Sementes de violência
Infobib - Boletim da Biblioteca da Escola Secundária/3 de Baltar
2005
A sombra do quadrante
Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre.
Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida
Tão doidas ambições, tanto ódio, tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um Punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa.
Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre.
Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida
Tão doidas ambições, tanto ódio, tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um Punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa.
Eugénio de Castro
Eugénio de Castro, no seu poema A sombra do quadrante, lança a seguinte interrogação: “Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida / Tão doidas ambições, tanto ódio, tanta ameaça?”
A Biblioteca decidiu abordar o tema da violência, não só porque é uma questão actual, mas também porque é um problema sem soluções definitivas e incontestáveis. E sobretudo porque a todos diz respeito, quer como seus autores, quer como suas vítimas.
É, não obstante, um dado incontroverso que a violência impregnou as artes e a cultura e muito particularmente o cinema, a música, a televisão e os videogames.
Como refere Carlo Climati (in Os jovens e o esoterismo, Lisboa, Paulinas, 2001):
... Depois do rock, da banda desenhada e do cinema, também os jogos de vídeo foram «contaminados» por esta tendência.
Certos jogos de vídeo parecem contribuir para um processo de habituação ao mal por parte dos jovens. As novas gerações cada vez se acostumam mais à violência, até ao ponto de esta as deixar indiferentes. Ou antes, em certos casos, as encenações de “terror” e as imagens monstruosas chegam mesmo a tornar-se instrumentos “fascinantes”, utilizados para vender mais jogos de vídeo e para chamar a atenção dos jovens.
Por outro lado, uma nota predominante dos conteúdos destes jogos de vídeo é a luta pela sobrevivência. O referido autor (ob. cit.) acrescenta que, nestes jogos,
... o jogador tem de se confrontar com contínuos desafios de morte para conseguir manter-se vivo, aumentando, ao mesmo tempo, o seu poder. O problema é que esta luta se transforma, por vezes, numa verdadeira educação para a violência e para o espezinhamento dos outros.
A mensagem transmitida aos jovens é clara: para sobreviver e conquistar o poder é lícito fazer seja o que for: destruir, espancar, ultrapassar, matar ou esmagar os próprios adversários. Não importa aquilo que se faz. O que conta é alcançar os próprios objectivos. Bem-vinda seja a “morte” dos outros, se ela representa a nossa vida. Tudo isto é certamente horrível, mesmo quando se trata de um jogo...
Não se julgue, porém que os referidos jogos são meros entertainments, pois inculcam nos seus jovens utilizadores determinados padrões de conduta e regras de comportamento nocivas e anti-sociais. Como descortina Carlo Climati (ob. cit.), dos jogos
... ressaltam dois conceitos verdadeiramente negativos: a “corrida sem regras” e a ideia que “só os mais fortes e experientes conseguem chegar à meta”. Os jovens aprendem assim a acreditar que, para ter êxito, tudo é permitido, até as formas de comportamento incorrecto. No fim, os mais fortes triunfam sobre os mais débeis. Eis um tema recorrente na filosofia subjacente a muitos jogos de vídeo. Quem bate com mais força é quem vence...
Se o alvo da nossa análise for o cinema chegaremos a análoga conclusão. Com efeito, sucedem-se novas versões da mesma série ou a sua continuação, mas a última é incomparavelmente mais grotesca do que a anterior e a violência é avassaladoramente maior. O público é atraído pela espiral de violência e de grosseria. O autor supra referido (ob. cit.) esclarece que:
... O público quase parece afeiçoar-se, de forma mórbida, a estes implacáveis assassinos cinematográficos, que voltam sempre a ressuscitar e a atacar outras pessoas. Os jovens não se contentam em vê-los num único filme. Desejam que eles voltem a matar, de forma original e diferente, e os produtores, interessados em ganhar dinheiro, satisfazem o seu desejo, fazendo centenas de películas de teor macabro e violento.
É certo que as histórias tradicionais também são caracterizadas por uma certa agressividade e até por alguma violência. Em todo o caso, apenas com o fito de demonstrar que a realidade também contempla essa faceta. Contudo, o bem acaba sempre por vencer. A mensagem que prevalece é a do bem, a da punição do mal e a do regresso à ordem.
Já as novas criações, como bem realça João César das Neves (in Acordar do Sonho, Lisboa, Ed. Verbo, 2003)
… têm como herói o mau, que se alegra com os gemidos das vítimas e os gritos de horror dos inocentes. Nelas, o propósito do jogo é comer mais escravos, atropelar peões, espancar adversários ou arrasar cidades. O realismo do sangue a espirrar e dos estertores da morte só se compara com o maquiavelismo dos planos de zombies, bruxas e dráculas. O diabo, que os pais consideram que não existe, está presente em nome, pessoa e efeitos nas histórias preferidas dos seus filhos.
