sábado, 19 de maio de 2007

A guerra contra as crianças

Claire Brisset
Um mundo que devora as suas crianças
Porto, CAMPO DAS LETRAS, 2005


Excertos adaptados


É difícil estabelecer o quadro de honra da violência contra as crianças, visto esta poder assumir um sem-número de formas. Difícil, mas não impossível. À cabeça desta lista encontra-‑se, sem qualquer margem para dúvidas, a guerra – a guerra contra as crianças.

Em 1989, o mundo inteiro foi tomado por um devaneio, uma ilusão generalizada. Um sistema desabava no Leste da Europa e consigo toda uma ideologia centenária. Na altura pensava-se que a competição político-belicista que acompanhou passo a passo esse desmoronamento se iria desvanecer quase instantaneamente. Todas as guerras e conflitos exportados para todo o mundo por esse confronto em que se digladiavam valores contraditórios iriam finalmente apaziguar-se. Especialmente para aqueles que tinham vivido o período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, esta ilusão evocava a célebre frase de Chamberlain quando, ao regressar da Alemanha, bradava, à saída do avião, agitando uma folha de papel com o texto dos acordos de Munique: “Trago-vos a paz para o nosso tempo.” As consequências dessa miragem não se fizeram esperar.

Fim da ilusão. O desmantelamento do Império Soviético não só não deu início a nenhum período de paz, como os conflitos não pararam de se intensificar desde então, tanto a sul como a norte do planeta: Conflitos internacionais e sobretudo conflitos civis, sendo estes tão mortíferos como os primeiros. O envolvimento de civis nestas guerras, e entre eles, de crianças, não pára de crescer.
Os números falam por si. Desde 1945, cento e cinquenta conflitos mancharam de sangue o planeta e, há actualmente oitenta países à mercê da violência e da guerra. Quer sejam guerras de pequena dimensão, quer conflitos de enorme amplitude, pouca é a diferença para a população civil, no seio da qual as vítimas se contam aos milhões. De facto, nos últimos dez anos, as guerras mataram mais de dois milhões de crianças. Feriram ou incapacitaram, muitas vezes definitivamente, mais de cinco milhões e traumatizaram psicologicamente perto de doze milhões. O número de órfãos, de crianças separadas da família, arrancadas ao seu lar e à sua terra, é ainda maior. Por último, e derradeira consequência desta violência, as forças armadas recrutam hoje em dia crianças-soldados na ordem das centenas de milhar, as mais jovens das quais terão apenas seis anos de idade.

Mas, dir-se-á, o envolvimento de crianças em conflitos armados não é nenhuma novidade. Nas guerras de outros tempos, perde-se a conta do número de cidades incendiadas ou de civis exilados. Basta recordar que a Cruzada das Crianças, em 1212, lançou para as ruas de toda a Europa cerca de 30 000 crianças mobilizadas para a libertação da Terra Santa. E que Condé ou Turenne, com pouco mais de quinze anos, já comandavam regimentos inteiros de crianças. Frederico o Grande e, posteriormente, Napoleão, tampouco hesitavam em recrutar soldados muito jovens. Por fim, Hitler, a meio da Segunda Guerra Mundial, mandou recrutar para o exército alemão batalhões inteiros de adolescentes.

Tudo isto é certo, está provado e constitui um facto histórico. Por outro lado, a palavra “infantaria”, já nos diz tudo. In-fans, aquele que não fala, é a criança de tenra idade. A expressão acabou por designar a tropa, a tropa terrestre, “a rainha das batalhas”, como dizia Napoleão. Mas esses exércitos dos tempos passados também inventaram a farda militar, cuja única função consistia em distinguir os civis dos militares. E ao longo dos séculos, fomos começando a acreditar num progresso da consciência moral: pouco a pouco, as sociedades estavam a começar a aprender a proteger os civis nos conflitos, em particular as crianças. Em pleno campo de batalha da guerra da Crimeia, Henry Dunant concebeu o que viria a ser a Cruz Vermelha Internacional, um conjunto de fundamentos segundo os quais os civis devem ser poupados e os feridos tratados, independentemente da facção a que pertencem, algo que viria a contribuir para “humanizar” as guerras. Henri Dunant chegou mesmo a receber o Prémio Nobel da Paz por este feito.

“Humanizar” a guerra, poupar os civis... O que se verificou foi exactamente o contrário. Os conflitos do século XX, qual deles o pior, foram um espelho disso. A Primeira Guerra Mundial, a Guerra Civil de Espanha e sobretudo a Segunda Guerra Mundial fizeram com que as crianças entrassem em massa nos conflitos como actores, mas principalmente como vítimas, vítimas da violência cega dos campos de concentração[1] e dos bombardeamentos que se abatem indiscriminadamente sobre as populações civis. E quem paga hoje em dia o preço desta evolução são as crianças, um preço cujo impacto é difícil de calcular.

