tag:blogger.com,1999:blog-12044469238027511472024-03-19T16:54:21.874+00:00ViolênciaQue futuro para a humanidade?Unknownnoreply@blogger.comBlogger23125tag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-82499722034376041692007-05-19T13:43:00.000+01:002007-06-16T20:12:48.546+01:00Para uma cultura da não-violência<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgpYXPVDk1XOoqLqWEQonvebsYhjEYQdIcb3fTqkVTjKOLk2LF46WijcrY1FpTwhLS10bLuKIdKxqnTLPItKkhyphenhyphenHZr2GHWyWUPitw7lrzPOYYZAgSJ4qlQrL8Y_Z4QOKYaxeXA7XsZl-q8/s1600-h/Alles+Gute.JPG"></a><div><span style="font-size:85%;">Alfredo Fonseca; J. Wemans; J.M.Azevedo; P. Melo<br /><em>“Para uma cultura da não-violência”<br /></em>Público, 1 de Março de 2003</span><br /><br /><em><span style="font-size:85%;">Excertos adaptados</span></em><br /><br /><br /><br /><p><strong><em><span style="font-size:130%;"></span></em></strong></p><p><strong><em><span style="font-size:130%;"></p><div align="justify"></span></em></strong>No início do terceiro milénio, a violência continua a ser uma constante na história da humanidade. O fim do bipolarismo e a apregoada nova ordem internacional, ao contrário do que alguns previam, não contribuíram para a resolução pacífica dos conflitos que continuam a provocar milhões de mortos e de mutilados um pouco por todo o mundo e a impedir que muitas pessoas vivam em condições mínimas de dignidade. Ruanda, Sudão, Kosovo, Tchetchénia, Argélia, Colômbia, Angola, Médio Oriente, Afeganistão ou Iraque são algumas regiões do mundo onde o absurdo da guerra se manifestou recentemente e, em alguns casos, continua a manifestar.</div><br /><div align="justify"><br />Mesmo em situações aparentemente pacíficas, a violência é, sob muitas formas, uma realidade quotidiana que destrói vidas e condena à sobrevivência em condições iníquas uma multidão de seres humanos. Não serão o desemprego, o analfabetismo, a insegurança, as desigualdades crescentes, a exploração e os futuros roubados manifestações de violência com as quais constantemente nos confrontamos? </div><br /><div align="justify"><br />Reconhecemos que as diferentes confissões cristãs têm, ao longo da história, invocado Deus para legitimar a guerra, enquanto detentoras de uma verdade revelada que deve ser concretizada. Noutras situações, têm contemporizado com a violência que aniquila o outro, desenvolvendo as teorias da guerra justa. Não adianta, pois, ignorar ou tentar justificar o uso, a contemporização ou legitimação da violência por parte das várias igrejas espalhadas pelo mundo.</div><br /><div align="justify"><br />Tem o cristianismo, enquanto religião messiânica, inscrito em si uma lógica de violência e dominação? Mesmo quando a história parece dizer que sim, a contemplação do Crucificado, daquele que, numa doação amorosa de si, aceitou perder, foi ressuscitado e está vivo, a contemplação desse “homem de dores”, que se humilhou voluntariamente e não abriu a boca, diz-nos que só por grave cegueira pode decorrer do cristianismo uma lógica messiânica legitimadora da dominação. Portanto, à luz da radicalidade evangélica, não faz sentido teorizar sobre a guerra justa.</div><br /><div align="justify"><br />Foi também no âmbito das religiões, inclusive do cristianismo e da inspiração evangélica, que a dominação e a guerra foram mais seriamente questionadas e que a não‑violência se constituiu como um quadro consequente de vida e intervenção social. A verdade deixa, então, de ser entendida como algo que se tem e deve ser anunciado e, no limite, imposto aos outros para o “seu bem”, para passar a ser resultado de uma busca que passa necessariamente por “procurar conhecer-se em profundidade a si próprio, aos outros e às envolventes circunstâncias históricas, sociais, políticas, económicas e religiosas”. </div><br /><div align="justify"><br />Daqui resultará a atitude de profunda humildade daquele que sabe e aceita que a verdade não é pertença absoluta e exclusiva de ninguém em particular. A verdade não se tem. Buscar a verdade, por isso, é recusar diabolizar o inimigo e, ao invés, desejar integrá-lo também neste processo de procura de verdade – da verdade que liberta –, porque até no inimigo mais empedernido há sempre algo de aproveitável, há sempre uma bondade potencial, ainda que embotada. </div><br /><div align="justify"><br />Esta atitude, em vez de gerar um ódio de morte ao outro, leva a encará-lo como alguém capaz de mudar. Tanto quanto eu. Não confundamos não-violência com passividade, cobardia ou desistência de lutar pela justiça. Afirmação de si, agressividade e conflito são inerentes à condição humana. Não têm, forçosamente, que assumir a forma de violência, de desejo concretizado de destruição do outro, do diferente, do que nos mete medo. E não é pelo facto de a guerra ter sido uma constante na história da humanidade que assim tem de continuar a ser.</div><br /><div align="justify"><br />A humanidade dispõe hoje de recursos materiais e espirituais que lhe permitem prescindir da violência como forma de garantir a sobrevivência e é possível, a partir de um processo lento e difícil, porque cultural, inaugurar uma nova era civilizacional de humanização, de enriquecimento pessoal e comunitário, através do confronto e da compreensão do outro, do diferente. Hoje, é possível pensar a evolução da humanidade fora dos quadros da violência.</div><br /><div align="justify"><br />Não é, no entanto, o senso comum, o caminho mais evidente. “Se queres a paz prepara a guerra”: eis um provérbio que resume o adversarialismo que ainda hoje domina a acção política e as práticas sociais. O caminho não é fácil, tanto do ponto de vista colectivo como pessoal. Requer persistência, paciência e vigilância. </div><br /><div align="justify"><br />Por isso: “Se alguém pensar que já alcançou um estádio de recusa absoluta da violência, esse ignora-se a si mesmo. O adepto da não-violência trava todos os dias consigo próprio um combate. Já não será então somente a recusa da força bruta como meio de solução dos problemas, mas de todas as formas de violência, sobretudo as mais requintadas e subtis. É este o princípio da autêntica convivência, do viver conjuntamente, do estar-com” (José Manuel Pureza, Pedaços de uma fé crítica). </div><br /><div align="justify"><br />“Assim como é preciso aprender a matar para praticar a violência, assim se deve estar preparado para morrer para praticar a não-violência”, dizia Gandhi. Ora, ter este princípio como horizonte de vida pressupõe um profundo e persistente trabalho interior porque “a não-violência não recusa o conflito mas procura transformá-lo em fonte de crescimento e de amadurecimento da consciência e da solidariedade humanas, consciente dos limites e precariedade desse mesmo processo”.</div><br /><div align="justify"><br />Este é um desafio que cada um há-de colocar, em primeiro lugar, a si mesmo, ainda que a partilha e a reflexão societária constituam um incentivo e encorajamento que previnem a desistência de tão exigente processo de construção espiritual. Convictos de que, na fidelidade à Vida, vale a pena dar passos no sentido de uma cultura de não-violência, devemos comprometer-nos a:</div><br /><div align="justify"><br />― Desenvolver um pensamento e uma acção que recusem o adversarialismo simplista que tende a dominar o senso comum e permitam uma consciência dos problemas na sua complexidade, evitando o desalento e permitindo valorizar o presente como futuro em construção.</div><br /><div align="justify"><br />― Dar a conhecer iniciativas individuais e colectivas que se pautem por critérios de não-violência, de defesa dos direitos humanos, de promoção da cooperação e do desenvolvimento, de reinserção social, centrados na valorização das pessoas e das comunidades.</div><br /><div align="justify"><br />― Potenciar a independência da consciência, para que, através dos comportamentos e das atitudes individuais e sociais, se realize a mobilização para as mudanças capazes de reduzir a violência e instaurar novas formas de relacionamento.</div><br /><div align="justify"><br />― Reforçar os laços com todos aqueles que se ocupam da solidariedade e desenvolvimento a nível internacional, de modo a desenvolver uma compreensão da interdependência dos problemas e das suas soluções. </div><br /><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><br /><div align="justify">― Estudar, desmontar, denunciar as lógicas económicas que alimentam as guerras ligadas aos interesses da indústria de armamento e reflectir activamente sobre essas questões, no plano nacional e internacional. ― Promover espaços de formação para jovens e adultos em que se pense a resolução não-violenta de conflitos, porque uma cultura das mediações e da não-violência pressupõe uma pedagogia das mediações e da não-violência.</div></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-48824922404441944892007-05-19T13:34:00.000+01:002007-06-16T20:13:03.918+01:00Sementes de violência<span style="font-size:85%;"><em>Infobib - Boletim da Biblioteca da Escola Secundária/3 de Baltar</em><br />2005</span><br /><br /><div align="center"><br /></div><div align="center"></div><div align="center"></div><div align="center"></div><div align="center"></div><div align="center"></div><div align="left"><span style="color:#333399;"><u>A sombra do quadrante</u><br /><br />Murmúrio de água na clepsidra gotejante,<br />Lentas gotas de som no relógio da torre,<br />Fio de areia na ampulheta vigilante,<br />Leve sombra azulando a pedra do quadrante,<br />Assim se escoa a hora, assim se vive e morre.<br /><br />Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida<br />Tão doidas ambições, tanto ódio, tanta ameaça?<br />Procuremos somente a Beleza, que a vida<br />É um Punhado infantil de areia ressequida,<br />Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa.</span></div><span style="color:#333399;"><div align="right"><br /><br />Eugénio de Castro<br /></div><div align="right"><br /></div><div align="right"></div><div align="right"></div><div align="right"></div></span><div align="justify"><span style="color:#333399;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#333399;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#333399;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#333399;"></span></div><div align="justify"><strong></strong></div><div align="justify"><strong></strong></div><div align="justify"><strong></strong></div><div align="justify">Eugénio de Castro, no seu poema <em>A sombra do quadrante</em>, lança a seguinte interrogação: “Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida / Tão doidas ambições, tanto ódio, tanta ameaça?”</div><div align="justify"><br />A Biblioteca decidiu abordar o tema da violência, não só porque é uma questão actual, mas também porque é um problema sem soluções definitivas e incontestáveis. E sobretudo porque a todos diz respeito, quer como seus autores, quer como suas vítimas.</div><div align="justify"><br />É, não obstante, um dado incontroverso que a violência impregnou as artes e a cultura e muito particularmente o cinema, a música, a televisão e os videogames.</div><div align="justify"><br />Como refere Carlo Climati (in <em>Os jovens e o esoterismo</em>, Lisboa, Paulinas, 2001):</div><div align="justify"><br /><em>... Depois do rock, da banda desenhada e do cinema, também os jogos de vídeo foram «contaminados» por esta tendência.</em></div><div align="justify"><br /><em>Certos jogos de vídeo parecem contribuir para um processo de habituação ao mal por parte dos jovens. As novas gerações cada vez se acostumam mais à violência, até ao ponto de esta as deixar indiferentes. Ou antes, em certos casos, as encenações de “terror” e as imagens monstruosas chegam mesmo a tornar-se instrumentos “fascinantes”, utilizados para vender mais jogos de vídeo e para chamar a atenção dos jovens.</em></div><div align="justify"><br />Por outro lado, uma nota predominante dos conteúdos destes jogos de vídeo é a luta pela sobrevivência. O referido autor (ob. cit.) acrescenta que, nestes jogos,</div><div align="justify"><br /><em>... o jogador tem de se confrontar com contínuos desafios de morte para conseguir manter-se vivo, aumentando, ao mesmo tempo, o seu poder. O problema é que esta luta se transforma, por vezes, numa verdadeira educação para a violência e para o espezinhamento dos outros.