Seria ingenuidade pensar que o único ou o principal motivo que justifica a proliferação dos filmes e vídeos em apreço é o lucro dos produtores. É indubitável que o factor financeiro não é de menosprezar. Como conclui o já aludido Carlo Climati (ob. cit.), ainda a propósito desta inesgotável produção,
... mais uma vez, quem decide é o “deus dinheiro”...
Outras serão as razões pelas quais a violência se enraizou na produção cinematográfica e afins. Não se pretende, neste artigo, esgotar a análise das mesmas. Será oportuno ponderar duas perspectivas de análise.
A primeira aponta para razões de ordem convencional, ou seja, o homem afirma-se pela força física. Sam Keen (in O homem na sua plenitude, S. Paulo, Cultrix, 1998) alerta que
... A psique masculina, antes de mais nada, é a psique do guerreiro. Nada nos plasma, molda e modela tanto como a exigência da sociedade de que nos tornemos especialistas no uso do poder e da violência, ou, como dizemos eufemisticamente, na “defesa”. Historicamente, a principal diferença entre homens e mulheres é que sempre se esperou que os homens fossem capazes de recorrer à violência quando necessário. A capacidade e a disposição para a violência têm sido centrais na nossa autodefinição. A psique masculina não foi construída sobre o racional: “Penso, logo existo”, mas sobre o irracional: “Conquisto, logo existo”.
Quanto ao que veio a tornar-se o estado de emergência banal da vida moderna, concedemos ao Estado o poder de interromper a vida dos rapazes, de os convocar para servir o exército e iniciar no ritual da violência. Clichés que passam por sabedoria dizem-nos: “O exército fará de si um homem”, e “Todos os homens precisam de ter a sua guerra”.
O autor denuncia mesmo que este preconceito atinge o extremo de poder prejudicar ou aniquilar determinadas vocações ou percursos.
... Muitos homens criativos que conheço eram sensíveis, compassivos demais para lutar. E quase todos cresceram sentindo-se, de certo modo, inferiores e com a certeza de que não tinham passado a prova da masculinidade. Desconfio que muitos escritores ainda estão a mostrar aos valentões do bairro que a pena é mais forte do que a espada. A prova modelou-nos, quer tenhamos lançado bombas ou sido apanhados por elas...
No que se refere à segunda perspectiva, é seguro que, na sociedade actual, o homem não dialoga sobre a sua natureza íntima, não partilha sentimentos, não encontra um interlocutor atento e disponível. Esta lacuna − nas relações pai/filho, professor/aluno, marido/mulher –provoca frustração, revolta e raiva. Eis as sementes da violência. O ser humano revolta-se porque não encontra condições para realizar a sua principal vocação.
Wolfgang Salewski e Peter Lanz (in A Nova Violência – e como enfrentá-la, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, 1978) relatam a seguinte história verídica de Mark Twain, escritor e satírico americano:
... certa vez, chegou demasiado tarde a um jantar para o qual tinha sido convidado. Quando a dona da casa, distraída pela organização do banquete e pelo grupo de ilustres convidados, lhe deu as boas-vindas, Twain pediu desculpa pelo seu atraso com as seguintes palavras: “Tem de desculpar-me por ter chegado só agora, minha querida senhora, mas tive necessidade de matar a minha velha tia antes de vir.” E a dona da casa respondeu-lhe: “Claro que lhe perdoo, caro mestre, isso por vezes acontece.”
Atente-se, todavia, ao comentário que os autores acrescentam à história:
Assim, superficialmente, a história pode provocar o riso. Mas, se pensarmos um pouco, podemos ser invadidos pelo medo. O que há cem anos Mark Twain quis tratar como uma graça tornou-se hoje numa triste verdade. Trocam-se argumentos sem, de facto, se entrar em contacto uns com os outros. Falamos, sem dúvida, mais do que outrora. Os meios técnicos de comunicação tornam possível as pessoas falarem umas com as outras, em quase todos os pontos do mundo. Com o auxílio de cabos submarinos e satélites transpõem-se os oceanos. No entanto, compreendemo-nos cada vez menos.
A violência é, na verdade, um drama actual, mas não podemos soçobrar, pois se são inolvidáveis os seus efeitos, são também irreversíveis as consequências da boa formação do carácter por via da educação. Como ensina João César das Neves (ob. cit.),
Os filmes e jogos devem ser usados também para contrastar com a vida real. O normal é que os jovens que contemplam de forma tão viva horrores tão profundos ganhem uma insensibilidade emocional. Mas também é possível que, por reacção, sejam levados a compreender melhor a beleza, a bondade, a alegria e a felicidade. Cabe aos educadores conduzir e potenciar essa reacção. Estes horrores podem permitir adquirir critérios de julgamento e edificar o carácter, o essencial da educação.