Depois da Guerra Civil de Espanha e sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, foram-se aperfeiçoando as técnicas para atingir não só as forças de combate, mas também as suas bases na retaguarda, a sua economia e as suas infra-estruturas, mas também os seus suportes psicológicos e afectivos, ou seja, acima de tudo, as mulheres e crianças. Quando o exército alemão bombardeou Guernica e, mais tarde, Coventry, quando os Aliados arrasaram Dresden e os americanos largaram a primeira bomba atómica sobre Hiroshima, a ideia era obviamente aplicar um golpe fatal não tanto às forças de combate, mas à população em geral. Tanto pior, ou mesmo tanto melhor, se entre os alvos atingidos figurasse a mesma quantidade de objectivos civis do que a de pontos estratégicos militares. Graças às armas modernas e aos bombardeamentos aéreos, a guerra entrou numa nova era. Que se cruzou, na mesma altura, com a concepção industrial da limpeza étnica – foi devido a técnicas avançadíssimas que se pôde aspirar à extinção total de grupos humanos considerados indesejáveis, como os judeus ou os ciganos, não fazendo qualquer distinção entre homens, mulheres e crianças. Todos nós assistimos, pelo desenrolar dos acontecimentos, ao sucesso florescente desta concepção da guerra.

A “criança-alvo”

Que significa esta evolução? Que as crianças não são protegidas em parte alguma como o deveriam ser, enquanto membros mais frágeis de uma sociedade. A expressão “Mulheres e crianças primeiro!”, utilizada na ocorrência de naufrágios, já não é levada a sério. No entanto, ela fazia todo o sentido, um sentido muito preciso – em caso de fatalidade, não se trata apenas de proteger os mais fracos, trata-se também de garantir o futuro.

Actualmente, muito pelo contrário, os conflitos fazem das mulheres e mais ainda das crianças, os seus alvos privilegiados. Assassinar crianças, feri-las ou violentá-las é aplicar um duro golpe no grupo humano que se pretende exterminar ou subjugar. Foi assim que se pôde ouvir a Radio Mille Collines inundar o Ruanda com este slogan em 1994 – “Para eliminar os ratos maiores, temos de matar os mais pequenos.” Ou seja, as crianças tutsis. E foi assim que mulheres grávidas foram esventradas para eliminar futuros tutsis e adolescentes violadas aos milhares para que ficassem marcadas com um ferro impossível de apagar. Uma atitude idêntica esteve sempre bem presente durante todo o conflito jugoslavo. Quando os atiradores furtivos visavam sem erro as crianças, nos passeios das ruas de Sarajevo, estavam a seguir obviamente a mesma lógica. Quando as granadas, cuidadosamente dirigidas, se abatiam sobre uma padaria ou sobre o mercado central da capital bósnia, também aqui, e mais uma vez, se seguia a mesma linha desta nova “estratégia”.

As crianças são cada vez mais assassinadas, feridas e massacradas nestas guerras “modernas” que se multiplicaram desde 1945 e cuja amplitude não pára de crescer perante os nossos olhos. Da América Central ao Camboja, do Líbano à República Democrática do Congo, surgem conflitos em todos os pontos do planeta que se abatem sobre as crianças, incluindo as mais jovens, como se todo o cuidado em protegê-las não só fosse aniquilado, apesar de todos os esforços dos partidários do Direito Humanitário Internacional, mas mesmo literalmente subvertido.

A evolução do armamento enquadra-se perfeitamente nesta óptica. Os aperfeiçoamentos técnicos não tornaram só os bombardeamentos (nucleares, químicos ou convencionais) muito mais eficazes. Tornaram igualmente a indústria das minas perfeitamente adaptada a esta nova concepção da guerra. É indispensável transformar o território do inimigo num campo de minas. Desta forma, será aplicado um rude golpe na moral dos civis e na sua capacidade de sobreviver ao conflito, de uma forma extremamente eficaz.

E é assim que hoje em dia, um certo número de países, que aliás se encontram entre os mais pobres do mundo, foram transformados efectivamente em imensos campos de minas – o Afeganistão, o Camboja e Angola são os países mais minados do mundo; segundo os peritos, o Afeganistão, por si só, tem enterradas no seu solo entre dez e quinze milhões de minas. O Camboja conta com oito milhões, ou seja, uma mina por habitante, e é o país que actualmente possui o maior número de mutilados do mundo. Mas o continente africano não lhe fica nada atrás, com um sem-número de campos de batalha, de Angola a Moçambique e do Ruanda à Somália. No total, em todo o mundo, encontram-se cerca de cento e dez milhões de minas espalhadas no solo de sessenta e quatro países. Não só “no solo”, aliás, porque graças aos progressos científicos, existem também minas aquáticas, adaptadas aos arrozais, por exemplo, e minas para as árvores. Há também a mina “saltitante”, concebida para explodir a um metro do solo, para melhor incapacitar ou assassinar, a mina “borboleta”, com o aspecto de um brinquedo colorido, a mina camuflada dentro de bonecas... a imaginação dos fabricantes não tem limites.

