Para uma cultura da não-violência
Alfredo Fonseca; J. Wemans; J.M.Azevedo; P. Melo
“Para uma cultura da não-violência”
Público, 1 de Março de 2003
Excertos adaptados
Mesmo em situações aparentemente pacíficas, a violência é, sob muitas formas, uma realidade quotidiana que destrói vidas e condena à sobrevivência em condições iníquas uma multidão de seres humanos. Não serão o desemprego, o analfabetismo, a insegurança, as desigualdades crescentes, a exploração e os futuros roubados manifestações de violência com as quais constantemente nos confrontamos?
Reconhecemos que as diferentes confissões cristãs têm, ao longo da história, invocado Deus para legitimar a guerra, enquanto detentoras de uma verdade revelada que deve ser concretizada. Noutras situações, têm contemporizado com a violência que aniquila o outro, desenvolvendo as teorias da guerra justa. Não adianta, pois, ignorar ou tentar justificar o uso, a contemporização ou legitimação da violência por parte das várias igrejas espalhadas pelo mundo.
Tem o cristianismo, enquanto religião messiânica, inscrito em si uma lógica de violência e dominação? Mesmo quando a história parece dizer que sim, a contemplação do Crucificado, daquele que, numa doação amorosa de si, aceitou perder, foi ressuscitado e está vivo, a contemplação desse “homem de dores”, que se humilhou voluntariamente e não abriu a boca, diz-nos que só por grave cegueira pode decorrer do cristianismo uma lógica messiânica legitimadora da dominação. Portanto, à luz da radicalidade evangélica, não faz sentido teorizar sobre a guerra justa.
Foi também no âmbito das religiões, inclusive do cristianismo e da inspiração evangélica, que a dominação e a guerra foram mais seriamente questionadas e que a não‑violência se constituiu como um quadro consequente de vida e intervenção social. A verdade deixa, então, de ser entendida como algo que se tem e deve ser anunciado e, no limite, imposto aos outros para o “seu bem”, para passar a ser resultado de uma busca que passa necessariamente por “procurar conhecer-se em profundidade a si próprio, aos outros e às envolventes circunstâncias históricas, sociais, políticas, económicas e religiosas”.
Daqui resultará a atitude de profunda humildade daquele que sabe e aceita que a verdade não é pertença absoluta e exclusiva de ninguém em particular. A verdade não se tem. Buscar a verdade, por isso, é recusar diabolizar o inimigo e, ao invés, desejar integrá-lo também neste processo de procura de verdade – da verdade que liberta –, porque até no inimigo mais empedernido há sempre algo de aproveitável, há sempre uma bondade potencial, ainda que embotada.
Esta atitude, em vez de gerar um ódio de morte ao outro, leva a encará-lo como alguém capaz de mudar. Tanto quanto eu. Não confundamos não-violência com passividade, cobardia ou desistência de lutar pela justiça. Afirmação de si, agressividade e conflito são inerentes à condição humana. Não têm, forçosamente, que assumir a forma de violência, de desejo concretizado de destruição do outro, do diferente, do que nos mete medo. E não é pelo facto de a guerra ter sido uma constante na história da humanidade que assim tem de continuar a ser.
A humanidade dispõe hoje de recursos materiais e espirituais que lhe permitem prescindir da violência como forma de garantir a sobrevivência e é possível, a partir de um processo lento e difícil, porque cultural, inaugurar uma nova era civilizacional de humanização, de enriquecimento pessoal e comunitário, através do confronto e da compreensão do outro, do diferente. Hoje, é possível pensar a evolução da humanidade fora dos quadros da violência.
Não é, no entanto, o senso comum, o caminho mais evidente. “Se queres a paz prepara a guerra”: eis um provérbio que resume o adversarialismo que ainda hoje domina a acção política e as práticas sociais. O caminho não é fácil, tanto do ponto de vista colectivo como pessoal. Requer persistência, paciência e vigilância.
Por isso: “Se alguém pensar que já alcançou um estádio de recusa absoluta da violência, esse ignora-se a si mesmo. O adepto da não-violência trava todos os dias consigo próprio um combate. Já não será então somente a recusa da força bruta como meio de solução dos problemas, mas de todas as formas de violência, sobretudo as mais requintadas e subtis. É este o princípio da autêntica convivência, do viver conjuntamente, do estar-com” (José Manuel Pureza, Pedaços de uma fé crítica).
