sábado, 19 de maio de 2007

MyLai: uma análise da maldade em grupo

M.Scott Peck
Gente da Mentira
Cascais, Sinais de Fogo, 2001



Excertos adaptados


MyLai: uma análise da maldade em grupo

Prefácio à maldade em grupo

Os gatilhos são premidos por indivíduos. As ordens são dadas e cumpridas por indivíduos. Em última análise, cada acto humano é resultado de uma escolha individual. Nenhum dos indivíduos que participou nas atrocidades de MyLai ou no seu encobrimento está isento de culpa. Até o piloto de helicóptero – o único suficientemente bom e corajoso para tentar impedir o massacre – pode ser culpado por não reportar o que vira para além do primeiro escalão de autoridade acima de si.

Há muitos anos que a tendência de comportamento dos grupos humanos me parece semelhante à dos indivíduos – excepto a um nível mais primitivo e imaturo do que se possa pensar. Porque é que isto é assim – porque é o comportamento dos grupos surpreendentemente imaturo – por que motivo, de uma perspectiva psicológica, são estes menos do que a soma das suas partes – já não sei responder.[1] Mas de uma coisa tenho a certeza, no entanto: existe mais do que uma resposta certa. O fenómeno da imaturidade de grupo é – usando o termo psiquiátrico – “multi-determinado”. Quer isto dizer que é o resultado de múltiplas causas. Uma dessas causas é a especialização excessiva.
[1] É uma questão verdadeiramente importante e merecedora de grande pesquisa e aprofundamento. É um tema não só específico da maldade em grupo em geral – como se não fosse suficiente – mas também crucial para a compreensão de todos os fenómenos de grupos humanos, desde as relações internacionais à natureza da família.

A especialização é uma das grandes vantagens dos grupos. Existem processos para um grupo funcionar muito mais eficientemente do que os indivíduos. Em virtude de os seus funcionários se terem especializado em directores executivos, gráficos, moldadores, e técnicos da linha de montagem (que, por sua vez, são também especializados), a General Motors consegue produzir um número gigantesco de veículos. O nosso padrão de vida extraordinariamente elevado baseia-se inteiramente na especialização da nossa sociedade. O facto de eu possuir os conhecimentos e o tempo para escrever este livro é consequência directa do facto de ser um especialista dentro da nossa comunidade, totalmente dependente de agricultores, mecânicos, editores e vendedores de livros para o meu bem-estar. Dificilmente posso considerar a especialização como uma coisa má. Por outro lado, estou totalmente convencido de que muito do mal dos nossos tempos se relaciona com a especialização, e de que precisamos desesperadamente de desenvolver uma atitude de precaução desconfiada. Penso que deveríamos tratar a especialização com o mesmo grau de desconfiança e medidas de segurança com que tratamos os reactores nucleares.

A especialização contribui para a imaturidade dos grupos e para o seu potencial para a maldade através de vários mecanismos diferentes. Por agora, limitar-me-ei a tecer considerações sobre apenas um desses mecanismos: a fragmentação da consciência. Se, na época de MyLai, ao percorrer os corredores do Pentágono, parasse para falar com homens responsáveis pela direcção de produção e transporte de bombas de napalm para o Vietname, e os questionasse sobre a moralidade da guerra e consequentemente sobre a moralidade do que estavam a fazer, esta era a resposta que invariavelmente recebia:

— Oh, agradecemos a sua preocupação, agradecemos mesmo, mas acho que veio ter com as pessoas erradas. Não somos nós o departamento que deseja. Isto é apenas o departamento do arsenal. Só fornecemos as armas – não somos nós que determinamos onde e como são usadas. Isso é política. Devia era falar com o pessoal da política, ao fundo do corredor.

E se seguisse esta recomendação e exprimisse as mesmas apreensões no departamento de política, a resposta seria:

— Oh, compreendemos que estão envolvidos assuntos mais complexos, mas acho que estão fora do nosso âmbito. Apenas determinamos como deve ser conduzida a guerra – e não se deve ser conduzida. Compreende, as Forças Armadas são apenas uma secção da divisão executiva. Só fazem o que lhes mandam fazer. Esses assuntos mais complexos são decididos ao nível da Casa Branca, e não aqui. É aí que deve expor as suas apreensões.