Ora estas minas, que destroem literalmente a vida civil de comunidades inteiras, são particularmente perigosas para as crianças. As crianças constituem, por si só, metade das seiscentas mil vítimas de minas (assassinadas ou mutiladas) nos últimos vinte anos. Os riscos que elas correm são ainda mais graves do que os que ameaçam um adulto. O corpo de uma criança, mais pequeno, não protege tão bem os órgãos vitais como o de um adulto e a sua resistência face à perda de sangue é menor. O ponto de impacto da explosão acontecerá a uma distância menor dos órgãos vitais, da face, dos olhos, e em consequência, muitas ficarão cegas. As crianças também são um alvo fácil porque têm tendência para explorar os: espaços desconhecidos para procurar (levadas pela curiosidade natural infantil) novas brincadeiras e construir brinquedos com os explosivos que encontram. As minas borboleta, tão tentadoras para os petizes, já assassinaram milhares de crianças no Afeganistão.

Por fim, quem é que vai buscar a lenha, a água, guardar o rebanho, atravessar os campos para chegar à escola, senão as próprias crianças? Depois da deflagração da mina e da descoberta da criança inanimada (quando é descoberta) é necessário amputá-la ou, no melhor dos casos, colocar-lhe uma prótese. Mas uma prótese – quando existe – é muito cara no Camboja, no Afeganistão ou em Angola. Dá-se então prioridade aos adultos porque estes são mais rentáveis para a sociedade. Por outro lado, uma criança está a crescer e irá precisar de duas, três, ou quatro próteses. É demasiado caro. Demasiado complicado. Muitas vezes, o que se seguirá será a rejeição da criança amputada e inválida pelo grupo social, sobretudo se a mutilação for vista como uma condenação divina, uma maldição sobrenatural, como acontece no Camboja.

Abatidas, refugiadas no silêncio

Mas a história não acaba aqui. A guerra não afecta só o bem-estar das crianças por intermédio de bombas, granadas e minas. Ela mata muito mais eficazmente quando interrompe todos os circuitos da produção agrícola, quando bloqueia todas as redes de comunicação e quando impede o fornecimento de géneros alimentares ou de medicamentos. A guerra destrói os sistemas de alimentares ou inunda-os de feridos, impede a medicina preventiva, as campanhas de vacinação e favorece o aparecimento de surtos de epidemias, da fome e da pilhagem da ajuda externa.

Na Somália, estima-se que a guerra tenha feito desaparecer entre metade e três quartos das crianças com menos de cinco anos. Mas só um pequeno número terá sido vítima dos efeitos directos dos combates, dos tiros da artilharia e dos bombardeamentos. Quase todas morreram de fome e da completa e total desorganização da vida económica e social em que o país se encontra.

O mesmo esquema repete-se um pouco por todo o lado. Na Etiópia, durante a grande fome dos anos 1984-1985, a esmagadora maioria das vítimas sucumbiu mais rapidamente à malnutrição e às epidemias do que à guerra propriamente dita. No Camboja, durante o regime dos Khmers Vermelhos, não foram as execuções sumárias, a tortura ou os massacres que provocaram o maior número de mortos (se bem que ainda não se saiba a que escala foram praticados), mas a deportação maciça, os trabalhos forçados e a malnutrição.

A desorganização da vida económica nem sempre é um subproduto espontâneo da guerra. De facto, raramente o é. Muito frequentemente, resulta de uma deliberada política de terra queimada, levada a cabo pelas facções em conflito que destroem pontes, estradas e vias ferroviárias e regam a napalm ou a produtos tóxicos o território inimigo. Ou então, como foi o caso do Camboja, assiste-se a uma tentativa demente de “reorganização” do país, com base em teorias perfeitamente disparatadas.

A guerra destrói, então, tudo o que as crianças necessitam para viver e para se desenvolverem. Ela priva-as, em primeiro lugar, dos próprios pais, umas vezes fisicamente em consequência dos combates e massacres, e outras por causa do caos geral que instaura. Foi assim que no fim do Verão de 1994, mais de cento e dez mil crianças ruandesas foram recolhidas pelas organizações humanitárias, não só porque um grande número de adultos tinha desaparecido devido aos assassinatos ou à cólera, mas também porque, no pânico da fuga para a fronteira Este com a República Democrática do Congo, muitas crianças se perderam, afastando-se inexoravelmente das familias.