“Assim como é preciso aprender a matar para praticar a violência, assim se deve estar preparado para morrer para praticar a não-violência”, dizia Gandhi. Ora, ter este princípio como horizonte de vida pressupõe um profundo e persistente trabalho interior porque “a não-violência não recusa o conflito mas procura transformá-lo em fonte de crescimento e de amadurecimento da consciência e da solidariedade humanas, consciente dos limites e precariedade desse mesmo processo”.
Este é um desafio que cada um há-de colocar, em primeiro lugar, a si mesmo, ainda que a partilha e a reflexão societária constituam um incentivo e encorajamento que previnem a desistência de tão exigente processo de construção espiritual. Convictos de que, na fidelidade à Vida, vale a pena dar passos no sentido de uma cultura de não-violência, devemos comprometer-nos a:
― Desenvolver um pensamento e uma acção que recusem o adversarialismo simplista que tende a dominar o senso comum e permitam uma consciência dos problemas na sua complexidade, evitando o desalento e permitindo valorizar o presente como futuro em construção.
― Dar a conhecer iniciativas individuais e colectivas que se pautem por critérios de não-violência, de defesa dos direitos humanos, de promoção da cooperação e do desenvolvimento, de reinserção social, centrados na valorização das pessoas e das comunidades.
― Potenciar a independência da consciência, para que, através dos comportamentos e das atitudes individuais e sociais, se realize a mobilização para as mudanças capazes de reduzir a violência e instaurar novas formas de relacionamento.
― Reforçar os laços com todos aqueles que se ocupam da solidariedade e desenvolvimento a nível internacional, de modo a desenvolver uma compreensão da interdependência dos problemas e das suas soluções.
“Para uma cultura da não-violência”
Público, 1 de Março de 2003
Excertos adaptados
No início do terceiro milénio, a violência continua a ser uma constante na história da humanidade. O fim do bipolarismo e a apregoada nova ordem internacional, ao contrário do que alguns previam, não contribuíram para a resolução pacífica dos conflitos que continuam a provocar milhões de mortos e de mutilados um pouco por todo o mundo e a impedir que muitas pessoas vivam em condições mínimas de dignidade. Ruanda, Sudão, Kosovo, Tchetchénia, Argélia, Colômbia, Angola, Médio Oriente, Afeganistão ou Iraque são algumas regiões do mundo onde o absurdo da guerra se manifestou recentemente e, em alguns casos, continua a manifestar.
Mesmo em situações aparentemente pacíficas, a violência é, sob muitas formas, uma realidade quotidiana que destrói vidas e condena à sobrevivência em condições iníquas uma multidão de seres humanos. Não serão o desemprego, o analfabetismo, a insegurança, as desigualdades crescentes, a exploração e os futuros roubados manifestações de violência com as quais constantemente nos confrontamos?
Reconhecemos que as diferentes confissões cristãs têm, ao longo da história, invocado Deus para legitimar a guerra, enquanto detentoras de uma verdade revelada que deve ser concretizada. Noutras situações, têm contemporizado com a violência que aniquila o outro, desenvolvendo as teorias da guerra justa. Não adianta, pois, ignorar ou tentar justificar o uso, a contemporização ou legitimação da violência por parte das várias igrejas espalhadas pelo mundo.
Tem o cristianismo, enquanto religião messiânica, inscrito em si uma lógica de violência e dominação? Mesmo quando a história parece dizer que sim, a contemplação do Crucificado, daquele que, numa doação amorosa de si, aceitou perder, foi ressuscitado e está vivo, a contemplação desse “homem de dores”, que se humilhou voluntariamente e não abriu a boca, diz-nos que só por grave cegueira pode decorrer do cristianismo uma lógica messiânica legitimadora da dominação. Portanto, à luz da radicalidade evangélica, não faz sentido teorizar sobre a guerra justa.
Foi também no âmbito das religiões, inclusive do cristianismo e da inspiração evangélica, que a dominação e a guerra foram mais seriamente questionadas e que a não‑violência se constituiu como um quadro consequente de vida e intervenção social. A verdade deixa, então, de ser entendida como algo que se tem e deve ser anunciado e, no limite, imposto aos outros para o “seu bem”, para passar a ser resultado de uma busca que passa necessariamente por “procurar conhecer-se em profundidade a si próprio, aos outros e às envolventes circunstâncias históricas, sociais, políticas, económicas e religiosas”.
