sábado, 19 de maio de 2007

Enquanto


ENQUANTO



Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio

e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé

para ver como é;

enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas

e correr pelos interstícios das pedras,

pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;

enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,

órfãs de pais e de mães,

andarem acossadas pelas ruas

como matilhas de cães;

enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto

com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,

num silêncio de espanto

rasgado pelo grito da sereia estridente;

enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio

cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas

amassando na mesma lama de extermínio

os ossos dos homens e as traves das suas casas;

enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade, enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,

o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.


António Gedeão
Obra Poética
Lisboa, Ed. João Sá Couto, 2001