</em></div><div align="justify"><br /><em>A mensagem transmitida aos jovens é clara: para sobreviver e conquistar o poder é lícito fazer seja o que for: destruir, espancar, ultrapassar, matar ou esmagar os próprios adversários. Não importa aquilo que se faz. O que conta é alcançar os próprios objectivos. Bem-vinda seja a “morte” dos outros, se ela representa a nossa vida. Tudo isto é certamente horrível, mesmo quando se trata de um jogo...</em></div><div align="justify"><br />Não se julgue, porém que os referidos jogos são meros entertainments, pois inculcam nos seus jovens utilizadores determinados padrões de conduta e regras de comportamento nocivas e anti-sociais. Como descortina Carlo Climati (ob. cit.), dos jogos</div><div align="justify"><br /><em>... ressaltam dois conceitos verdadeiramente negativos: a “corrida sem regras” e a ideia que “só os mais fortes e experientes conseguem chegar à meta”. Os jovens aprendem assim a acreditar que, para ter êxito, tudo é permitido, até as formas de comportamento incorrecto. No fim, os mais fortes triunfam sobre os mais débeis. Eis um tema recorrente na filosofia subjacente a muitos jogos de vídeo. Quem bate com mais força é quem vence...</em></div><div align="justify"><br />Se o alvo da nossa análise for o cinema chegaremos a análoga conclusão. Com efeito, sucedem-se novas versões da mesma série ou a sua continuação, mas a última é incomparavelmente mais grotesca do que a anterior e a violência é avassaladoramente maior. O público é atraído pela espiral de violência e de grosseria. O autor supra referido (ob. cit.) esclarece que:</div><div align="justify"><br /><em>... O público quase parece afeiçoar-se, de forma mórbida, a estes implacáveis assassinos cinematográficos, que voltam sempre a ressuscitar e a atacar outras pessoas. Os jovens não se contentam em vê-los num único filme. Desejam que eles voltem a matar, de forma original e diferente, e os produtores, interessados em ganhar dinheiro, satisfazem o seu desejo, fazendo centenas de películas de teor macabro e violento.</em></div><div align="justify"><br />É certo que as histórias tradicionais também são caracterizadas por uma certa agressividade e até por alguma violência. Em todo o caso, apenas com o fito de demonstrar que a realidade também contempla essa faceta. Contudo, o bem acaba sempre por vencer. A mensagem que prevalece é a do bem, a da punição do mal e a do regresso à ordem.</div><div align="justify"><br />Já as novas criações, como bem realça João César das Neves (in <em>Acordar do Sonho</em>, Lisboa, Ed. Verbo, 2003)</div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><em>… têm como herói o mau, que se alegra com os gemidos das vítimas e os gritos de horror dos inocentes. Nelas, o propósito do jogo é comer mais escravos, atropelar peões, espancar adversários ou arrasar cidades. O realismo do sangue a espirrar e dos estertores da morte só se compara com o maquiavelismo dos planos de zombies, bruxas e dráculas. O diabo, que os pais consideram que não existe, está presente em nome, pessoa e efeitos nas histórias preferidas dos seus filhos.</em></div><div align="justify"><br />Seria ingenuidade pensar que o único ou o principal motivo que justifica a proliferação dos filmes e vídeos em apreço é o lucro dos produtores. É indubitável que o factor financeiro não é de menosprezar. Como conclui o já aludido Carlo Climati (ob. cit.), ainda a propósito desta inesgotável produção, </div><div align="justify"><br /><em>... mais uma vez, quem decide é o “deus dinheiro”...</em></div><div align="justify"><br />Outras serão as razões pelas quais a violência se enraizou na produção cinematográfica e afins. Não se pretende, neste artigo, esgotar a análise das mesmas. Será oportuno ponderar duas perspectivas de análise.</div><div align="justify"><br />A primeira aponta para razões de ordem convencional, ou seja, o homem afirma-se pela força física. Sam Keen (in <em>O homem na sua plenitude</em>, S. Paulo, Cultrix, 1998) alerta que</div><div align="justify"><br /><em>... A psique masculina, antes de mais nada, é a psique do guerreiro. Nada nos plasma, molda e modela tanto como a exigência da sociedade de que nos tornemos especialistas no uso do poder e da violência, ou, como dizemos eufemisticamente, na “defesa”. Historicamente, a principal diferença entre homens e mulheres é que sempre se esperou que os homens fossem capazes de recorrer à violência quando necessário. A capacidade e a disposição para a violência têm sido centrais na nossa autodefinição. A psique masculina não foi construída sobre o racional: “Penso, logo existo”, mas sobre o irracional: “Conquisto, logo existo”. </em></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify">Quanto ao que veio a tornar-se o estado de emergência banal da vida moderna, concedemos ao Estado o poder de interromper a vida dos rapazes, de os convocar para servir o exército e iniciar no ritual da violência. Clichés que passam por sabedoria dizem-nos: “O exército fará de si um homem”, e “Todos os homens precisam de ter a sua guerra”.</div><div align="justify"><br />O autor denuncia mesmo que este preconceito atinge o extremo de poder prejudicar ou aniquilar determinadas vocações ou percursos.</div><div align="justify"><br /><em>... Muitos homens criativos que conheço eram sensíveis, compassivos demais para lutar. E quase todos cresceram sentindo-se, de certo modo, inferiores e com a certeza de que não tinham passado a prova da masculinidade. Desconfio que muitos escritores ainda estão a mostrar aos valentões do bairro que a pena é mais forte do que a espada. A prova modelou-nos, quer tenhamos lançado bombas ou sido apanhados por elas...</em></div><div align="justify"><br />No que se refere à segunda perspectiva, é seguro que, na sociedade actual, o homem não dialoga sobre a sua natureza íntima, não partilha sentimentos, não encontra um interlocutor atento e disponível. Esta lacuna − nas relações pai/filho, professor/aluno, marido/mulher –provoca frustração, revolta e raiva. Eis as sementes da violência. O ser humano revolta-se porque não encontra condições para realizar a sua principal vocação.</div><div align="justify"><br />Wolfgang Salewski e Peter Lanz (in <em>A Nova Violência – e como enfrentá-la</em>, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, 1978) relatam a seguinte história verídica de Mark Twain, escritor e satírico americano:</div><div align="justify"><br /><em><span style="color:#663333;">... certa vez, chegou demasiado tarde a um jantar para o qual tinha sido convidado. Quando a dona da casa, distraída pela organização do banquete e pelo grupo de ilustres convidados, lhe deu as boas-vindas, Twain pediu desculpa pelo seu atraso com as seguintes palavras: “Tem de desculpar-me por ter chegado só agora, minha querida senhora, mas tive necessidade de matar a minha velha tia antes de vir.” E a dona da casa respondeu-lhe: “Claro que lhe perdoo, caro mestre, isso por vezes acontece.”</span></em></div><div align="justify"><br />Atente-se, todavia, ao comentário que os autores acrescentam à história:</div><div align="justify"><br /><em>Assim, superficialmente, a história pode provocar o riso. Mas, se pensarmos um pouco, podemos ser invadidos pelo medo. O que há cem anos Mark Twain quis tratar como uma graça tornou-se hoje numa triste verdade. Trocam-se argumentos sem, de facto, se entrar em contacto uns com os outros. Falamos, sem dúvida, mais do que outrora. Os meios técnicos de comunicação tornam possível as pessoas falarem umas com as outras, em quase todos os pontos do mundo. Com o auxílio de cabos submarinos e satélites transpõem-se os oceanos. No entanto, compreendemo-nos cada vez menos.</em></div><div align="justify"><br />A violência é, na verdade, um drama actual, mas não podemos soçobrar, pois se são inolvidáveis os seus efeitos, são também irreversíveis as consequências da boa formação do carácter por via da educação. Como ensina João César das Neves (ob. cit.),</div><div align="justify"><br /><em>Os filmes e jogos devem ser usados também para contrastar com a vida real. O normal é que os jovens que contemplam de forma tão viva horrores tão profundos ganhem uma insensibilidade emocional. Mas também é possível que, por reacção, sejam levados a compreender melhor a beleza, a bondade, a alegria e a felicidade. Cabe aos educadores conduzir e potenciar essa reacção. Estes horrores podem permitir adquirir critérios de julgamento e edificar o carácter, o essencial da educação.</em></div><div align="justify"><em></em></div><div align="justify"></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-63242418203479090762007-05-19T13:32:00.000+01:002007-06-16T20:13:29.155+01:00Diálogo e respeito mútuo - José Dias da Silva<div align="justify"><span style="font-size:85%;"><em>Além-Mar<br /></em>Maio 2004</span></div><div align="justify"><span style="font-size:85%;"></span></div><div align="center"> </div><div align="center"> </div><div align="justify">Primeiro foi o 11 de Setembro em Nova Iorque. Depois, após umas incursões por países longínquos, cujas ondas de choque pouco nos impressionaram, foi o 11 de Março, em Madrid.</div><div align="justify"><br />E, de repente, depois de tantos anos de auto-suficiência e de requintados serviços de vigilância, percebemos que afinal ninguém está seguro em lado nenhum. O pânico e o medo aumentaram um sentimento difuso de ansiedade e angústia, já agudizado por novos riscos, novas doenças, novas catástrofes ambientais, novos perigos de alimentos contaminados.</div><div align="justify"><br />O pânico não é o mais propício para uma avaliação objectiva da realidade. E o medo nunca foi bom conselheiro. De qualquer modo, em vez das reacções imediatistas, impostas pela agressividade e defesa irracional da nossa territorialidade geográfica, mas sobretudo cultural, esta é uma oportunidade para olhar à nossa volta e não só perceber que não somos os únicos habitantes do planeta nem as únicas sociedades com valores mas também procurar apreender as causas profundas de tais brutalidades e das possíveis culpas nossas no seu aparecimento.</div><div align="justify"><br />Talvez estes massacres nos ajudem a tomar consciência dos muitos que fomos cometendo ou deixámos que acontecessem ao longo da história: o comércio de escravos africanos pelos portugueses e outros, o genocídio de incas e astecas pelos espanhóis, o massacre dos aborígenes da Tasmânia pelos ingleses, a eliminação dos índios pelos americanos, a destruição do povo herero, da Namíbia, pelos alemães, os milhões de mortos nos Gulags estalinistas e nos campos de morte nazis, os dois milhões de mortos pelos kmers vermelhos, o milhão do genocídio ruandês ou os 300 mil timorenses. Isto para não falar das tentativas «caseiras» de limpeza étnica ou política: dos arménios, dos curdos, dos chechenos, na ex-Jugoslávia, ou dos milhares que por esse mundo fora todos os dias deixamos morrer à fome. Afinal não somos muito mais civilizados do que esses terroristas que matam, a sangue-frio, milhares de inocentes. Quantos não matámos nós por razões económicas, por interesses políticos ou por simples indiferença?</div><div align="justify"><br />Talvez os recentes crimes nos façam perceber que a vítima americana não é mais pessoa que o ruandês que deixámos massacrar, que sempre que morre uma pessoa, em qualquer canto do mundo e independente da sua cor ou religião, é sempre uma perda irreparável para a humanidade. Talvez consigamos perceber que todas as pessoas contam igualmente. E que, havendo atrás de cada pessoa uma cultura, a humanidade será mais rica se partilhar todos esses bens culturais, respeitando-os e promovendo-os na diversidade das diferenças, até porque todas as culturas são incompletas e têm debilidades próprias. E sem o reconhecimento dessas limitações nunca será possível o diálogo intercultural honesto e fecundo.</div><div align="justify"><br />Então o caminho não pode ser o da imposição dos nossos valores para substituir os dos outros, o que só pode conduzir a uma «canibalização cultural». Tem de ser o do diálogo entre todas as culturas. Só assim, no respeito mútuo, será possível eliminar ou pelo menos limitar as condições geradoras de terroristas dispostos a dar a vida para espalhar a morte e, talvez assim, contestar um Ocidente que nunca os levou a sério, que passou a história a impor soluções que não incluíam os legítimos ideais desses povos, ignorando-os ou até humilhando-os.