dos velhos. Ensinem a bondade e a coragem às vossas crianças. Respeitem a terra e todas as suas criaturas. Só assim açaimarei o meu cão.

Shakra transformou-se num gigante, resplandecente de luz. Ele e o cão deram um salto e, numa espiral de fumo, subiram cada vez mais alto.

Lá em baixo, nas ruas da cidade, homens e mulheres olhavam o céu consternados. Estenderam as mãos uns para os outros e prometeram mudar as suas vidas, fazer o que o forasteiro lhes tinha ordenado que fizessem.

Bem lá de cima, Shakra sorriu no seu trono dourado, ao olhar para a terra. Limpou a testa com um braço resplandecente. As inúmeras estrelas cintilavam, fulgentes, e a escuridão dormitava entre elas, tal como um cão junto de uma fogueira.
Margaret Read MacDonald
Peace Tales
Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005