Daqui resultará a atitude de profunda humildade daquele que sabe e aceita que a verdade não é pertença absoluta e exclusiva de ninguém em particular. A verdade não se tem. Buscar a verdade, por isso, é recusar diabolizar o inimigo e, ao invés, desejar integrá-lo também neste processo de procura de verdade – da verdade que liberta –, porque até no inimigo mais empedernido há sempre algo de aproveitável, há sempre uma bondade potencial, ainda que embotada.
Esta atitude, em vez de gerar um ódio de morte ao outro, leva a encará-lo como alguém capaz de mudar. Tanto quanto eu. Não confundamos não-violência com passividade, cobardia ou desistência de lutar pela justiça. Afirmação de si, agressividade e conflito são inerentes à condição humana. Não têm, forçosamente, que assumir a forma de violência, de desejo concretizado de destruição do outro, do diferente, do que nos mete medo. E não é pelo facto de a guerra ter sido uma constante na história da humanidade que assim tem de continuar a ser.
A humanidade dispõe hoje de recursos materiais e espirituais que lhe permitem prescindir da violência como forma de garantir a sobrevivência e é possível, a partir de um processo lento e difícil, porque cultural, inaugurar uma nova era civilizacional de humanização, de enriquecimento pessoal e comunitário, através do confronto e da compreensão do outro, do diferente. Hoje, é possível pensar a evolução da humanidade fora dos quadros da violência.
Não é, no entanto, o senso comum, o caminho mais evidente. “Se queres a paz prepara a guerra”: eis um provérbio que resume o adversarialismo que ainda hoje domina a acção política e as práticas sociais. O caminho não é fácil, tanto do ponto de vista colectivo como pessoal. Requer persistência, paciência e vigilância.
Por isso: “Se alguém pensar que já alcançou um estádio de recusa absoluta da violência, esse ignora-se a si mesmo. O adepto da não-violência trava todos os dias consigo próprio um combate. Já não será então somente a recusa da força bruta como meio de solução dos problemas, mas de todas as formas de violência, sobretudo as mais requintadas e subtis. É este o princípio da autêntica convivência, do viver conjuntamente, do estar-com” (José Manuel Pureza, Pedaços de uma fé crítica).
“Assim como é preciso aprender a matar para praticar a violência, assim se deve estar preparado para morrer para praticar a não-violência”, dizia Gandhi. Ora, ter este princípio como horizonte de vida pressupõe um profundo e persistente trabalho interior porque “a não-violência não recusa o conflito mas procura transformá-lo em fonte de crescimento e de amadurecimento da consciência e da solidariedade humanas, consciente dos limites e precariedade desse mesmo processo”.
Este é um desafio que cada um há-de colocar, em primeiro lugar, a si mesmo, ainda que a partilha e a reflexão societária constituam um incentivo e encorajamento que previnem a desistência de tão exigente processo de construção espiritual. Convictos de que, na fidelidade à Vida, vale a pena dar passos no sentido de uma cultura de não-violência, devemos comprometer-nos a:
― Desenvolver um pensamento e uma acção que recusem o adversarialismo simplista que tende a dominar o senso comum e permitam uma consciência dos problemas na sua complexidade, evitando o desalento e permitindo valorizar o presente como futuro em construção.
― Dar a conhecer iniciativas individuais e colectivas que se pautem por critérios de não-violência, de defesa dos direitos humanos, de promoção da cooperação e do desenvolvimento, de reinserção social, centrados na valorização das pessoas e das comunidades.
― Potenciar a independência da consciência, para que, através dos comportamentos e das atitudes individuais e sociais, se realize a mobilização para as mudanças capazes de reduzir a violência e instaurar novas formas de relacionamento.
― Reforçar os laços com todos aqueles que se ocupam da solidariedade e desenvolvimento a nível internacional, de modo a desenvolver uma compreensão da interdependência dos problemas e das suas soluções.
― Estudar, desmontar, denunciar as lógicas económicas que alimentam as guerras ligadas aos interesses da indústria de armamento e reflectir activamente sobre essas questões, no plano nacional e internacional. ― Promover espaços de formação para jovens e adultos em que se pense a resolução não-violenta de conflitos, porque uma cultura das mediações e da não-violência pressupõe uma pedagogia das mediações e da não-violência.