E assim por diante.

Sempre que os papéis desempenhados por indivíduos num grupo se tornam especializados, torna-se possível e fácil para o indivíduo descartar a responsabilidade moral para qualquer outra parte do grupo. Desta forma, não só o indivíduo põe de lado a sua consciência, como a consciência do grupo como um todo se torna tão fragmentada e diluída que deixa de existir. Veremos esta fragmentação vez após vez, de uma forma ou de outra, na discussão que se segue. O facto é que é inevitável que qualquer grupo permaneça potencialmente sem consciência e mau até que cada um dos indivíduos se sinta pessoal e directamente responsável pelo comportamento do grupo inteiro – do organismo – do qual faz parte. Ainda estamos longe de chegar a esse ponto.

Tendo presente a imaturidade psicológica dos grupos, vamos examinar alguns aspectos de ambos os crimes de MyLai: as atrocidades em si e o seu encobrimento. Os dois crimes estão deveras interligados. Embora o encobrimento pareça menos atroz do que o massacre, são ambos farinha do mesmo saco. Como foi possível que tantos indivíduos tenham participado numa maldade tão monstruosa sem que nenhum deles tenha sido compelido pela sua consciência a confessar?

O encobrimento foi uma mentira de grupo gigantesca.

Como com qualquer mentira, o motivo principal do encobrimento foi o medo. Os indivíduos que cometeram os crimes – que puxaram o gatilho ou que deram as ordens – tinham razões óbvias para recear relatar o que tinham feito. Seriam julgados em tribunal marcial. Mas, então, o que dizer sobre o número muito maior de indivíduos que apenas presenciaram as atrocidades, mas que nada disseram sobre “aquela coisa tão negra e sangrenta”[2]? O que tinham eles a recear?
[2] Frase da carta de Ron Ridenhour.

Qualquer pessoa que dedique algum tempo a pensar sobre a natureza da pressão num grupo percebe que, para um elemento da Força de Intervenção Barker, denunciar um crime fora desse grupo exige uma grande coragem. Quem quer que o fizesse seria chamado “delator” ou “bufo”. Não existe pior nome que se possa chamar a alguém do que esse. Os bufos são muitas vezes assassinados. No mínimo, são condenados ao ostracismo. Para um vulgar civil americano, o ostracismo pode não parecer um destino assim tão terrível. “Então, se se for corrido de um grupo, pode-se sempre entrar noutro”, pode ser uma reacção. Mas lembremo-nos de que um membro das Forças Armadas não é livre para simplesmente aderir a outro grupo. Não pode sequer deixar as Forças Armadas até terminar o seu recrutamento. A própria deserção é um crime enorme. E por isso ele está preso às Forças Armadas, e até mesmo ao seu grupo militar em particular, excepto mediante intervenção das autoridades. Para além disto, as Forças Armadas fazem deliberadamente muitas outras coisas para intensificar o poder da pressão de grupo nas suas fileiras. Do ponto de vista da dinâmica de grupo, e em especial da dinâmica de grupos militares, não será estranho que os elementos da Força de Intervenção Barker não tenham denunciado os crimes do grupo. Nem sequer é surpreendente que o homem que finalmente delatou os crimes não pertencesse nem ao grupo da Força de Intervenção nem às Forças Armadas, na altura em que os denunciou.

Suspeito que existe uma outra razão extremamente importante para que os crimes de MyLai tenham ficado por denunciar durante tanto tempo. Não tendo falado com os indivíduos envolvidos, apresento uma mera conjectura. Mas, de facto, falei com muitos, muitos outros soldados que estiveram no Vietname nesses anos, e conheço profundamente as atitudes predominantes nas Forças Armadas naquela época. A minha sincera suspeita, portanto, é que os membros da Força de Intervenção Barker não confessaram os seus crimes por não estarem conscientes de os terem cometido. Claro que sabiam o que tinham feito, mas se tinham ou não a noção do significado e da natureza dos seus actos é outra coisa completamente diferente. Desconfio que muitos deles nem consideram que tenham cometido um crime. Não confessaram porque acharam que não tinham nada para confessar. Indubitavelmente, alguns esconderam a sua culpa. Mas outros, creio eu, não tinham culpas para esconder.

