sábado, 19 de maio de 2007

Diálogo e respeito mútuo - José Dias da Silva

Além-Mar
Maio 2004
Primeiro foi o 11 de Setembro em Nova Iorque. Depois, após umas incursões por países longínquos, cujas ondas de choque pouco nos impressionaram, foi o 11 de Março, em Madrid.

E, de repente, depois de tantos anos de auto-suficiência e de requintados serviços de vigilância, percebemos que afinal ninguém está seguro em lado nenhum. O pânico e o medo aumentaram um sentimento difuso de ansiedade e angústia, já agudizado por novos riscos, novas doenças, novas catástrofes ambientais, novos perigos de alimentos contaminados.

O pânico não é o mais propício para uma avaliação objectiva da realidade. E o medo nunca foi bom conselheiro. De qualquer modo, em vez das reacções imediatistas, impostas pela agressividade e defesa irracional da nossa territorialidade geográfica, mas sobretudo cultural, esta é uma oportunidade para olhar à nossa volta e não só perceber que não somos os únicos habitantes do planeta nem as únicas sociedades com valores mas também procurar apreender as causas profundas de tais brutalidades e das possíveis culpas nossas no seu aparecimento.

Talvez estes massacres nos ajudem a tomar consciência dos muitos que fomos cometendo ou deixámos que acontecessem ao longo da história: o comércio de escravos africanos pelos portugueses e outros, o genocídio de incas e astecas pelos espanhóis, o massacre dos aborígenes da Tasmânia pelos ingleses, a eliminação dos índios pelos americanos, a destruição do povo herero, da Namíbia, pelos alemães, os milhões de mortos nos Gulags estalinistas e nos campos de morte nazis, os dois milhões de mortos pelos kmers vermelhos, o milhão do genocídio ruandês ou os 300 mil timorenses. Isto para não falar das tentativas «caseiras» de limpeza étnica ou política: dos arménios, dos curdos, dos chechenos, na ex-Jugoslávia, ou dos milhares que por esse mundo fora todos os dias deixamos morrer à fome. Afinal não somos muito mais civilizados do que esses terroristas que matam, a sangue-frio, milhares de inocentes. Quantos não matámos nós por razões económicas, por interesses políticos ou por simples indiferença?

Talvez os recentes crimes nos façam perceber que a vítima americana não é mais pessoa que o ruandês que deixámos massacrar, que sempre que morre uma pessoa, em qualquer canto do mundo e independente da sua cor ou religião, é sempre uma perda irreparável para a humanidade. Talvez consigamos perceber que todas as pessoas contam igualmente. E que, havendo atrás de cada pessoa uma cultura, a humanidade será mais rica se partilhar todos esses bens culturais, respeitando-os e promovendo-os na diversidade das diferenças, até porque todas as culturas são incompletas e têm debilidades próprias. E sem o reconhecimento dessas limitações nunca será possível o diálogo intercultural honesto e fecundo.

Então o caminho não pode ser o da imposição dos nossos valores para substituir os dos outros, o que só pode conduzir a uma «canibalização cultural». Tem de ser o do diálogo entre todas as culturas. Só assim, no respeito mútuo, será possível eliminar ou pelo menos limitar as condições geradoras de terroristas dispostos a dar a vida para espalhar a morte e, talvez assim, contestar um Ocidente que nunca os levou a sério, que passou a história a impor soluções que não incluíam os legítimos ideais desses povos, ignorando-os ou até humilhando-os.

Bastará olhar para a partilha de África feita a régua e esquadro numa longínqua cidade da Europa central, ou a (não) solução para o Médio Oriente, ou a divisão entre a Índia e o Paquistão. Para não citar exemplos bem recentes onde a mentira teve um papel determinante. É, pois, tempo de os políticos darem lugar aos sábios. E tempo de os militaristas darem lugar aos amantes da paz e da dignidade das pessoas e dos povos. É tempo de o diálogo substituir o ruído ensurdecedor das armas. É tempo de afirmar e respeitar a igual dignidade de todos, pessoas e povos, o seu direito ao desenvolvimento próprio, à sua cultura, à sua existência reconhecida internacionalmente, à sua parte dos bens deste mundo, criados para uso de todos.

Talvez também possamos perceber que a nossa cultura de absolutização do dinheiro é (pode ser) um grande aliado dos terroristas ao permitir-lhes dispor de financiamento com esquemas de branqueamento de dinheiros, com os paraísos fiscais, onde todos os dias passam milhões de dólares que ninguém quer controlar. Só nas ilhas Caimão, o maior centro de off‑shore do mundo, circulam 15 milhões de milhões de dólares por ano.

Com as injustiças históricas que cometemos e as facilidades organizativas que a nossa idolatria pelo dinheiro proporciona, não estarão criadas condições objectivas para o terrorismo?