O que acontecerá a estas crianças que, depois de terem assistido a massacres, se vêem sós, paradoxalmente sós no meio de milhares de outras, nessas enormes instituições, nesses orfanatos onde, apesar de uma imensa boa-vontade se torna praticamente impossível realizar qualquer tratamento individual ou recriar laços reais, esses laços sem os quais uma criança é incapaz de se projectar no futuro? As sequelas psicológicas das guerras “modernas” são muitas vezes tão graves quanto as sequelas físicas com as quais as crianças têm de viver. Algumas saltam imediatamente à vista – crianças abatidas, refugiadas no silêncio, por vezes até incapazes de chorar, ou de contar o que sofreram; crianças violentas, agressivas, ou, pelo contrário, apáticas, passivas. Crianças desapossadas de si próprias, desprovidas dos seus objectos de afeição, de identificação. Crianças que se mutilam, que se culpam por estarem vivas quando tantas outras estão mortas. Outras vezes, as feridas psicológicas não são aparentes e a criança parece relativamente insensível face ao que lhe aconteceu. Mas essas feridas irão irromper mais tarde, na adolescência ou na idade adulta, quando a “cicatrização” já se tiver tornado irremediavelmente impossível.

Uma das melhores curas e uma das únicas formas de se conseguir ajudar estas crianças a regressar à vida passa pela reactivação das escolas. Mas as escolas também sofreram as consequências da guerra, e quase nunca por acaso. É desta forma que em Moçambique, quando a guerra chegou ao fim em 1993, dois terços das crianças já não tinham qualquer acesso ao ensino primário. No Camboja, os Khmers Vermelhos eliminaram, arrasaram, toda e qualquer forma de sistema escolar, símbolo de uma cultura maldita. Na Etiópia e na Somália, com as escolas destruídas e os professores enviados para a frente de batalha, já nada resta do antigo sistema de educação, já de si deficitário, nas províncias do norte e do este. Quanto às crianças ruandesas refugiadas na República Democrática do Congo, não tiveram qualquer acompanhamento escolar durante três anos.

No entanto, sabemos que uma das primeiras medidas a ser levada a cabo no fim dos conflitos não passa apenas por retirar as crianças das imensas instituições onde foram colocadas de urgência para as devolver aos familiares, mesmo afastados, ou a famílias de acolhimento; tampouco se limita a oferecer-lhes alimentação e cuidados adequados. Consiste também em recriar condições para uma escolarização, mesmo que rudimentar, para que elas possam reaver ao menos um vislumbre de uma vida de criança; para que lhes sejam restituídos os objectos de investimento que a guerra lhes roubou por completo. Tem-se tentado pôr em prática diversas estratégias, embora ainda não seja possível avaliar o seu impacto: psicoterapias de grupo, terapias através do jogo e do teatro, cerimónias de luto colectivas, rituais tradicionais. Todas estas estratégias, por mais necessárias que sejam, podem parecer insignificantes face aos dramas insondáveis que estas crianças viveram. Sem a reconstituição de autênticos laços interpessoais, sem a libertação da palavra que exteriorize os dramas inscritos na memória, corre-se o enorme risco de o trauma se instalar, talvez para sempre. E por vezes também, o risco do aparecimento da violência como único meio possível de expressão. Violência que é dirigida aos outros, mas também a si própria.

O efeito perverso dos embargos

Porém, podem surgir outros obstáculos no caminho deste penoso regresso à normalidade, desta vez sob a forma de obstáculos políticos. Quando um país, já de si vítima de uma guerra ou de conflitos civis violentos tem, como se não bastasse, “atitudes politicamente incorrectas”, pode abater-se sobre ele, mais precisamente sobre a população civil e sobretudo sobre as crianças, uma nova forma de calamidade – as sanções económicas. Assim, para “punir” Saddam Hussein por ter tentado anexar o Kuwait, o Conselho de Segurança das Nações Unidas decidiu proibi-lo de exportar o seu petróleo para o mercado mundial, ou, por outras palavras, decidiu asfixiá-lo financeiramente. Para estrangular o sistema, foi proibido ao Iraque não só exportar a sua única produção, mas também importar aquilo de que necessitava para alimentar, tratar e educar a sua população. A interdição afectava produtos como a farinha, o azeite, os medicamentos e as vacinas, assim como cadernos, borrachas e lápis.