Como pode isto ser assim? Como pode um homem equilibrado assassinar e não saber que o fez?

A progressão da responsabilidade colectiva

O Indivíduo sob Pressão

Quando tinha dezasseis anos tirei os quatro dentes do siso nas férias da Primavera. Durante os cinco dias seguintes o maxilar não só me doía, como inchou e fechou. Não conseguia mastigar sólidos – só líquidos ou comida de bebé insípida. O sabor fétido a sangue estava constantemente na minha boca. No final daqueles cinco dias, o nível do meu funcionamento psíquico tinha sido reduzido ao dos três anos de idade. Tornara-me completamente egocêntrico. Era rabugento e piegas com os outros. Esperava que tivessem constante atenção para comigo. Quando qualquer pequenina coisa não corria precisamente como e quando eu queria, vinham-me as lágrimas aos olhos e o meu desagrado era enorme.

Acredito que quem já sofreu uma dor ou mal-estar crónicos significativos – por exemplo, durante uma semana – reconhece a experiência que acabo de descrever. Numa situação de mal‑estar prolongado, nós, humanos, tendemos natural e quase inevitavelmente a regredir. O nosso crescimento psicológico inverte-se; a nossa maturidade é posta de lado.

Muito rapidamente nos tornamos mais infantis, mais primitivos. O mal-estar é pressão. O que estou a descrever é uma tendência do organismo humano para regredir em resposta à pressão crónica.

A vida de um soldado em zona de combate é repleta de pressão crónica. Embora o Exército tivesse feito o que podia para minimizar a pressão nas tropas no Vietname (facultando sempre que possível entretenimento, períodos recreativos e de descanso e outras formas de relaxamento), o facto é que as tropas da Força de Intervenção Barker estavam sujeitas a uma situação crónica de pressão. Estavam no lado do mundo oposto a casa. A comida era má, o calor enervante, o alojamento desconfortável. Depois havia o perigo, geralmente menos grave no Vietname do que noutras guerras, mas talvez exercendo mais pressão por ser tão imprevisível. Chegava durante a noite, sob a forma de rajadas de morteiros quando os soldados achavam que estavam em segurança, armadilhas que os soldados faziam disparar quando iam a caminho das latrinas, minas que explodiam as pernas de um homem quando percorria uma bonita ladeira. O facto de a Força de Intervenção Barker não se ter deparado com o inimigo que esperava naquele dia memorável era típico da natureza do combate no Vietname. O inimigo aparecia quando menos se esperava.

Além da regressão, há outro mecanismo com o qual os seres humanos respondem à pressão. Trata-se de um mecanismo de defesa. Robert J. Lifton, que estudou os sobreviventes de Hiroshima e de outros desastres, chamou-lhe “dormência psíquica”. Numa situação em que os nossos sentimentos emocionais são esmagadoramente dolorosos ou desagradáveis, temos a capacidade de nos anestesiarmos. É uma coisa relativamente simples. A visão de um só corpo desmantelado e sangrento horroriza-nos. Mas se virmos corpos desses à nossa volta todos os dias, dia após dia, o horrível torna-se normal e perdemos a sensação de horror. Pura e simplesmente, desligamos. A nossa capacidade para o horror atrofia. Não conseguimos mais ver o sangue, ou cheirar o fedor ou sentir a agonia.

Inconscientemente ficamos anestesiados. Esta capacidade de auto-anestesia emocional tem obviamente as suas vantagens. Sem dúvida, a evolução foi-nos munindo desta característica que aumenta a nossa capacidade de sobrevivência. Permite-nos continuar a funcionar em situações tão drásticas que sucumbiríamos se preservássemos a nossa sensibilidade normal. O problema, no entanto, é que este mecanismo de auto-anestesia não parece ser muito específico. Se por vivermos no meio do lixo a nossa sensibilidade ao que é feio diminui, é provável que nós próprios comecemos a espalhar detritos e lixo à nossa volta. Insensíveis ao nosso próprio sofrimento, tornamo-nos insensíveis ao sofrimento dos outros. Tratados indignadamente, perdemos não só o sentido da nossa própria dignidade como também o sentido da dignidade dos outros. Quando já não nos incomoda ver corpos mutilados, deixa de nos incomodar mutilá-los nós. É de facto difícil fechar selectivamente os olhos a um certo tipo de brutalidade sem os fechar a toda a brutalidade. Como podemos tornar-nos insensíveis à brutalidade senão tornando-nos nós brutos?