</div><div align="justify"><br />Bastará olhar para a partilha de África feita a régua e esquadro numa longínqua cidade da Europa central, ou a (não) solução para o Médio Oriente, ou a divisão entre a Índia e o Paquistão. Para não citar exemplos bem recentes onde a mentira teve um papel determinante. É, pois, tempo de os políticos darem lugar aos sábios. E tempo de os militaristas darem lugar aos amantes da paz e da dignidade das pessoas e dos povos. É tempo de o diálogo substituir o ruído ensurdecedor das armas. É tempo de afirmar e respeitar a igual dignidade de todos, pessoas e povos, o seu direito ao desenvolvimento próprio, à sua cultura, à sua existência reconhecida internacionalmente, à sua parte dos bens deste mundo, criados para uso de todos.</div><div align="justify"><br />Talvez também possamos perceber que a nossa cultura de absolutização do dinheiro é (pode ser) um grande aliado dos terroristas ao permitir-lhes dispor de financiamento com esquemas de branqueamento de dinheiros, com os paraísos fiscais, onde todos os dias passam milhões de dólares que ninguém quer controlar. Só nas ilhas Caimão, o maior centro de <em>off‑shore</em> do mundo, circulam 15 milhões de milhões de dólares por ano.</div><div align="justify"><br />Com as injustiças históricas que cometemos e as facilidades organizativas que a nossa idolatria pelo dinheiro proporciona, não estarão criadas condições objectivas para o terrorismo?</div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-58770465035885517622007-05-19T13:28:00.000+01:002007-06-16T20:13:45.633+01:00O cão preto - conto indiano<div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span></strong></div><div align="justify"><span style="color:#330033;">Shakra, rei dos deuses, ergueu-se do seu trono dourado e observou a Terra com atenção. Havia oceanos reluzentes e nuvens como pérolas, montanhas com cumes de neve e continentes de muitas cores. Embora tudo fosse belo, Shakra sentiu uma certa apreensão. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Os seus sentidos luminosos expandiram-se pelos céus. Sentiu o calor da guerra. Ouviu o balir dos vitelos, o ladrar dos cães, o grasnar dos corvos. Ouviu crianças a chorarem e vozes a gritarem de raiva. Ouviu o choro dos esfomeados, dos sós, dos pobres. As lágrimas rolaram-lhe pela cara abaixo e caíram sobre a terra como aguaceiros de meteoros. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— É preciso fazer alguma coisa! — disse Shakra. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Metamorfoseou-se num guarda-florestal e levou consigo um grande arco em osso. A seu lado caminhava um grande cão preto. O pelo do cão era emaranhado, os olhos brilhavam como fogo incandescente, os dentes mais pareciam presas, e a boca e língua pendente eram da cor do sangue. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Shakra e o cão deram um salto e mergulharam em direcção à Terra por entre as estrelas brilhantes. Por fim, aterraram mesmo ao lado de uma cidade esplêndida. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— Quem és tu, forasteiro? — perguntou, admirado, um soldado, do alto das muralhas da cidade. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— Sou estrangeiro nestas paragens e este — disse, apontando o animal com um gesto — é o meu cão. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">O cão preto abriu as mandíbulas. O soldado que estava de guarda às muralhas ficou aterrado. Foi como se estivesse a olhar para um enorme caldeirão de fogo e de sangue. A garganta do cão emanava fumo. As mandíbulas do cão abriram-se ainda mais e mais… </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— Fechem os portões! — ordenou o soldado. — Fechem-nos imediatamente! </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Mas Shakra e o cão conseguiram saltar os portões cerrados. Os habitantes da cidade fugiram em todas as direcções, como se fossem marés a subir ao longo de uma praia. O cão foi no seu encalço, juntando as pessoas como se fossem um rebanho de ovelhas. Homens, mulheres e crianças gritavam, aterrorizados. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— Parem! — gritou Shakra. — Não se mexam! </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">As pessoas imobilizaram-se. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— O meu cão tem fome. O meu cão tem de ser alimentado. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">O rei da cidade, a tremer de medo, ordenou: </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— Rápido! Tragam comida para o cão! Imediatamente! </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Em breve, carroças chegavam ao mercado carregadas de carne, pão, milho, frutos e cereais. O cão engoliu tudo de uma só vez. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— O meu cão precisa de mais comida! — exclamou Shakra. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">As carroças voltaram de novo, carregadas. E o cão voltou a devorar tudo de uma assentada. Depois soltou um grito de angústia, um grito que parecia emanar das profundezas do Inferno. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">As pessoas caíram por terra e taparam os ouvidos, aterradas. Shakra, o forasteiro, fez soar a corda do seu arco, que fez um ruído semelhante ao ribombar do trovão numa noite de tempestade. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— O meu cão ainda tem fome! — Dêem-lhe de comer! </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">O rei contorceu as mãos e pôs-se a chorar. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— Já lhe demos tudo o que tínhamos. Não temos mais! </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— Sendo assim, o meu cão alimentar-se-á de pastos e montanhas, de pássaros e animais ferozes. Devorará as rochas e mastigará o sol e a lua. O meu cão alimentar-se-á de vós! </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— Não! — gritaram as pessoas. — Tem misericórdia de nós! Rogamos-te que nos poupes! Poupa o nosso mundo! </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">— Então acabem com a guerra — disse Shakra. Alimentem os pobres. Cuidem dos doentes, dos sem-abrigo, dos órfãos, dos velhos. Ensinem a bondade e a coragem às vossas crianças. Respeitem a terra e todas as suas criaturas. Só assim açaimarei o meu cão. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Shakra transformou-se num gigante, resplandecente de luz. Ele e o cão deram um salto e, numa espiral de fumo, subiram cada vez mais alto. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Lá em baixo, nas ruas da cidade, homens e mulheres olhavam o céu consternados. Estenderam as mãos uns para os outros e prometeram mudar as suas vidas, fazer o que o forasteiro lhes tinha ordenado que fizessem. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Bem lá de cima, Shakra sorriu no seu trono dourado, ao olhar para a terra. Limpou a testa com um braço resplandecente. As inúmeras estrelas cintilavam, fulgentes, e a escuridão dormitava entre elas, tal como um cão junto de uma fogueira.</span></div><div align="justify"><span style="color:#330033;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#330033;"></span></div><div align="right"><span style="font-size:85%;"><span style="color:#330033;">Margaret Read MacDonald<br /></span><span style="color:#330033;"><em>Peace Tales<br /></em>Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005</span></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-68152124505687380762007-05-19T13:10:00.000+01:002007-05-19T13:24:29.868+01:00A guerra entre as galinholas e as baleias - conto das Ilhas Marshall<div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#000066;">A guerra entre as galinholas e as baleias</span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#000066;"></span></strong> </div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#000066;"></span></strong> </div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#000066;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#000066;"></span></strong></div><div align="center"><span style="color:#000066;"></span></div><div align="center"><span style="color:#000066;">conto das Ilhas Marshall</span></div><br /><br /><br /><br /><div align="justify"><span style="color:#000066;">Todas as manhãs, a pequena galinhola ia à praia tomar o pequeno-almoço. Corria para a água com as suas perninhas altas e <em>slup… slup…</em> engolia um pequeno vairão. Depois corria de novo para a praia e esperava. Voltava de novo à água e <em>slup… slup…</em> engolia um outro pitéu.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">A baleia, que vivia nas águas profundas da baía, viu a galinhola a correr para dentro e para fora de água. Ergueu bem a cabeça enorme e chamou-a:</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Ei, passarinho! Não te quero na minha água! O mar pertence às baleias!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">A galinhola decidiu ignorá-la. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— O mar também pertence às galinholas. E há muito mais galinholas do que baleias. Vê lá se me deixas em paz!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">A baleia encolerizou-se e começou a esguichar. A galinhola tinha-a enfurecido. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Mais galinholas? Há muito mais baleias no oceano do que galinholas em terra!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Não há, não! — replicou a pequena galinhola. Há mais galinholas!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">A baleia estava furiosa. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Vou chamar as minhas irmãs. Vais ver!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">A baleia veio à superfície e esguichou <em>buuturu… buuturu</em>. Depois voltou a mergulhar bem fundo na baía. Virou-se para leste e chamou:</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Baleias do leste. Baleias do leste. Venham…venham para esta ilha!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">Veio de novo à superfície.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">Esguichou <em>buuturu… buuturu…</em> e mergulhou em direcção ao oeste.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Baleias do oeste. Baleias do oeste. Venham…venham para esta ilha!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">De novo veio à superfície. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">Esguichou <em>buuturu… buuturu…</em> e mergulhou em direcção ao norte.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Baleias do norte. Baleias do norte. Venham…venham para esta ilha!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">Voltou de novo a emergir.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">Esguichou <em>buuturu… buuturu…</em> e mergulhou em direcção ao sul.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Baleias do sul. Baleias do sul. Venham… venham para esta ilha!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">A leste, a oeste, a norte e a sul, as suas irmãs baleias ouviram-na. Começaram a nadar em direcção à ilha. Quando já tinham chegado todas, a baía ficou tão cheia de baleias que podíamos caminhar nos seus dorsos! Estavam todas apinhadas naquela baía.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">A galinhola ficou alarmada. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Tens mesmo muitas irmãs! Mas espera, que eu vou chamar as minhas irmãs galinholas!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">A pequena galinhola começou a saltar para cima e para baixo e a emitir o seu grito de galinhola:</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— <em>Kirriri… kirriri… kirriri… kirriri… </em>Galinholas! Galinholas! Leste! Leste! Leste! Leste! Venham depressa! Venham depressa! Para esta ilha!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Galinholas! Galinholas! Oeste! Oeste! Oeste! Oeste! Venham depressa! Venham depressa! Para esta ilha!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Galinholas! Galinholas! Norte! Norte! Norte! Norte! Venham depressa! Venham depressa! Para esta ilha!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Galinholas! Galinholas! Sul! Sul! Sul! Sul! Venham depressa! Venham depressa! Para esta ilha!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">E as galinholas vieram a voar! Do leste, do oeste, do norte, do sul. Quando pousaram, cobriram a praia inteira! Cobriram as árvores! Havia tantos pássaros! Havia mais pássaros ou mais baleias? Havia mais baleias ou mais pássaros? Era impossível dizer.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">As baleias falavam entre elas. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Temos de chamar os nossos primos. Nessa altura, haverá mais baleias do que pássaros.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">Então, as baleias vieram todas à tona da água e chamaram:</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— <em>Buuturu… buuturu…</em></span></div><em></em><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">Mergulharam fundo, bem fundo. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">Chamaram a leste.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— Primos do leste! Primos do leste! Venham…venham para esta ilha!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">Voltaram à superfície e esguicharam.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#000066;">— <em>Buuturu… buuturu…</em></span></div><p align="justify"><span style="color:#000066;">Mergulharam.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Primos do oeste! Primos do oeste! Venham…venham para esta ilha!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">Voltaram à superfície e esguicharam.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— <em>Buuturu… buuturu…</em></span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">Mergulharam. </span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Primos do norte! Primos do norte! Venham…venham para esta ilha!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">Voltaram à superfície e esguicharam. Mergulharam uma vez mais.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Primos do sul! Primos do sul! Venham…venham para esta ilha!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">Do leste e do oeste, do norte e do sul, os primos das baleias começaram a nadar em direcção à ilha. Os golfinhos ouviram o chamamento e vieram. As orcas ouviram o chamamento e vieram. Os lobos-marinhos ouviram o chamamento e vieram também. Até os tubarões vieram. </span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">Quando já tinham chegado todas os primos da baleia, os peixes eram tantos que rodeavam completamente a ilha. Até onde a vista alcançava, havia criaturas marinhas a esguichar e a mergulhar.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">As galinholas ficaram assustadas. </span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Há tantas criaturas do mar. Depressa! Temos de chamar todos os nossos primos!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">As galinholas começaram aos pulos e a emitir o seu chamamento:</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Kirriri… kirriri… kirriri… kirriri… </span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Primos das galinholas! Leste! Leste! Leste! Venham depressa! Venham depressa para esta ilha!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Primos das galinholas! Oeste! Oeste! Oeste! Venham depressa! Venham depressa para esta ilha!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Primos das galinholas! Norte! Norte! Norte! Venham depressa! Venham depressa para esta ilha!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Primos das galinholas! Sul! Sul! Sul! Venham depressa! Venham depressa para esta ilha!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">Do leste e do oeste, do norte e do sul, os primos das galinholas começaram a chegar. As gaivotas ouviram o chamamento e vieram. As gaivinas ouviram o chamamento e vieram. Os corvos-marinhos ouviram o chamamento e vieram também. Até as garças-reais vieram.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">Depois de todas estas aves marinhas terem chegado, cobriram as praias e estenderam-se até às montanhas. Não havia um pedaço de terra naquela ilha que não estivesse coberto por pássaros!<br />Havia mais pássaros ou mais animais marinhos? Mais primos das baleias ou mais primos das galinholas? Ninguém saberia dizer.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">Então as baleias tiveram uma ideia.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Se as baleias comessem a terra toda… os pássaros afogar-se-iam. Haveria então mais baleias do que galinholas. Vamos a isso!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">As baleias começaram a mastigar a terra. <em>Scrunch… scrunch… scrunch…</em> A praia desaparecia gradualmente por entre as suas mandíbulas enormes. Então a galinhola teve uma ideia. </span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Se os pássaros bebessem toda a água do mar… as baleias morreriam! Então haveria mais galinholas do que baleias. Vamos a isso!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">Os pássaros voaram em direcção ao oceano. Cada um deles enfiou o bico na água e começou a beber. Beberam… beberam… até ficarem com a boca cheia de água… Beberam… beberam… até ficarem com as barrigas cheias de água. Como era mais fácil beber do que mastigar, os pássaros acabaram a sua tarefa primeiro!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">Olharam em volta. As baleias estavam a morrer por falta de água. Os peixes também estavam a morrer por falta de água. Os caranguejos minúsculos… as estrelas-do-mar… todas as criaturas marinhas estavam a morrer sob o sol escaldante.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">De repente, os pássaros pensaram numa coisa. </span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Os caranguejos minúsculos… todas estas criaturas do mar… tudo isto é o nosso alimento. É o que nós comemos. Se elas morrerem, nós morremos também. Isto é uma má ideia! Rápido! Cuspam a água! Cuspam fora o oceano! </span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;"><em>Ptooooie… ptoooie… ptoooie…</em> Os pássaros cuspiram fora o oceano todo.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">As baleias começaram de novo a mover-se. Os peixes recomeçaram a nadar. Os pequenos caranguejos e as estrelas-do-mar esticaram as suas perninhas e começaram a viver de novo.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Isto foi uma péssima ideia! — disseram as baleias. — O oceano é a nossa casa. A praia faz parte do oceano. Estamos todos a destruir o nosso próprio lar. Depressa! Cuspam fora a areia toda.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;"><em>Glurk… glurk… glurk…</em> As baleias cuspiram fora a areia toda.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Esta guerra foi uma péssima ideia — disse a baleia. — Há mar que chegue para todos partilharmos.</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">— Tens razão — concordou a galinhola. — Foi uma má ideia. Quase destruímos o nosso lar!</span></p><p align="justify"><span style="color:#000066;">Então, as baleias e os seus primos nadaram em direcção ao mar alto. Em direcção ao leste, ao oeste, ao norte e ao sul. E as galinholas e os seus primos também voaram para longe. Em direcção ao leste, ao oeste, ao norte e ao sul. E até hoje nunca ninguém descobriu se há mais baleias ou mais galinholas. Se há mais galinholas ou mais baleias. Não que isso interesse, realmente. No fundo, é uma razão demasiado insignificante para começar uma guerra…</span></p><p><span style="color:#000066;"></span></p><p align="right"><br /><br /><span style="font-size:85%;"><span style="color:#000066;">Margaret Read MacDonald<br /></span><span style="color:#000066;"><em>Peace Tales<br /></em>Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005</span></span></p><span style="font-size:85%;"></span><br /><br /><br /><div align="justify"><span style="color:#000066;"></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-29697147817092292852007-05-19T13:03:00.000+01:002007-06-16T20:12:11.231+01:00Força - conto da África Ocidental<div align="center"><strong><span style="color:#663366;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="color:#663366;"></span></strong></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">Os animais decidiram fazer um concurso para ver qual deles era o mais forte. A ideia do concurso foi do Elefante.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Encontramo-nos todos na quarta-feira. Veremos quem tem FORÇA.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O primeiro a chegar foi o Chimpanzé, que chegou aos saltos.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Eu tenho força. Vejam só estes BRAÇOS! Esperem só até verem a minha força!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Chimpanzé sentou-se. Chegou o Veado.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Olhem para estas PERNAS! Tenho tanta força!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Veado sentou-se. A seguir veio o Leopardo. Mostrava as garras e rugia.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Olhem para estas GARRAS! Eu tenho força!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Leopardo sentou-se. Depois veio o Bode, que baixou os seus chifres fortes.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Vejam estes CHIFRES! Isto é força.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Bode sentou-se. Chegou o Elefante. Caminhava muito devagar.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— El…e…fante…significa força.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Elefante sentou-se. Esperaram e voltaram a esperar. Faltava mais um animal. Finalmente o Homem chegou, a correr.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Força!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Homem exibia os seus músculos.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Eis-me aqui! Podemos começar!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Homem tinha trazido a sua espingarda para a floresta e tinha-a escondido nos arbustos. Era por isso que estava atrasado. O Elefante encarregou-se de dar início ao concurso.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Agora que o <em>Homem</em> chegou, podemos começar. Chimpanzé, mostra-nos a tua força!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Chimpanzé deu um pulo. Correu para uma pequena árvore e trepou-a. Dobrou-a e deu-lhe um nó. Desceu da árvore e disse:</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Então? Isto não é força? </span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">Os animais exultaram. </span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">Depois acalmaram. </span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Bem…Chimpanzé. Senta-te. O próximo!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Veado pôs-se de pé com um salto. Correu três quilómetros em direcção à floresta. Correu outros três quilómetros de volta. Nem sequer estava ofegante. Vangloriou-se:</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Vejam só! Se isto não é força…</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">Os animais concordaram.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Bem…Veado. Senta-te. O próximo!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Leopardo pôs-se de pé e esticou as garras enormes. Começou a esgravatar a terra. <em>Scrung…scrung…scrung…scrung… </em>Como o pó voava! Os animais saltaram para trás. Estavam assustados. </span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Leopardo perguntou:</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Aaaah! Isto é força ou não é?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Bem… Leopardo. Senta-te. O próximo!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Bode era o seguinte. Baixou os chifres enormes. Havia por ali um campo de canas e o Bode começou a escavar o campo. <em>Shuuu…shuuu…shuuu…shuuu…</em> Os chifres fizeram uma estrada através do campo. O Bode voltou-se. E escavou outra estrada até ao lugar onde estavam os animais. Depois perguntou:</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Não é força, isto?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">Os animais ficaram impressionados. </span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Bem… Bode. Senta-te. A seguir?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">A seguir vinha o Elefante. Havia muitas árvores em redor que cresciam bem juntas. O Elefante encostou o seu ombro enorme de encontro às árvores. <em>Eeennhh…eeennhh… eeennhh…kangplong!</em> As árvores caíram todas. O Elefante exclamou:</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Que tal? Isto não é força? </span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">Os animais ficaram impressionados. </span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Força! Força! Força! Isso é que é força!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Bem… Elefante. Senta-te. O próximo!