Os resultados não foram imediatamente visíveis, porque o Iraque não era um país pobre e dispunha de algumas reservas. O seu sistema de saúde, de distribuição de alimentos e de educação figurava mesmo entre os mais desenvolvidos do Médio Oriente. Mas os efeitos do embargo acabaram por aparecer com toda a clareza. Embora os benefícios políticos obtidos pela comunidade internacional ainda não estejam completamente demonstrados, o impacto das sanções sobre a população civil não podia ser mais claro. A taxa de mortalidade de crianças com menos de cinco anos duplicou no país desde o fim da guerra do Golfo e é actualmente superior à de países como o Brasil, o Peru ou o Egipto. Calcula-se que tenham já morrido quinhentas mil crianças em consequência do embargo. A malnutrição generalizou-se e os sistemas de abastecimento de medicamentos e de água potável desmoronaram-se. O sistema escolar teve idêntica sorte - as crianças que continuam a ir à escola sentam-se no chão e trabalham com materiais obsoletos que não podem ser substituídos. A taxa de abandono escolar subiu em flecha, sobretudo no que se refere às meninas entre os dez e os doze anos, que são obrigadas a procurar trabalho para completar os rendimentos da família no fim do mês. O abrandamento do embargo, acordado desde o início de 1997, irá permitir ao Iraque regressar à sua situação anterior? Dificilmente o fará, já que os efeitos de uma tal derrocada irão certamente persistir durante muito tempo.

Os efeitos do embargo foram semelhantes no Haiti, podendo, no entanto, ser mais graves tendo em conta o nível de pobreza inicial do país. Aí, as sanções económicas foram aplicadas durante três anos, depois do golpe de estado militar de 1991. Entre essa data e o final de 1993, a taxa de malnutrição que se verificou entre crianças com menos de cinco anos examinadas nas instituições de apoio da ilha subiu de 27% para mais de 50%. O impacto das sanções foi desastroso para o conjunto dos já escassos sistemas de saúde e educação em todo o país.

O último exemplo é o do Burundi, um país à mercê de intensas tensões políticas, de um genocídio encapotado e cujos vizinhos decidiram que precisava de ser “punido”. Punido porquê? Pelo facto de possuir um chefe de Estado auto proclamado, como se toda a região circundante não padecesse também de um défice democrático generalizado. As consequências não se fizeram esperar – as tensões internas ficaram ao rubro, começaram a suceder-se massacres atrás de massacres e as organizações humanitárias estão a deparar-se com imensos obstáculos na sua tarefa de ajudar a população.

Todas estas sanções, cujo impacto na vida dos civis pudemos observar também na Sérvia, parecem repetir-se falhando sistematicamente o alvo – impotentes para atingir o corpo político visado, geralmente um chefe de Estado muito pouco preocupado com o bem-estar da população civil, elas castigam, na realidade, sobretudo aqueles cujo poder político é praticamente inexistente – as crianças. Sistema absurdo este, cujo impacto no futuro dos países “sancionados” está ainda longe de se conseguir determinar, e em que o tirano, virtuosamente denunciado, acaba por não ser atingido. Se por sancionar, se subentende na realidade eliminar o chefe de Estado incriminado, então a solução não passará certamente por aí e deveriam ser levantadas algumas restrições, deixando passar, por exemplo, bens de primeira necessidade indispensáveis para as crianças. Nunca ninguém tentou iniciar uma acção capaz de penalizar realmente os políticos responsáveis pelos infortúnios daqueles que são governados. O que podemos observar, pelo contrário, são os antigos ditadores a gozar as suas reformas tranquilas e principescas, graças ao dinheiro que conseguiram roubar ao seu povo, uns na Côte d'Azur, como Baby Doc do Haiti, e outros em residências rurais no Zimbabué, como o sanguinário coronel Mengistu. Os exemplos vão-se acumulando. Quanto àqueles que ainda estão no poder, é do conhecimento geral que não estão propriamente nas ruas da amargura, seja em Bagdade, em Belgrado ou em qualquer outra parte do mundo[2].

Refugiados e “deslocados

Outra consequência inevitável da guerra é a imensidão das deslocações de população e dos agrupamentos de refugiados, nos quais as crianças acabam por ser as primeiras vítimas da escassez de provisões e dos êxodos precipitados impostos pelas peripécias político-militares, como pudemos observar a partir de 1994 na região Oriental da República Democrática do Congo.

Hoje em dia existem por todo o mundo vinte e oito milhões de “refugiados” – aqueles que atravessaram uma fronteira – e de “deslocados”, que são aqueles que permaneceram no seu país. Distinção teórica que pouca diferença faz na vida dos interessados. Do ponto de vista do Direito, só os refugiados podem reivindicar uma protecção jurídica especial, porque se viram forçados a abandonar o seu país, enquanto que os “deslocados” são, na realidade, refugiados no seu próprio país. Na prática, esta distinção não faz muito sentido – os “deslocados” do Sudão, que fugiram de uma guerra devastadora no sul do país, estão numa situação a todos os títulos comparável à dos seus compatriotas refugiados nos países vizinhos. Quanto à protecção jurídica de que os refugiados deveriam beneficiar, esta de nada valeu aos ruandeses massacrados desde o início de 1997 na região noroeste da República Democrática do Congo. Massacrados pelas armas e pela fome.