Creio que então podemos assumir que, depois de um mês no campo com a Força de Intervenção Barker – um mês de má comida, de pouco sono, de ver camaradas mortos ou aleijados – o soldado comum estaria psicologicamente mais imaturo, primitivo e bruto do que poderia estar numa época e lugar de menos pressão.

E se normalmente regredimos em face da pressão, não poderemos dizer que os seres humanos têm mais tendência a ser maus em tempos de pressão do que em tempos de bem-estar? Eu creio que sim. Perguntamos como é que um grupo de cinquenta ou quinhentos indivíduos – dos quais poderíamos supor que apenas uma pequena minoria fosse má – pode ter cometido uma tamanha maldade como MyLai. Uma das respostas é que, devido à contínua pressão a que estavam sujeitos, os indivíduos da Força de Intervenção Barker eram mais imaturos e portanto piores do que seria de esperar numa situação normal. Em consequência da pressão, a distribuição normal do Bem e do Mal pendeu na direcção do Mal. No entanto, como veremos, este é apenas um dos factores que contribuiu para a maldade em MyLai.

Tendo considerado a relação entre a maldade e a pressão, será adequado referir a relação entre a bondade e a pressão. Aquele que se comporta com dignidade em tempos fáceis – por assim dizer, um amigo nos tempos bons – pode não ser assim tão digno quando as coisas correm mal. A pressão é um teste à bondade. Os verdadeiramente bons são aqueles que em tempos de pressão não abandonam a sua integridade, nem a sua maturidade e sensibilidade. A dignidade pode ser definida como a capacidade de não regredir em face da degradação, de não se tornar cego perante a dor, de tolerar a agonia e permanecer intacto. Tal como disse atrás, “uma medida – e talvez a melhor medida – da grandeza de uma pessoa, é a sua capacidade para o sofrimento”.[3]


[3] The Road Less Traveled (Simon & Schuster, 1978), pág.76 [O Caminho Menos Percorrido (Sinais de Fogo, 1999), pág. 80].

Dinâmica de grupo: dependência e narcisismo

Os indivíduos não regridem apenas em alturas de pressão, também o fazem em situações de grupo. Um dos aspectos desta regressão é o fenómeno de dependência do líder. É, de facto, admirável. Reúna qualquer pequeno grupo de estranhos – cerca de uma dúzia –, e quase sempre a primeira coisa que acontece é que um ou dois deles rapidamente assumem o papel de líder do grupo. Não acontece devido a um processo racional de eleição consciente. Acontece naturalmente – espontânea e inconscientemente. Porque é que acontece tão fácil e rapidamente? Uma razão, claro, é que existem indivíduos mais capazes de liderar os outros ou que desejam liderar mais do que os outros. Mas a razão mais básica é outra: é que a maioria das pessoas preferem ser seguidores. Mais do que qualquer outra coisa, é provavelmente uma questão de preguiça. É simplesmente mais fácil seguir e ser um seguidor em vez de um líder. Não se torna necessário agonizar sobre decisões complexas, planear em relação ao futuro, tomar iniciativas, arriscar a impopularidade ou ter muita coragem.

O problema é que o papel de um seguidor é um papel de criança. O indivíduo adulto é mestre do seu próprio navio, director do seu destino. Mas quando assume o papel de seguidor, delega no líder este poder: a sua autoridade sobre si mesmo e a sua maturidade como tomador de decisões. Torna-se psicologicamente dependente do líder, tal como uma criança é dependente dos pais. Desta forma, há uma forte tendência para o indivíduo comum regredir emocionalmente assim que se torna membro de um grupo.