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">Era a vez do Homem. O Homem correu para o meio do círculo. Começou a rodopiar. Deu saltos mortais. Fez a roda. Fez o pino. Volteou em redor deles sem cessar. Depois parou e perguntou:</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Força! Isto não é força?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">Os animais entreolharam-se.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Bem…foi excitante. </span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Mas era força, aquilo?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Nem por isso…</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Só sabes fazer isso?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Homem sentiu-se insultado.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Muito bem, então vejam isto!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Homem subiu a uma palmeira. <em>Tão depressa! Tão depressa!</em> Atirou cocos da palmeira. Desceu da árvore. Perguntou de novo:</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Força! Isto não é força?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">Os animais olharam para ele.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Chamarias àquilo força?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Só subiu a uma árvore.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Isso não é bem força.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Há mais alguma coisa…?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Homem estava zangado.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força? Eu mostro-vos o que é FORÇA!</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Homem correu para o arbusto. Agarrou na arma. Correu de novo para junto deles. O Homem apontou a arma ao Elefante. <em>Ting…</em> Puxou o gatilho. <em>Kangalang!</em> O Elefante tombou. Estava morto. Morto. O Homem dava pulos e gabava-se:</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força! Força! Isto não é FORÇA?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">O Homem olhou em redor. Os animais tinham ido embora. Tinham fugido para a floresta.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Força!...</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">Não havia ninguém para o ouvir gabar-se. O Homem estava sozinho. Na floresta, os animais juntaram-se a um canto para trocar impressões. </span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Viste aquilo?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Era força aquilo?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Chamarias àquilo força?</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Não. Aquilo era MORTE.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;">— Aquilo era MORTE.<br />A partir desse dia, os animais não voltaram a caminhar com o Homem. Quando o Homem entra na floresta, tem de caminhar sozinho. Os animais ainda falam do Homem… Da criatura Homem… O <em>Homem</em> é aquele que não conhece a diferença entre força e morte.</span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;"></span> </div><div align="justify"><span style="color:#663366;"></span> </div><div align="justify"><span style="color:#663366;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;"></span></div><div align="justify"></div><div align="justify"><span style="color:#663366;"></span></div><div align="right"><span style="color:#663366;"></span></div><div align="right"><span style="font-size:85%;color:#663366;">Margaret Read MacDonald<br /></span><span style="color:#663366;"><span style="font-size:85%;"><em>Peace Tales<br /></em>Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005</span></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-38429087386902202892007-05-19T13:00:00.000+01:002007-05-19T13:04:22.433+01:00Um homem sem cabeça - conto argelino<div align="center"><strong><span style="font-family:lucida grande;font-size:130%;color:#330033;">Um homem sem cabeça<br /></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-family:lucida grande;font-size:130%;color:#330033;"> </div></span></strong><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-family:lucida grande;font-size:130%;color:#330033;"></span></strong></div><div align="center"><span style="font-family:lucida grande;font-size:130%;color:#330033;">conto argelino</span></div><div align="center"><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span> </div><div align="center"><span style="font-size:130%;color:#330033;"><br /></span> </div><div align="center"><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span></div><div align="center"><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span></div><div align="center"></div><div align="center"><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span></div><div align="center"></div><div align="center"><span style="font-family:lucida grande;font-size:130%;color:#330033;"></span></div><div align="center"><span style="font-family:lucida grande;font-size:130%;color:#330033;"></span></div><div align="center"><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">Esta é a aventura do famoso Jouha. Na Argélia chamam-lhe Jha, ou então, Ben Sakrane. Mais a leste, conhecem-no como Nasredin Hodja. Na realidade, trata-se de Tyl Eulenspiegel ou de Jean le Sot; o louco que vende a sua sabedoria, aquele que zurra como um burro para ser ouvido, e que às vezes é dono de uma esperteza imbatível.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">Um dia, Jha encontrou alguns amigos prontos para combater. Tinham escudos, lanças, arcos e aljavas cheias de setas.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">— Onde vão nesses preparos? — perguntou-lhes.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">— Não sabes que somos soldados profissionais? Vamos tomar parte numa batalha, que promete ser dura!</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">— Óptimo, eis uma oportunidade para ver o que acontece nessas coisas de que ouvi falar mas que nunca vi com os meus próprios olhos. Deixem-me ir convosco, só desta vez!</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">— Está bem! És bem-vindo!</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">E lá foi ele com o pelotão que se ia juntar ao exército no campo de batalha.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">A primeira seta acertou-lhe em cheio na testa!</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">Depressa! Um cirurgião! O médico chegou, examinou o ferido, meneou a cabeça e declarou:</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">— A ferida é profunda. Vai ser fácil remover a seta. Mas, se tiver a mais ínfima parte de cérebro agarrada, está perdido!</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">O ferido agarrou na mão do médico e beijou-a, exprimindo a sua “profunda gratidão para com o Mestre”, e declarou:</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">— Doutor, pode remover a seta sem medo; não vai encontrar a mais ínfima parte de cérebro nela.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">— Esteja calado! — disse o médico. — Deixe os especialistas tratarem de si! Como sabe que a seta não atingiu o seu cérebro?</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">— Sei-o bem demais — disse Jha. — Se eu tivesse a mais pequena partícula de cérebro, nunca teria vindo com os meus amigos.<br /></span></div><div align="justify"><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:lucida grande;"><br /><span style="color:#330033;"></span></span></div><div align="right"><span style="font-size:85%;"><span style="font-family:lucida grande;color:#330033;">Margaret Read MacDonald<br /></span><span style="font-family:lucida grande;"><span style="color:#330033;"><em>Peace Tales<br /></em>Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005</span></span></span></div><div align="right"><strong><span style="font-family:lucida grande;font-size:85%;color:#330033;"></span></strong></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-16332885091071578572007-05-19T12:58:00.000+01:002007-06-19T23:42:49.979+01:00Tentando alcançar a lua - conto tibetano<div align="center"><span style="font-family:Verdana;color:#663366;"></span> </div><div align="center"><span style="font-family:Verdana;color:#663366;"></span></div><div align="center"><span style="color:#663366;"></span></div><div align="center"><span style="font-family:Verdana;color:#663366;"></span></div><div align="center"><span style="color:#663366;"></span></div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#663366;"></span></div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#663366;"></span></div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#663366;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#663333;">Uma noite, o Rei dos Macacos reparou numa gloriosa lua dourada que repousava no fundo de uma lagoa. Não se apercebendo de que se tratava apenas de um reflexo, o Rei chamou os seus súbditos para que lhe fossem buscar aquele tesouro não reclamado.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#663333;">— O nosso macaco mais forte agarra-se a esta árvore — ordenou o Rei. — E o nosso segundo macaco mais forte agarra-se à mão dele, tenta alcançar a água e pega na lua dourada.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#663333;">Assim fizeram. Mas o segundo macaco não conseguia alcançar a lua.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#663333;">— Quem é o nosso terceiro macaco mais forte? Agarra-te à mão do teu irmão e vai buscar a lua.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#663333;">Mas a lua continuava fora do alcance deles.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#663333;">— Tragam o quarto macaco mais forte. Que desça até junto da lagoa e tente a sua sorte.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#663333;">Os macacos formavam agora uma cadeia, cada um pendurado no braço do outro. O quarto macaco usou os braços deles como escada e ficou pendurado na mão do terceiro macaco… mas a lua continuava fora do seu alcance. E assim continuaram… cinco… seis… sete… oito… macaco após macaco, até que o último conseguia tocar já na superfície da água.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#663333;">— Estamos quase a conseguir! — gritaram os macacos.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#663333;">— Deixem-me ser o primeiro a agarrá-la! — gritou o Rei, que se lançou cadeia abaixo.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#663333;">Mas o peso de toda esta loucura tinha-se tornado demasiado para as forças do macaco mais forte, que continuava agarrado ao topo da árvore. Quando o Rei ia a tocar a água para pegar na lua, o macaco mais forte largou o tronco. Um a um, caíram todos na lagoa e afogaram-se, juntamente com o Rei.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:verdana;color:#663333;">Aquele que segue um líder insensato é ele próprio um tolo.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#663333;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:verdana;color:#663333;"></span></div><div align="right"><br /><span style="font-size:85%;"><span style="font-family:verdana;"><span style="color:#663333;">Margaret Read MacDonald<br /><em>Peace Tales</em></span></span></span></div><div align="right"><span style="font-family:verdana;font-size:85%;color:#663333;">Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005</span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-80131076009728066662007-05-19T12:54:00.000+01:002007-06-08T08:39:28.044+01:00Duas cabras numa ponte - conto russo<div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#990000;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#990000;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#990000;"></span></strong></div><div align="center"><span style="color:#990000;"><strong><span style="font-size:130%;">Duas cabras numa ponte</span></strong><br /></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;">conto russo<br /></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="center"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#990000;">Uma ponte estreita ligava duas montanhas. Em cada uma das montanhas vivia uma cabra. Dias havia em que a cabra da montanha ocidental atravessava a ponte para ir pastar na montanha oriental. Dias havia em que a cabra da montanha oriental atravessava a ponte para ir pastar na montanha ocidental. Mas, um dia, as cabras começaram a atravessar a ponte ao mesmo tempo.