Quer se trate de “refugiados” quer de “deslocados”, mais de três quartos e, por vezes, mesmo nove décimos de entre eles, são compostos por mulheres e crianças. Imensas concentrações desumanas onde a vida gravita em torno da distribuição de víveres, e onde as crianças deambulam sem objectivo, de um acampamento para outro; campos enormes onde reinam a insegurança, a promiscuidade e a violência; onde circulam armas, onde os mais jovens se deixam levar pelos agentes recrutadores, onde os adolescentes são agredidos. Centenas de milhares de crianças nascem e sobrevivem nesses campos sem escolarização – em todo o mundo, apenas têm acesso à escola menos de 15% das crianças destes campos. Por outro lado, muitas destas crianças são privadas da sua nacionalidade, logo, de um sentimento de identidade nacional que provavelmente permanecerá ausente durante toda a vida. A idade permanecerá em muitos casos uma incógnita nas suas vidas e, para aqueles que se perderam dos pais, o próprio nome também. Podemos citar como exemplo o caso dos trezentos e cinquenta mil refugiados cambojanos imobilizados na fronteira khmero-tailandesa, com a Tailândia e o Camboja a “atirarem a batata quente” de um lado para o outro, a primeira negando-lhes a nacionalidade tailandesa e o segundo recusando-lhes a nacionalidade khmer, porque eles tinham fugido do país na altura sob a mão de ferro dos Khmers Vermelhos. Como sobreviver no mundo actual sem identidade, sem nacionalidade e sem saber a idade nem o próprio nome?

Para além disso, as condições de vida nos campos são cada vez mais precárias. Nos últimos quinze anos, o número de refugiados e deslocados tem vindo a dilatar-se desmesuradamente em consequência dos conflitos mais recentes – as guerras na América Central, no Afeganistão, em Moçambique, no Ruanda, etc., mas os recursos que a comunidade internacional põe à sua disposição não sofreram praticamente qualquer alteração. Muito pelo contrário, as rações alimentares foram diminuindo ao longo dos anos e a malnutrição existente nos campos tem aumentado. Aumenta ainda mais quando estes campos servem de base a soldados perdidos que não mostram qualquer escrúpulo em se servirem primeiro dos produtos alimentares, para eventualmente os revenderem e comprarem armas. Verifica-se, assim, que a malnutrição nunca foi tão grave nem tão frequente nesses campos como o é agora. Segundo a Unicef, a incidência da emaciação, ou emagrecimento muito acentuado, atinge nas crianças a tremenda percentagem de 40% em Angola, na Libéria e no Sudão.

Ninguém duvida que viver nesses campos deve ser semelhante a viver um autêntico pesadelo, mas este é um pesadelo que pode vir a durar quinze ou mais anos, como vimos no caso dos três milhões de refugiados afegãos fixados no Irão e no Paquistão, dos eritreus instalados no Sudão, dos moçambicanos no Malávi, dos cambojanos na Tailândia, etc. Em casos como estes, em que se tornarão as crianças? Adolescentes para quem o regresso ao país natal aparece como uma ideia abstracta, um país que eles nem sequer conhecem, ao mesmo tempo que vêem impedida a sua integração no país de “acolhimento”. Presas fáceis dos agentes de recrutamento e dos proxenetas que infestam os campos de refugiados.

A criança treinada para matar

O auge deste circo de horrores é precisamente atingido pelo recrutamento de crianças-‑soldado. Quantos “soldados” de seis, oito e doze anos existirão por esse mundo fora? A última estimativa credível remonta ao ano de 1988. Nessa altura, atingia já o número pungente de duzentos milhares de crianças. Mas isto foi antes dos conflitos do Ruanda, do Burundi, da Libéria, da Serra Leoa, antes da explosão do conflito na Jugoslávia, antes ou mesmo durante a guerra entre o Irão e o Iraque, mas em todo o caso, antes de serem tornadas públicas as atrocidades que tiveram lugar neste último conflito.

Esta estimativa encontra-se assim claramente desactualizada, e neste momento é impossível proceder a um novo estudo. Mas todos os que se deslocaram recentemente aos campos de batalha, principalmente em África, são testemunhas da notória juventude de alguns “combatentes”. Tivemos oportunidade de ver com os nossos próprios olhos grupos de “soldados”, no Ruanda, em que os mais velhos nem sequer doze anos tinham. No Camboja, as facções que ainda hoje continuam a assassinar-se pelo poder mantiveram certos hábitos do tempo de Pol Pot e continuam a recrutar soldados pré-adolescentes.