O objectivo do Primeiro Pelotão da Companhia Charlie da Força de Intervenção Barker não era o de criar líderes, mas o de matar vietcongues. Na realidade, para atingirem os seus objectivos, as Forças Armadas desenvolveram e fomentaram um estilo de liderança de grupo que é essencialmente oposto ao de uma terapia de grupo. É uma velha máxima que os soldados não são feitos para pensar. Os líderes não são eleitos a partir de dentro do grupo mas nomeados a partir de cima e transformados em símbolos de autoridade. A disciplina militar por excelência é a obediência. A dependência do soldado em relação ao seu líder não é só encorajada, é obrigatória.[4] Dada a natureza da sua missão, as Forças Armadas fomentam de forma intencional e provavelmente realista a dependência regressiva que ocorre naturalmente nos indivíduos dentro dos seus grupos.

[4] Até os civis cometem actos maus com uma facilidade espantosa, quando sujeitos à obediência. Como David Myers descreveu no seu excelente artigo “A Psychology of Evil” (The Other Side [Abril 1982], pág. 29): “O melhor exemplo são as experiências de obediência de Stanley Milgram. Confrontados com um comandante imponente e próximo, 75 por cento dos seus sujeitos adultos obedeceram cegamente às instruções. Sob ordens, davam choques eléctricos aparentemente traumatizantes a uma vítima inocente que gritava na sala ao lado. Tratavam-se de pessoas normais – uma mistura de colarinhos brancos, colarinhos azuis e profissionais. Desprezavam esta tarefa. Mas a obediência sobrepunha-se ao próprio sentido moral.”

Em situações como a de MyLai, o soldado individual é uma situação praticamente impossível. Por um lado, lembra-se vagamente de ter ouvido numa aula que não precisa de renunciar à sua consciência e deve ter uma independência de julgamento adulta – até um dever – de recusar obedecer a uma ordem ilegal. Por outro lado, a organização militar e a sua dinâmica de grupo fazem todos os possíveis para tornar tão doloroso, difícil e anti-natural quanto possível que o soldado exerça independência de julgamento ou desobedeça. Não é claro que as ordens da Companhia Charlie tenham sido “matar tudo o que se mexa”, ou “dizimar a aldeia”. Mas se foram, será de admirar que as tropas tenham seguido essas ordens dos seus líderes? Esperaríamos, pelo contrário, que se tivessem amotinado em massa?

Se o motim em massa parece um tanto forçado, não poderíamos pelo menos prever um número reduzido de indivíduos que tivesse suficiente coragem para se revoltar contra o seu líder? Não necessariamente. Já fiz referência ao facto de que os padrões de comportamento de grupo são notoriamente semelhantes aos do indivíduo. Isto porque o grupo é um organismo. Tende a funcionar como uma entidade única. Um grupo de indivíduos comporta-se como uma unidade devido ao que é conhecido como coesão de grupo. Existem forças poderosas em jogo dentro de um grupo por forma a manter os seus membros individuais juntos e em linha. Quando estas forças de coesão falham, o grupo começa a desintegrar-se e deixa de ser um grupo.

Provavelmente, a mais poderosa destas forças de coesão é o narcisismo. Na sua forma mais simples e benigna, manifesta-se em orgulho do grupo. Quanto mais orgulhosos os membros do grupo se sentem do grupo, mais este se sente orgulhoso de si mesmo. Mais uma vez, as Forças Armadas fazem deliberadamente mais do que a maioria das outras organizações para fomentar o orgulho dentro dos seus grupos. Fazem-no através de uma série de meios diferentes, tais como desenvolver insígnias de grupo – bandeiras por unidades, divisas nos ombros e até destaques especiais de uniformes, como é o caso dos Boinas Verdes[5] – e incentivar a competição entre grupos, desde os desportos de intramuros à comparação de pontos por unidades.
[5] “The Green Berets“, Força Especial do Exército dos Estados Unidos. (N. da E.)

Uma forma de narcisismo de grupo menos benigna mas praticamente universal é o que se pode chamar “criação do inimigo”, ou ódio pelos “fora-do-grupo”. Podemos observar isto naturalmente nas crianças, à medida que aprendem a formar grupos.[6] Os grupos tornam-se exclusivos. Aqueles que não pertencem ao grupo (ao clube ou ao grupo exclusivo) são desprezados como sendo inferiores, ou maus, ou ambos. Se um grupo não possuir já um inimigo, muito provavelmente há-de criar um muito rapidamente. A Força de Intervenção Barker, é evidente, tinha um inimigo predeterminado: os vietcongues. Mas estes eram na sua maioria naturais do país do povo sul-vietnamita, do qual eram frequentemente impossíveis de distinguir. Inevitavelmente, o inimigo específico generalizou-se a toda a população vietnamita, pelo que o soldado americano comum não odiava apenas os vietcongues, mas sim os Gooks[7] em geral.