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#990000;">Encontraram-se no meio da ponte. Nenhuma queria ceder passagem à outra.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#990000;">— Sai da frente! — gritou a Cabra Ocidental. — Estou a atravessar a ponte.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#990000;">— Sai tu da frente! — berrou a Cabra Oriental. — Quem está a atravessar sou eu!</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#990000;">Como nenhuma delas queria recuar e nenhuma delas podia avançar, ali ficaram, enfurecidas, durante algum tempo. Finalmente, entrelaçaram os chifres e começaram a empurrar. Eram tão semelhantes em força que apenas conseguiram empurrar-se uma à outra da ponte abaixo. Molhadas e furiosas, saíram do rio e subiram a encosta, a caminho de casa, cada uma murmurando para si: “Vejam só o que a teimosia dela provocou.”</span></div><div align="justify"><span style="color:#990000;"></span></div><div align="right"><br /><br /><span style="font-size:85%;"><span style="color:#990000;">Margaret Read MacDonald<br /><em>Peace Tales</em></span></span></div><div align="right"><span style="font-size:85%;color:#990000;">Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005</span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-72926255706142859642007-05-19T12:50:00.000+01:002007-06-08T08:40:17.802+01:00Quem luta perde sempre - conto indiano<div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#333399;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#333399;">Quem luta perde sempre </span></strong></div><div align="center"><span style="color:#333399;"></span><strong><span style="font-size:130%;"><br /></div></span></strong><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#333399;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="color:#333399;">conto indiano</span></strong></div><div align="center"><strong><span style="color:#333399;"></span></strong></div><div align="justify"><span style="color:#333399;"></span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#333399;">Um chacal recém-casado vivia perto da margem de um rio. Um dia, a esposa pediu-lhe uma refeição de peixe. O chacal prometeu trazer-lha, embora não soubesse nadar. Aproximou-se do rio com todas as cautelas e viu duas lontras a lutarem com um peixe enorme que tinham apanhado. Depois de matarem o peixe, começaram a lutar para dividir o peixe entre ambas. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#333399;">— Eu vi-o primeiro, por isso a parte maior pertence-me! — disse uma delas.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#333399;">— Mas ias-te afogando a pescá-lo e eu salvei-te — contrapôs a outra.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#333399;">Continuaram a lutar até que o chacal se aproximou delas e se ofereceu para ajudar a regular a disputa. As lontras concordaram em acatar a decisão que ele tomasse. O animal cortou o peixe em três pedaços. A uma das lontras deu a cabeça e à outra deu a cauda. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#333399;">— A parte do meio é para o juiz — declarou.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#333399;">Afastou-se dali todo contente e disse para consigo:</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#333399;">— Quem luta perde sempre.</span></div><div align="justify"><span style="color:#333399;"></span></div><div align="right"><br /><span style="font-size:85%;"><span style="color:#333399;">Margaret Read MacDonald<br /></span><span style="color:#333399;"><em>Peace Tales<br /></em>Arkansas, August House Publishers, Inc., 2005</span></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-24567182991929005172007-05-19T12:35:00.000+01:002007-07-28T22:23:15.800+01:00MyLai: uma análise da maldade em grupo<span style="font-size:85%;">M.Scott Peck<br /><em>Gente da Mentira</em><br />Cascais, Sinais de Fogo, 2001</span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><br /><em><span style="font-size:85%;">Excertos adaptados</span></em><br /><em><span style="font-size:85%;"></span></em><br /><em><span style="font-size:85%;"></span></em><br /><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;">MyLai: uma análise da maldade em grupo</span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;"><br /></div></span></strong><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;"></div></span></strong><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;"></span></strong></div><div align="justify"><strong><span style="font-size:130%;">Prefácio à maldade em grupo</span></strong></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br />Os gatilhos são premidos por indivíduos. As ordens são dadas e cumpridas por indivíduos. Em última análise, cada acto humano é resultado de uma escolha individual. Nenhum dos indivíduos que participou nas atrocidades de MyLai ou no seu encobrimento está isento de culpa. Até o piloto de helicóptero – o único suficientemente bom e corajoso para tentar impedir o massacre – pode ser culpado por não reportar o que vira para além do primeiro escalão de autoridade acima de si.</div><div align="justify"><br />Há muitos anos que a tendência de comportamento dos grupos humanos me parece semelhante à dos indivíduos – excepto a um nível mais primitivo e imaturo do que se possa pensar. Porque é que isto é assim – porque é o comportamento dos grupos surpreendentemente imaturo – por que motivo, de uma perspectiva psicológica, são estes menos do que a soma das suas partes – já não sei responder.[1] Mas de uma coisa tenho a certeza, no entanto: existe mais do que uma resposta certa. O fenómeno da imaturidade de grupo é – usando o termo psiquiátrico – “multi-determinado”. Quer isto dizer que é o resultado de múltiplas causas. Uma dessas causas é a especialização excessiva.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><span style="font-size:85%;">[1]</span><span style="font-size:85%;"> É uma questão verdadeiramente importante e merecedora de grande pesquisa e aprofundamento. É um tema não só específico da maldade em grupo em geral – como se não fosse suficiente – mas também crucial para a compreensão de todos os fenómenos de grupos humanos, desde as relações internacionais à natureza da família.</span></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br />A especialização é uma das grandes vantagens dos grupos. Existem processos para um grupo funcionar muito mais eficientemente do que os indivíduos. Em virtude de os seus funcionários se terem especializado em directores executivos, gráficos, moldadores, e técnicos da linha de montagem (que, por sua vez, são também especializados), a General Motors consegue produzir um número gigantesco de veículos. O nosso padrão de vida extraordinariamente elevado baseia-se inteiramente na especialização da nossa sociedade. O facto de eu possuir os conhecimentos e o tempo para escrever este livro é consequência directa do facto de ser um especialista dentro da nossa comunidade, totalmente dependente de agricultores, mecânicos, editores e vendedores de livros para o meu bem-estar. Dificilmente posso considerar a especialização como uma coisa má. Por outro lado, estou totalmente convencido de que muito do mal dos nossos tempos se relaciona com a especialização, e de que precisamos desesperadamente de desenvolver uma atitude de precaução desconfiada. Penso que deveríamos tratar a especialização com o mesmo grau de desconfiança e medidas de segurança com que tratamos os reactores nucleares.</div><div align="justify"><br />A especialização contribui para a imaturidade dos grupos e para o seu potencial para a maldade através de vários mecanismos diferentes. Por agora, limitar-me-ei a tecer considerações sobre apenas um desses mecanismos: a fragmentação da consciência. Se, na época de MyLai, ao percorrer os corredores do Pentágono, parasse para falar com homens responsáveis pela direcção de produção e transporte de bombas de napalm para o Vietname, e os questionasse sobre a moralidade da guerra e consequentemente sobre a moralidade do que estavam a fazer, esta era a resposta que invariavelmente recebia:</div><div align="justify"><br />— Oh, agradecemos a sua preocupação, agradecemos mesmo, mas acho que veio ter com as pessoas erradas. Não somos nós o departamento que deseja. Isto é apenas o departamento do arsenal. Só fornecemos as armas – não somos nós que determinamos onde e como são usadas. Isso é política. Devia era falar com o pessoal da política, ao fundo do corredor.</div><div align="justify"><br />E se seguisse esta recomendação e exprimisse as mesmas apreensões no departamento de política, a resposta seria:</div><div align="justify"><br />— Oh, compreendemos que estão envolvidos assuntos mais complexos, mas acho que estão fora do nosso âmbito. Apenas determinamos como deve ser conduzida a guerra – e não se deve ser conduzida. Compreende, as Forças Armadas são apenas uma secção da divisão executiva. Só fazem o que lhes mandam fazer. Esses assuntos mais complexos são decididos ao nível da Casa Branca, e não aqui. É aí que deve expor as suas apreensões.</div><div align="justify"><br />E assim por diante.</div><div align="justify"><br />Sempre que os papéis desempenhados por indivíduos num grupo se tornam especializados, torna-se possível e fácil para o indivíduo descartar a responsabilidade moral para qualquer outra parte do grupo. Desta forma, não só o indivíduo põe de lado a sua consciência, como a consciência do grupo como um todo se torna tão fragmentada e diluída que deixa de existir. Veremos esta fragmentação vez após vez, de uma forma ou de outra, na discussão que se segue. O facto é que é inevitável que qualquer grupo permaneça potencialmente sem consciência e mau até que cada um dos indivíduos se sinta pessoal e directamente responsável pelo comportamento do grupo inteiro – do organismo – do qual faz parte. Ainda estamos longe de chegar a esse ponto. </div><div align="justify"><br />Tendo presente a imaturidade psicológica dos grupos, vamos examinar alguns aspectos de ambos os crimes de MyLai: as atrocidades em si e o seu encobrimento. Os dois crimes estão deveras interligados. Embora o encobrimento pareça menos atroz do que o massacre, são ambos farinha do mesmo saco. Como foi possível que tantos indivíduos tenham participado numa maldade tão monstruosa sem que nenhum deles tenha sido compelido pela sua consciência a confessar? </div><div align="justify"><br />O encobrimento foi uma mentira de grupo gigantesca.</div><div align="justify"><br />Como com qualquer mentira, o motivo principal do encobrimento foi o medo. Os indivíduos que cometeram os crimes – que puxaram o gatilho ou que deram as ordens – tinham razões óbvias para recear relatar o que tinham feito. Seriam julgados em tribunal marcial. Mas, então, o que dizer sobre o número muito maior de indivíduos que apenas presenciaram as atrocidades, mas que nada disseram sobre “aquela coisa tão negra e sangrenta”[2]? O que tinham eles a recear?</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><span style="font-size:85%;">[2]</span><span style="font-size:85%;"> Frase da carta de Ron Ridenhour.</span></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br />Qualquer pessoa que dedique algum tempo a pensar sobre a natureza da pressão num grupo percebe que, para um elemento da Força de Intervenção Barker, denunciar um crime fora desse grupo exige uma grande coragem. Quem quer que o fizesse seria chamado “delator” ou “bufo”. Não existe pior nome que se possa chamar a alguém do que esse. Os bufos são muitas vezes assassinados. No mínimo, são condenados ao ostracismo. Para um vulgar civil americano, o ostracismo pode não parecer um destino assim tão terrível. “Então, se se for corrido de um grupo, pode-se sempre entrar noutro”, pode ser uma reacção. Mas lembremo-nos de que um membro das Forças Armadas não é livre para simplesmente aderir a outro grupo. Não pode sequer deixar as Forças Armadas até terminar o seu recrutamento. A própria deserção é um crime enorme. E por isso ele está preso às Forças Armadas, e até mesmo ao seu grupo militar em particular, excepto mediante intervenção das autoridades. Para além disto, as Forças Armadas fazem deliberadamente muitas outras coisas para intensificar o poder da pressão de grupo nas suas fileiras. Do ponto de vista da dinâmica de grupo, e em especial da dinâmica de grupos militares, não será estranho que os elementos da Força de Intervenção Barker não tenham denunciado os crimes do grupo. Nem sequer é surpreendente que o homem que finalmente delatou os crimes não pertencesse nem ao grupo da Força de Intervenção nem às Forças Armadas, na altura em que os denunciou.