A história recente põe à nossa disposição um leque enorme de exemplos desta tendência, sendo que o mais abjecto de todos será o de obrigar crianças com apenas dez anos a matar e a torturar, às vezes os próprios pais, fazendo-lhes literalmente uma lavagem ao cérebro. Foi o que aconteceu ou ainda acontece em Moçambique, no Uganda, na Libéria e na Serra Leoa. No Afeganistão, na Nicarágua e em El Salvador, foram raptadas dezenas de milhares de crianças para irem engrossar as fileiras dos guerrilheiros e para as obrigar a cometer atrocidades a que os próprios soldados adultos às vezes se recusavam.

Por vezes, para chegar a este ponto, a violência ou a coacção não são suficientes. É necessário um doutrinamento, uma fanatização cuidadosamente organizados. Esta foi a política adoptada pelo Irão durante a guerra com o Iraque. Por deliberação dos dirigentes, não se podiam perder muitos homens válidos nos campos de minas. Para desminar, as crianças serviam muito bem. Então, explicava-se-lhes no meio de reuniões “religiosas” que elas iriam servir o seu país, e mais tarde, alcançar directamente o paraíso. Para tal, foram instruídos actores encarregados de lhes mostrarem o caminho e que, a dado momento, davam o sinal de partida. E foi assim que vimos milhares de crianças precipitando-se sobre campos de minas, levando ao pescoço chaves de plástico, as chaves do paraíso, e gritando antes da mina explodir a seus pés: “Allah Akbar!” Pensa-se que cerca de cinquenta mil crianças iranianas terão morrido assim em nome de Deus. Menos sorte tiveram as sobreviventes, enclausuradas durante anos nas prisões iraquianas, mortificadas por terem sobrevivido, aterrorizadas com a ideia de voltar ao seu país, envergonhadas por ainda estarem vivas.

Mas em certas ocasiões, o recurso à religião não basta. É nesse caso que intervém uma técnica que consiste em fazer com que a criança cometa repetidamente atrocidades, de preferência sobre a sua própria família. Este método foi abundantemente utilizado em Moçambique pela Renamo, guerrilha nessa altura financiada pela África do Sul, e mais recentemente pelas facções em conflito na Libéria e na Serra Leoa. Os “meninos-lobos”, como eram apelidados em Moçambique, eram obrigados a matar, a matar os parentes, de maneira a destruírem quaisquer laços afectivos que os ligassem à sua família, ficando assim completamente dependentes da guerrilha que os tinha raptado. Obrigadas a assassinar os pais, os camponeses e as pessoas mais próximas, as crianças tornar-se-iam dóceis; qualquer tentativa de voltar atrás seria impedida. A dado momento, a Renamo dispunha de pelo menos dez mil dessas crianças-soldado, as mais jovens das quais mal tinham completado os seis anos de idade. Em Angola, de acordo com um inquérito levado a cabo em 1995[3], 36% do total de crianças do país tinham “acompanhado” ou ajudado os soldados.

Mas há situações que requerem algo mais, além da religião, do doutrinamento e da coacção. E é aqui que surge a droga. “Davam-nos marijuana e comprimidos” – conta-nos uma criança liberiana “desmobilizada” – “Quando se toma essas coisas, não se sente mais nada, não se pensa em mais nada que não seja matar.”

Porque razão alguns exércitos e algumas guerrilhas se interessam tanto pelas crianças-‑soldado que, a priori, se poderiam considerar inexperientes e pouco eficazes? Antes de mais há que ter em conta a escassez de soldados adultos – há alturas em que os exércitos precisam de mais mãos para trabalhar e, por isso vão-se buscar crianças para integrarem contingentes suplementares, como no caso da decisão tomada pelo exército nazi em 1944, de incorporar soldados de dezasseis anos.

Mas isto não é tudo. Segundo o raciocínio dos recrutadores, uma criança é infinitamente mais maleável, mais facilmente manipulável e condicionável do que um adulto; é menos propensa à revolta e mais sensível aos métodos de terror infligidos.

Não exige soldo nem qualquer gratificação especial, a não ser a sensação de pertencer a um grupo de recrutas, a um grupo onde seja reconhecida. Neste raciocínio entra também a ideia de que uma criança pode não se aperceber do que lhe estão realmente a pedir; de que a fronteira entre o bem e o mal ainda é indistinta para ela. Tendo em conta tudo isto, porque não aproveitar um recurso tão valioso, que abunda em excesso nos campos de refugiados, nos orfanatos, nas cidades e nas escolas?