[6] Os psicólogos verificam que, quando grupos semelhantes de rapazes de doze anos, em acampamentos e sem liderança adulta, são encorajados a competir uns com os outros, a competição benigna transforma-se rapidamente numa violenta “guerra à escala dos doze anos” (Myers, “A Psychology of Evil”, pág. 29).
[7] Termo na gíria americana que designa os vietnamitas em geral. (N. da T.)

É praticamente do conhecimento geral que a melhor forma de cimentar a coesão de grupo é fomentar o ódio do grupo em relação a um inimigo exterior. As deficiências dentro do grupo podem ser facilmente ignoradas em virtude de se centrar a atenção nas deficiências ou ofensas dos fora-do-grupo. Assim, os alemães de Hitler puderam ignorar os problemas domésticos tomando os judeus como bodes expiatórios. E quando as tropas americanas não conseguiam combater eficazmente na Nova Guiné durante a Segunda Guerra Mundial, o Comando incentivava o seu espírito de classe ao mostrar filmes de japoneses a cometerem atrocidades. Mas esta utilização do narcisismo – quer seja deliberada, quer inconsciente – é potencialmente má. Examinámos extensivamente os modos em que os indivíduos maus fogem à auto-análise e à culpa, responsabilizando e tentando destruir o que quer ou quem quer que aponte as suas próprias deficiências. Agora vemos que o mesmo comportamento narcisista maligno ocorre naturalmente nos grupos.

Por tudo isto deve ser óbvio que o grupo que fracassa é o que provavelmente terá um comportamento mais maldoso. O fracasso fere o nosso orgulho e é o animal ferido que se torna perverso. Num organismo saudável, o fracasso é um estímulo para a auto-análise e a crítica. Mas como o indivíduo mau não tolera a autocrítica, é em momentos de fracasso que ele ou ela invariavelmente atacam de uma maneira ou de outra. E o mesmo se passa com os grupos. O fracasso do grupo e o estímulo à sua autocrítica ferem o orgulho e a coesão do grupo. Por isso, em todas as épocas e lugares, os líderes reforçam habitualmente a coesão dos grupos nas alturas de fracasso atiçando o ódio do grupo pelos estrangeiros ou pelo “inimigo”.

Voltando ao assunto específico da nossa análise, recordemos que na época de MyLai a operação da Força de Intervenção Barker tinha sido um fracasso. Depois de mais de um mês no terreno, o inimigo ainda não tinha sido confrontado. Ainda assim, os americanos tinham sofrido baixas de uma forma lenta e regular. A contagem de corpos do inimigo, no entanto, era zero. Ao fracassar a sua missão – que antes do mais consistia em matar – a liderança do grupo estava ainda mais sedenta por sangue. Dadas as circunstâncias, a sede tornara-se indiscriminada e as tropas satisfá-la-iam sem pensar.

O grupo especializado: a força de intervenção Barker

Já mencionei o potencial para a maldade que vem da especialização. Falei de como o indivíduo especializado está numa posição de passar a responsabilidade moral a outra roda dentada especializada da máquina, ou à própria máquina. Mesmo quando falei da regressão que ocorre nos indivíduos quando se tornam seguidores num grupo, estava a falar de especialização. O seguidor não é uma pessoa completa. Quem aceita o papel de não pensar nem liderar falseia a sua capacidade de liderar e de pensar. E como pensar e liderar já não é a sua especialidade ou dever, normalmente perde em consciência durante a troca.

Passando da especialização do indivíduo à especialização de grupo, observamos o mesmo tipo de forças perigosas em acção. A Força de Intervenção Barker era um grupo especializado. Não tinha outros objectivos – como jogar futebol ou construir barragens ou mesmo alimentar-se a si próprio. Existia apenas com um objectivo altamente especializado: procurar e destruir os vietcongues na província de Quang Ngai em 1968.