</div><div align="justify"><br />Suspeito que existe uma outra razão extremamente importante para que os crimes de MyLai tenham ficado por denunciar durante tanto tempo. Não tendo falado com os indivíduos envolvidos, apresento uma mera conjectura. Mas, de facto, falei com muitos, muitos outros soldados que estiveram no Vietname nesses anos, e conheço profundamente as atitudes predominantes nas Forças Armadas naquela época. A minha sincera suspeita, portanto, é que os membros da Força de Intervenção Barker não confessaram os seus crimes por não estarem conscientes de os terem cometido. Claro que sabiam o que tinham feito, mas se tinham ou não a noção do significado e da natureza dos seus actos é outra coisa completamente diferente. Desconfio que muitos deles nem consideram que tenham cometido um crime. Não confessaram porque acharam que não tinham nada para confessar. Indubitavelmente, alguns esconderam a sua culpa. Mas outros, creio eu, não tinham culpas para esconder.</div><div align="justify"><br />Como pode isto ser assim? Como pode um homem equilibrado assassinar e não saber que o fez?</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><strong><span style="font-size:130%;">A progressão da responsabilidade colectiva</span></strong> </div><div align="justify"><br /><em><strong>O Indivíduo sob Pressão</strong></em></div><strong><em></em></strong><div align="justify"><br />Quando tinha dezasseis anos tirei os quatro dentes do siso nas férias da Primavera. Durante os cinco dias seguintes o maxilar não só me doía, como inchou e fechou. Não conseguia mastigar sólidos – só líquidos ou comida de bebé insípida. O sabor fétido a sangue estava constantemente na minha boca. No final daqueles cinco dias, o nível do meu funcionamento psíquico tinha sido reduzido ao dos três anos de idade. Tornara-me completamente egocêntrico. Era rabugento e piegas com os outros. Esperava que tivessem constante atenção para comigo. Quando qualquer pequenina coisa não corria precisamente como e quando eu queria, vinham-me as lágrimas aos olhos e o meu desagrado era enorme.</div><div align="justify"><br />Acredito que quem já sofreu uma dor ou mal-estar crónicos significativos – por exemplo, durante uma semana – reconhece a experiência que acabo de descrever. Numa situação de mal‑estar prolongado, nós, humanos, tendemos natural e quase inevitavelmente a regredir. O nosso crescimento psicológico inverte-se; a nossa maturidade é posta de lado. </div><div align="justify"><br />Muito rapidamente nos tornamos mais infantis, mais primitivos. O mal-estar é pressão. O que estou a descrever é uma tendência do organismo humano para regredir em resposta à pressão crónica.</div><div align="justify"><br />A vida de um soldado em zona de combate é repleta de pressão crónica. Embora o Exército tivesse feito o que podia para minimizar a pressão nas tropas no Vietname (facultando sempre que possível entretenimento, períodos recreativos e de descanso e outras formas de relaxamento), o facto é que as tropas da Força de Intervenção Barker estavam sujeitas a uma situação crónica de pressão. Estavam no lado do mundo oposto a casa. A comida era má, o calor enervante, o alojamento desconfortável. Depois havia o perigo, geralmente menos grave no Vietname do que noutras guerras, mas talvez exercendo mais pressão por ser tão imprevisível. Chegava durante a noite, sob a forma de rajadas de morteiros quando os soldados achavam que estavam em segurança, armadilhas que os soldados faziam disparar quando iam a caminho das latrinas, minas que explodiam as pernas de um homem quando percorria uma bonita ladeira. O facto de a Força de Intervenção Barker não se ter deparado com o inimigo que esperava naquele dia memorável era típico da natureza do combate no Vietname. O inimigo aparecia quando menos se esperava.</div><div align="justify"><br />Além da regressão, há outro mecanismo com o qual os seres humanos respondem à pressão. Trata-se de um mecanismo de defesa. Robert J. Lifton, que estudou os sobreviventes de Hiroshima e de outros desastres, chamou-lhe “dormência psíquica”. Numa situação em que os nossos sentimentos emocionais são esmagadoramente dolorosos ou desagradáveis, temos a capacidade de nos anestesiarmos. É uma coisa relativamente simples. A visão de um só corpo desmantelado e sangrento horroriza-nos. Mas se virmos corpos desses à nossa volta todos os dias, dia após dia, o horrível torna-se normal e perdemos a sensação de horror. Pura e simplesmente, desligamos. A nossa capacidade para o horror atrofia. Não conseguimos mais ver o sangue, ou cheirar o fedor ou sentir a agonia. </div><div align="justify"><br />Inconscientemente ficamos anestesiados. Esta capacidade de auto-anestesia emocional tem obviamente as suas vantagens. Sem dúvida, a evolução foi-nos munindo desta característica que aumenta a nossa capacidade de sobrevivência. Permite-nos continuar a funcionar em situações tão drásticas que sucumbiríamos se preservássemos a nossa sensibilidade normal. O problema, no entanto, é que este mecanismo de auto-anestesia não parece ser muito específico. Se por vivermos no meio do lixo a nossa sensibilidade ao que é feio diminui, é provável que nós próprios comecemos a espalhar detritos e lixo à nossa volta. Insensíveis ao nosso próprio sofrimento, tornamo-nos insensíveis ao sofrimento dos outros. Tratados indignadamente, perdemos não só o sentido da nossa própria dignidade como também o sentido da dignidade dos outros. Quando já não nos incomoda ver corpos mutilados, deixa de nos incomodar mutilá-los nós. É de facto difícil fechar selectivamente os olhos a um certo tipo de brutalidade sem os fechar a toda a brutalidade. Como podemos tornar-nos insensíveis à brutalidade senão tornando-nos nós brutos?</div><div align="justify"><br />Creio que então podemos assumir que, depois de um mês no campo com a Força de Intervenção Barker – um mês de má comida, de pouco sono, de ver camaradas mortos ou aleijados – o soldado comum estaria psicologicamente mais imaturo, primitivo e bruto do que poderia estar numa época e lugar de menos pressão.</div><div align="justify"><br />E se normalmente regredimos em face da pressão, não poderemos dizer que os seres humanos têm mais tendência a ser maus em tempos de pressão do que em tempos de bem-estar? Eu creio que sim. Perguntamos como é que um grupo de cinquenta ou quinhentos indivíduos – dos quais poderíamos supor que apenas uma pequena minoria fosse má – pode ter cometido uma tamanha maldade como MyLai. Uma das respostas é que, devido à contínua pressão a que estavam sujeitos, os indivíduos da Força de Intervenção Barker eram mais imaturos e portanto piores do que seria de esperar numa situação normal. Em consequência da pressão, a distribuição normal do Bem e do Mal pendeu na direcção do Mal. No entanto, como veremos, este é apenas um dos factores que contribuiu para a maldade em MyLai.</div><div align="justify"><br />Tendo considerado a relação entre a maldade e a pressão, será adequado referir a relação entre a bondade e a pressão. Aquele que se comporta com dignidade em tempos fáceis – por assim dizer, um amigo nos tempos bons – pode não ser assim tão digno quando as coisas correm mal. A pressão é um teste à bondade. Os verdadeiramente bons são aqueles que em tempos de pressão não abandonam a sua integridade, nem a sua maturidade e sensibilidade. A dignidade pode ser definida como a capacidade de não regredir em face da degradação, de não se tornar cego perante a dor, de tolerar a agonia e permanecer intacto. Tal como disse atrás, “uma medida – e talvez a melhor medida – da grandeza de uma pessoa, é a sua capacidade para o sofrimento”.[3]</div><div align="justify"><br /><br /><span style="font-size:85%;">[3]</span><span style="font-size:85%;"> <em>The Road Less Traveled</em> (Simon & Schuster, 1978), pág.76 [O Caminho Menos Percorrido (Sinais de Fogo, 1999), pág. 80].</span></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><strong><span style="font-size:130%;">Dinâmica de grupo: dependência e narcisismo</span></strong></div><div align="justify"><br />Os indivíduos não regridem apenas em alturas de pressão, também o fazem em situações de grupo. Um dos aspectos desta regressão é o fenómeno de dependência do líder. É, de facto, admirável. Reúna qualquer pequeno grupo de estranhos – cerca de uma dúzia –, e quase sempre a primeira coisa que acontece é que um ou dois deles rapidamente assumem o papel de líder do grupo. Não acontece devido a um processo racional de eleição consciente. Acontece naturalmente – espontânea e inconscientemente. Porque é que acontece tão fácil e rapidamente? Uma razão, claro, é que existem indivíduos mais capazes de liderar os outros ou que desejam liderar mais do que os outros. Mas a razão mais básica é outra: é que a maioria das pessoas preferem ser seguidores. Mais do que qualquer outra coisa, é provavelmente uma questão de preguiça. É simplesmente mais fácil seguir e ser um seguidor em vez de um líder. Não se torna necessário agonizar sobre decisões complexas, planear em relação ao futuro, tomar iniciativas, arriscar a impopularidade ou ter muita coragem.</div><div align="justify"><br />O problema é que o papel de um seguidor é um papel de criança. O indivíduo adulto é mestre do seu próprio navio, director do seu destino. Mas quando assume o papel de seguidor, delega no líder este poder: a sua autoridade sobre si mesmo e a sua maturidade como tomador de decisões. Torna-se psicologicamente dependente do líder, tal como uma criança é dependente dos pais. Desta forma, há uma forte tendência para o indivíduo comum regredir emocionalmente assim que se torna membro de um grupo.</div><div align="justify"><br />O objectivo do Primeiro Pelotão da Companhia Charlie da Força de Intervenção Barker não era o de criar líderes, mas o de matar vietcongues. Na realidade, para atingirem os seus objectivos, as Forças Armadas desenvolveram e fomentaram um estilo de liderança de grupo que é essencialmente oposto ao de uma terapia de grupo. É uma velha máxima que os soldados não são feitos para pensar. Os líderes não são eleitos a partir de dentro do grupo mas nomeados a partir de cima e transformados em símbolos de autoridade. A disciplina militar por excelência é a obediência. A dependência do soldado em relação ao seu líder não é só encorajada, é obrigatória.[4] Dada a natureza da sua missão, as Forças Armadas fomentam de forma intencional e provavelmente realista a dependência regressiva que ocorre naturalmente nos indivíduos dentro dos seus grupos.</div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><span style="font-size:85%;">[4]</span><span style="font-size:85%;"> Até os civis cometem actos maus com uma facilidade espantosa, quando sujeitos à obediência. Como David Myers descreveu no seu excelente artigo “A Psychology of Evil” (<em>The Other Side</em> [Abril 1982], pág. 29): “O melhor exemplo são as experiências de obediência de Stanley Milgram. Confrontados com um comandante imponente e próximo, 75 por cento dos seus sujeitos adultos obedeceram cegamente às instruções. Sob ordens, davam choques eléctricos aparentemente traumatizantes a uma vítima inocente que gritava na sala ao lado. Tratavam-se de pessoas normais – uma mistura de colarinhos brancos, colarinhos azuis e profissionais. Desprezavam esta tarefa. Mas a obediência sobrepunha-se ao próprio sentido moral.”</span></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br />Em situações como a de MyLai, o soldado individual é uma situação praticamente impossível. Por um lado, lembra-se vagamente de ter ouvido numa aula que não precisa de renunciar à sua consciência e deve ter uma independência de julgamento adulta – até um dever – de recusar obedecer a uma ordem ilegal. Por outro lado, a organização militar e a sua dinâmica de grupo fazem todos os possíveis para tornar tão doloroso, difícil e anti-natural quanto possível que o soldado exerça independência de julgamento ou desobedeça. Não é claro que as ordens da Companhia Charlie tenham sido “matar tudo o que se mexa”, ou “dizimar a aldeia”. Mas se foram, será de admirar que as tropas tenham seguido essas ordens dos seus líderes? Esperaríamos, pelo contrário, que se tivessem amotinado em massa?