Raptam-se então os rapazes, tal como pudemos assistir muito recentemente em vários cenários de conflitos armados, mas também se raptam meninas, situação que está a decorrer neste preciso momento a Norte do Uganda. O destino dessas meninas é o “casamento” com um soldado, a sujeição a relações sexuais, e a fazer tudo o que é necessário a um exército em movimento: cozinhar, limpar, etc. Várias centenas destas meninas ugandesas, raptadas pelo “Exército de Resistência do Senhor”, foram libertadas recentemente e estão actualmente em fase de tratamento. Mas existirá alguma forma de as resgatar verdadeiramente da guerra? Qual será a ajuda que lhes poderemos oferecer quando aquilo por que elas passaram está muito além da nossa imaginação? Também elas foram obrigadas a cometer atrocidades, a beber sangue humano, a sujeitarem-se a todos os delírios dos soldados. Quando isto acontece a uma criança de oito, nove anos de idade, o que fazer para que ela se reconcilie de novo com a vida?

Para algumas destas crianças, o condicionamento e a solidão são de tal maneira extremos que o exército se torna, paradoxalmente, no seu único refúgio, no único lugar com que se conseguem identificar, uma espécie de substituto da família que perderam. Em Maio de 1993, o governo da Serra Leoa ordenou a desmobilização de todos os soldados com menos de quinze anos. A “desmobilização” foi, no entanto, mais problemática do que se previa inicialmente. É absolutamente indispensável um trabalho de equipa que as consiga dissociar da nova “família” que pensavam ter encontrado, sem que se sintam órfãs uma segunda vez.

O progresso tecnológico do armamento militar também faz com que o recrutamento de crianças-soldado se vá tornando cada vez mais fácil, dada a proliferação de armas leves ou de pequeno calibre. Antigamente, as armas eram demasiadamente grandes ou pesadas para elas. Hoje em dia a história é outra. Uma espingarda de assalto de origem soviética AK 47 ou uma M 16 norte-americana são ao mesmo tempo leves, fáceis de montar e desmontar e bastante acessíveis. O “preço corrente” de uma AK 47, por exemplo, é neste momento inferior a dez dólares em África e existem M 16 disponíveis em todo o lado.

Com efeito, os responsáveis por este alistamento maciço de crianças na guerra andam de mãos dadas com aqueles que compram as armas e as colocam à disposição de todos, e aqueles que as vendem. Todos lucram com isso. Lucros militares por um lado, lucros comerciais por outro. O negócio das minas continua de vento em popa, não obstante os esforços meritórios de todos aqueles que lutam para que elas sejam completamente banidas. No entanto, o mercado dos armamentos tradicionais vai proliferando a uma escala bem maior. De resto, os números falam por si, ao revelar que os orçamentos militares de todo o mundo, em francos ou em dólares constantes, se multiplicaram por quinze a partir de 1945, tendo atingido em 1993 os valores alucinantes de 790 biliões de dólares (destes, 121 biliões foram gastos pelo Terceiro Mundo). É verdade que esta quantia revela uma ligeira diminuição em relação ao pico histórico atingido em 1987, o que significa que pelo menos neste aspecto, o desmoronamento do Império Soviético teve a sua utilidade. Mas os números continuam a ser impressionantes, sobretudo se os compararmos com os orçamentos destinados em todo o mundo às áreas da educação e da saúde e os que se referem à totalidade dos serviços destinados às crianças, em que as quantias envolvidas são cerca de cem vezes inferiores.

No entanto, não apontemos o dedo acusador aos progressos tecnológicos nem aos interesses económicos. O culpado é ainda, e sempre, o mais profundo desprezo em relação à criança. Recrutar crianças, manipulá-las, obrigá-las a matar ou a torturar, são ideias que à partida não decorrem de estratégias financeiras, embora os traficantes de armas acabem por beneficiar largamente desta situação. Elas são uma opção deliberada de estrategas em ponto pequeno que arrancam as crianças das escolas e forçam a guerra a entrar nas suas vidas e para sempre. Essa escolha é uma escolha racional, deliberada, calculada. O mundo saturado de imagens e de horrores em que vivemos ainda não conseguiu avaliar bem a amplitude dessa abjecção. De que é que estará à espera?

[1] Foi publicado recentemente um livro incontornável sobre esta temática, um testemunho de um sobrevivente do campo de concentração de Maidanek. O autor tinha quatro anos quando foi levado para o campo. Frangments, Une enfance 1939-1948, Binjamin Wilkomirski, Calmann-Lévy, Paris, 1997.
[2] N.T. -O conteúdo global desta obra, e nomeadamente este excerto, deve ser lido atendendo ao facto de a sua edição original datar do ano de 1997.
[3] A Situação Mundial da Infância, Unicef, Brasília, 1997.