Quang Ngai. No entanto, o que o leitor pode não perceber é a grande componente de selecção e auto-selecção envolvidas na criação desse grupo. Embora nessa altura os cidadãos fossem recrutados para o serviço militar, a Força de Intervenção Barker não era propriamente uma amostra aleatória da população americana. Os membros mais pacifistas da sociedade excluíram-se a si próprios indo para o Canadá ou declarando-se objectores de consciência. Os membros menos pacifistas que desejavam evitar o combate preferiam normalmente alistar-se nas Forças Armadas em vez de serem recrutados. Ao alistarem-se, podiam optar pela Força Aérea ou pela Marinha, ou por outras especialidades não-combatentes do Exército, que provavelmente não os enviariam para o Vietname. A Força de Intervenção Barker era constituída quer por pessoal militar de carreira que optara deliberadamente pelas armas de combate, quer por “rufias” que haviam feito o mesmo (ou que, por qualquer outra razão, não conseguiram escapar ao facilmente evitável posto de soldado de infantaria).

Até ao final de 1968, bastante depois de MyLai, a guerra do Vietname foi travada, do lado americano, quase inteiramente por voluntários. Para muitos soldados de carreira, uma comissão de serviço no Vietname era muito desejada e procurada. Significava medalhas, excitação, mais dinheiro e promoção garantida. Existia um sistema único de voluntariado para jovens alistados. Quem se apresentasse como voluntário para o Vietname podia ter a certeza de três coisas: uma mudança de lugar, uma licença imediata e um bónus. Estes incentivos eram suficientes para garantir um fornecimento adequado de “carne para canhão” voluntária até ao posterior aumento do envolvimento das tropas militares americanas na guerra a seguir a MyLai.

O caso de um indivíduo prototípico pode ilustrar alguns aspectos do relacionamento entre a sociedade americana em 1968, as suas Forças Armadas e o subgrupo militar que combatia no Vietname. Chamemos a este indivíduo prototípico “Larry” e fixemos o seu local de origem em Iowa. Sendo o mais velho de seis irmãos, filhos de um pai agricultor por conta de outrem, alcoólico, e da sua extenuada mulher, Larry era sem dúvida um tormento desde que atingira a puberdade. Desistindo do liceu aos dezasseis anos, em 1965, sustentou-se parcamente com empregos esporádicos que não chegavam para pagar o seguro do seu automóvel, a gasolina e um estilo de vida que incluía muita bebida. Em Novembro de 1966, foi apanhado a tentar roubar uma estação de gasolina local. A comunidade adorou ver-se livre de Larry, mas ao mesmo tempo não queria aumentar a população prisional nem os impostos. Afinal de contas, o dinheiro tinha sido recuperado e não tinha ocorrido nenhum mal maior. E assim o juiz do condado disse a Larry que tinha duas opções: ou se alistava no Exército ou ia para a prisão.

A partir daí foi tudo muito simples. O pequeno gabinete do serviço de recrutamento do Exército funcionava no mesmo prédio que o do juiz. Escusado será dizer que existiam vagas na infantaria. Larry alistou-se para prestar serviço na Alemanha, pois ouvira dizer que as raparigas eram fáceis, e no espaço de uma semana estava a caminho de Fort Leonard Wood, no Missouri, para o treino básico. O treino de infantaria básica e mais tarde avançada (AIT) mantiveram-no tão ocupado que nem teve tempo para arranjar sarilhos. Mas tudo mudou quando chegou à Alemanha. As raparigas eram tão boas como deviam ser e a cerveja era mesmo óptima. Mas os preços eram altos. Pediu dinheiro emprestado e teve dificuldades em pagá-lo. Vendeu algum haxixe para um dealer mais importante, o que ajudou, mas depois o seu fornecedor resolveu mudar-se. As dívidas aumentaram. Larry, agora quase com dezanove anos, podia ver como iam acabar as coisas. Ou os seus credores lhe davam uma sova ou denunciavam-no no negócio do haxixe. Mas tinha uma saída. Alistou-se secretamente no Vietname e em três dias estava num avião de regresso aos Estados Unidos, deixando para trás os seus problemas. Sentiu-se bem. Tinha recebido o seu bónus para estoirar numa licença de dez dias de regresso ao Iowa, revendo os velhos amigos e impressionando as raparigas. Quanto ao futuro depois disso, não estava minimamente preocupado. Ouvira dizer que as mulheres no Nam eram ainda melhores do que as da Alemanha e, além do mais, seria excitante ver a verdadeira acção, para variar. Dar uns tiros nalguns Gooks até podia ser divertido.

Infelizmente, apesar da óbvia contribuição que seria para a nossa compreensão, nunca foi feita uma análise sociológica à Força de Intervenção Barker. Consequentemente, não posso dizer nada de científico. Não quero sugerir que o grupo inteiro fosse constituído de pequenos criminosos como “Larry”. Mas estou convencido de que a Companhia Charlie e a Força de Intervenção Barker não eram representativas do perfil transversal médio do povo americano. Todos os seus elementos chegaram a MyLai em Março de 1968, por razões de história pessoal e auto-selecção, através de um sistema de selecção também estabelecido pelas Forças Armadas americanas e pela sociedade americana como um todo. Não era um grupo de homens formado ao acaso. Era altamente especializado, não só na sua missão mas também na sua composição única.

A composição humana especializada da Força de Intervenção Barker (e de inúmeros outros grupos humanos) levanta três tópicos significativos. Primeiro, há a questão da flexibilidade que se pode esperar de seres humanos especializados. A Companhia Charlie era um grupo especializado de assassinos. Os indivíduos que a compunham tinham, por uma razão ou por outra, assumido o papel de assassinos, e tinham também sido deliberadamente seduzidos pelo sistema para esse papel. Além disso, treinámo-los para esse papel e entregámos-lhes armas para o desempenharem. Será assim tão surpreendente que, dada uma série de outras circunstâncias favoráveis, tenham assassinado indiscriminadamente? Ou que aparentemente não tenham sentido uma enorme culpa em relação àquilo que os levámos a fazer? Será realista encorajar e manipular seres humanos para formarem grupos especializados e simultaneamente esperar que eles, sem qualquer treino significativo, mantenham uma amplitude de visão muito para além da sua especialidade?

Um segundo tópico é o recurso subtil mas peremptório ao bode expiatório. O prototípico Larry era um ladrão e aldrabão insignificante, um tipo desagradável pelo qual não é fácil sentir simpatia. Mas também era um bode expiatório. E quando os membros da sua comunidade o empurraram para o Exército, não estavam a tentar lidar com o problema social e humano que ele personificava, mas simplesmente a livrar-se do problema. Purificaram a sua própria comunidade, despejando o lixo nas Forças Armadas e sacrificando Larry ao Deus da Guerra. E também se serviram das Forças Armadas como bode expiatório. Porque uma das funções subliminares das Forças Armadas é, sem dúvida, servir como depósito de alguns dos mais indesejáveis jovens americanos – uma espécie de reformatório nacional. Mas o facto de este sistema funcionar sem percalços, e nem sempre com maus resultados, não nos devia cegar para a natureza expiatória do seu processo.
O Exército fez de Larry um bode expiatório ainda maior, ao seduzi-lo para o Vietname. Por um lado, isto tem toda a lógica, do ponto de vista social. Porque é que não hão-de ser os indivíduos como Larry, desordeiros e desajustados, os candidatos mais apropriados para servir de carne para canhão? Se alguém tem de ser morto, porque não aqueles de valor social aparentemente baixo? Mas a decisão de matar não foi de Larry. Nem do Tenente Calley. Nem do seu oficial superior, o Capitão Medina. Nem do Tenente-Coronel Barker. Foi uma decisão dos Estados Unidos da América. Por alguma razão, os Estados Unidos decidiram que haveria matança e, ao matarem, estes homens estavam a obedecer à vontade dos Estados Unidos. Podem ter parecido mais sujos e menos dignos do que o americano comum, mas o facto é que nós, americanos, enquanto sociedade, os escolhemos e empregámos deliberadamente para levarem a cabo a nossa matança – o nosso trabalho sujo – por nós. Nesse sentido, foram todos nossos bodes expiatórios.