</div><div align="justify"><br />Se o motim em massa parece um tanto forçado, não poderíamos pelo menos prever um número reduzido de indivíduos que tivesse suficiente coragem para se revoltar contra o seu líder? Não necessariamente. Já fiz referência ao facto de que os padrões de comportamento de grupo são notoriamente semelhantes aos do indivíduo. Isto porque o grupo é um organismo. Tende a funcionar como uma entidade única. Um grupo de indivíduos comporta-se como uma unidade devido ao que é conhecido como coesão de grupo. Existem forças poderosas em jogo dentro de um grupo por forma a manter os seus membros individuais juntos e em linha. Quando estas forças de coesão falham, o grupo começa a desintegrar-se e deixa de ser um grupo.</div><div align="justify"><br />Provavelmente, a mais poderosa destas forças de coesão é o narcisismo. Na sua forma mais simples e benigna, manifesta-se em orgulho do grupo. Quanto mais orgulhosos os membros do grupo se sentem do grupo, mais este se sente orgulhoso de si mesmo. Mais uma vez, as Forças Armadas fazem deliberadamente mais do que a maioria das outras organizações para fomentar o orgulho dentro dos seus grupos. Fazem-no através de uma série de meios diferentes, tais como desenvolver insígnias de grupo – bandeiras por unidades, divisas nos ombros e até destaques especiais de uniformes, como é o caso dos Boinas Verdes[5] – e incentivar a competição entre grupos, desde os desportos de intramuros à comparação de pontos por unidades. </div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><span style="font-size:85%;">[5]</span><span style="font-size:85%;"> “The Green Berets“, Força Especial do Exército dos Estados Unidos. (N. da E.)</span></div><div align="justify"><br />Uma forma de narcisismo de grupo menos benigna mas praticamente universal é o que se pode chamar “criação do inimigo”, ou ódio pelos “fora-do-grupo”. Podemos observar isto naturalmente nas crianças, à medida que aprendem a formar grupos.[6] Os grupos tornam-se exclusivos. Aqueles que não pertencem ao grupo (ao clube ou ao grupo exclusivo) são desprezados como sendo inferiores, ou maus, ou ambos. Se um grupo não possuir já um inimigo, muito provavelmente há-de criar um muito rapidamente. A Força de Intervenção Barker, é evidente, tinha um inimigo predeterminado: os vietcongues. Mas estes eram na sua maioria naturais do país do povo sul-vietnamita, do qual eram frequentemente impossíveis de distinguir. Inevitavelmente, o inimigo específico generalizou-se a toda a população vietnamita, pelo que o soldado americano comum não odiava apenas os vietcongues, mas sim os Gooks[7] em geral.</div><div align="justify"><br /></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><span style="font-size:85%;">[6]</span><span style="font-size:85%;"> Os psicólogos verificam que, quando grupos semelhantes de rapazes de doze anos, em acampamentos e sem liderança adulta, são encorajados a competir uns com os outros, a competição benigna transforma-se rapidamente numa violenta “guerra à escala dos doze anos” (Myers, “A Psychology of Evil”, pág. 29).<br /></span><span style="font-size:85%;">[7]</span><span style="font-size:85%;"> Termo na gíria americana que designa os vietnamitas em geral. (N. da T.)</span></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br />É praticamente do conhecimento geral que a melhor forma de cimentar a coesão de grupo é fomentar o ódio do grupo em relação a um inimigo exterior. As deficiências dentro do grupo podem ser facilmente ignoradas em virtude de se centrar a atenção nas deficiências ou ofensas dos fora-do-grupo. Assim, os alemães de Hitler puderam ignorar os problemas domésticos tomando os judeus como bodes expiatórios. E quando as tropas americanas não conseguiam combater eficazmente na Nova Guiné durante a Segunda Guerra Mundial, o Comando incentivava o seu espírito de classe ao mostrar filmes de japoneses a cometerem atrocidades. Mas esta utilização do narcisismo – quer seja deliberada, quer inconsciente – é potencialmente má. Examinámos extensivamente os modos em que os indivíduos maus fogem à auto-análise e à culpa, responsabilizando e tentando destruir o que quer ou quem quer que aponte as suas próprias deficiências. Agora vemos que o mesmo comportamento narcisista maligno ocorre naturalmente nos grupos.</div><div align="justify"><br />Por tudo isto deve ser óbvio que o grupo que fracassa é o que provavelmente terá um comportamento mais maldoso. O fracasso fere o nosso orgulho e é o animal ferido que se torna perverso. Num organismo saudável, o fracasso é um estímulo para a auto-análise e a crítica. Mas como o indivíduo mau não tolera a autocrítica, é em momentos de fracasso que ele ou ela invariavelmente atacam de uma maneira ou de outra. E o mesmo se passa com os grupos. O fracasso do grupo e o estímulo à sua autocrítica ferem o orgulho e a coesão do grupo. Por isso, em todas as épocas e lugares, os líderes reforçam habitualmente a coesão dos grupos nas alturas de fracasso atiçando o ódio do grupo pelos estrangeiros ou pelo “inimigo”.</div><div align="justify"><br />Voltando ao assunto específico da nossa análise, recordemos que na época de MyLai a operação da Força de Intervenção Barker tinha sido um fracasso. Depois de mais de um mês no terreno, o inimigo ainda não tinha sido confrontado. Ainda assim, os americanos tinham sofrido baixas de uma forma lenta e regular. A contagem de corpos do inimigo, no entanto, era zero. Ao fracassar a sua missão – que antes do mais consistia em matar – a liderança do grupo estava ainda mais sedenta por sangue. Dadas as circunstâncias, a sede tornara-se indiscriminada e as tropas satisfá-la-iam sem pensar.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><strong><span style="font-size:130%;">O grupo especializado: a força de intervenção Barker</span></strong></div><div align="justify"><br />Já mencionei o potencial para a maldade que vem da especialização. Falei de como o indivíduo especializado está numa posição de passar a responsabilidade moral a outra roda dentada especializada da máquina, ou à própria máquina. Mesmo quando falei da regressão que ocorre nos indivíduos quando se tornam seguidores num grupo, estava a falar de especialização. O seguidor não é uma pessoa completa. Quem aceita o papel de não pensar nem liderar falseia a sua capacidade de liderar e de pensar. E como pensar e liderar já não é a sua especialidade ou dever, normalmente perde em consciência durante a troca.</div><div align="justify"><br />Passando da especialização do indivíduo à especialização de grupo, observamos o mesmo tipo de forças perigosas em acção. A Força de Intervenção Barker era um grupo especializado. Não tinha outros objectivos – como jogar futebol ou construir barragens ou mesmo alimentar-se a si próprio. Existia apenas com um objectivo altamente especializado: procurar e destruir os vietcongues na província de Quang Ngai em 1968.</div><div align="justify"><br />Quang Ngai. No entanto, o que o leitor pode não perceber é a grande componente de selecção e auto-selecção envolvidas na criação desse grupo. Embora nessa altura os cidadãos fossem recrutados para o serviço militar, a Força de Intervenção Barker não era propriamente uma amostra aleatória da população americana. Os membros mais pacifistas da sociedade excluíram-se a si próprios indo para o Canadá ou declarando-se objectores de consciência. Os membros menos pacifistas que desejavam evitar o combate preferiam normalmente alistar-se nas Forças Armadas em vez de serem recrutados. Ao alistarem-se, podiam optar pela Força Aérea ou pela Marinha, ou por outras especialidades não-combatentes do Exército, que provavelmente não os enviariam para o Vietname. A Força de Intervenção Barker era constituída quer por pessoal militar de carreira que optara deliberadamente pelas armas de combate, quer por “rufias” que haviam feito o mesmo (ou que, por qualquer outra razão, não conseguiram escapar ao facilmente evitável posto de soldado de infantaria).</div><div align="justify"><br />Até ao final de 1968, bastante depois de MyLai, a guerra do Vietname foi travada, do lado americano, quase inteiramente por voluntários. Para muitos soldados de carreira, uma comissão de serviço no Vietname era muito desejada e procurada. Significava medalhas, excitação, mais dinheiro e promoção garantida. Existia um sistema único de voluntariado para jovens alistados. Quem se apresentasse como voluntário para o Vietname podia ter a certeza de três coisas: uma mudança de lugar, uma licença imediata e um bónus. Estes incentivos eram suficientes para garantir um fornecimento adequado de “carne para canhão” voluntária até ao posterior aumento do envolvimento das tropas militares americanas na guerra a seguir a MyLai.</div><div align="justify"><br />O caso de um indivíduo prototípico pode ilustrar alguns aspectos do relacionamento entre a sociedade americana em 1968, as suas Forças Armadas e o subgrupo militar que combatia no Vietname. Chamemos a este indivíduo prototípico “Larry” e fixemos o seu local de origem em Iowa. Sendo o mais velho de seis irmãos, filhos de um pai agricultor por conta de outrem, alcoólico, e da sua extenuada mulher, Larry era sem dúvida um tormento desde que atingira a puberdade. Desistindo do liceu aos dezasseis anos, em 1965, sustentou-se parcamente com empregos esporádicos que não chegavam para pagar o seguro do seu automóvel, a gasolina e um estilo de vida que incluía muita bebida. Em Novembro de 1966, foi apanhado a tentar roubar uma estação de gasolina local. A comunidade adorou ver-se livre de Larry, mas ao mesmo tempo não queria aumentar a população prisional nem os impostos. Afinal de contas, o dinheiro tinha sido recuperado e não tinha ocorrido nenhum mal maior. E assim o juiz do condado disse a Larry que tinha duas opções: ou se alistava no Exército ou ia para a prisão.</div><div align="justify"><br />A partir daí foi tudo muito simples. O pequeno gabinete do serviço de recrutamento do Exército funcionava no mesmo prédio que o do juiz. Escusado será dizer que existiam vagas na infantaria. Larry alistou-se para prestar serviço na Alemanha, pois ouvira dizer que as raparigas eram fáceis, e no espaço de uma semana estava a caminho de Fort Leonard Wood, no Missouri, para o treino básico. O treino de infantaria básica e mais tarde avançada (AIT) mantiveram-no tão ocupado que nem teve tempo para arranjar sarilhos. Mas tudo mudou quando chegou à Alemanha. As raparigas eram tão boas como deviam ser e a cerveja era mesmo óptima. Mas os preços eram altos. Pediu dinheiro emprestado e teve dificuldades em pagá-lo. Vendeu algum haxixe para um dealer mais importante, o que ajudou, mas depois o seu fornecedor resolveu mudar-se. As dívidas aumentaram. Larry, agora quase com dezanove anos, podia ver como iam acabar as coisas. Ou os seus credores lhe davam uma sova ou denunciavam-no no negócio do haxixe. Mas tinha uma saída. Alistou-se secretamente no Vietname e em três dias estava num avião de regresso aos Estados Unidos, deixando para trás os seus problemas. Sentiu-se bem. Tinha recebido o seu bónus para estoirar numa licença de dez dias de regresso ao Iowa, revendo os velhos amigos e impressionando as raparigas. Quanto ao futuro depois disso, não estava minimamente preocupado. Ouvira dizer que as mulheres no Nam eram ainda melhores do que as da Alemanha e, além do mais, seria excitante ver a verdadeira acção, para variar. Dar uns tiros nalguns Gooks até podia ser divertido.</div><div align="justify"><br />Infelizmente, apesar da óbvia contribuição que seria para a nossa compreensão, nunca foi feita uma análise sociológica à Força de Intervenção Barker. Consequentemente, não posso dizer nada de científico. Não quero sugerir que o grupo inteiro fosse constituído de pequenos criminosos como “Larry”. Mas estou convencido de que a Companhia Charlie e a Força de Intervenção Barker não eram representativas do perfil transversal médio do povo americano. Todos os seus elementos chegaram a MyLai em Março de 1968, por razões de história pessoal e auto-selecção, através de um sistema de selecção também estabelecido pelas Forças Armadas americanas e pela sociedade americana como um todo. Não era um grupo de homens formado ao acaso. Era altamente especializado, não só na sua missão mas também na sua composição única.</div><div align="justify"><br />A composição humana especializada da Força de Intervenção Barker (e de inúmeros outros grupos humanos) levanta três tópicos significativos. Primeiro, há a questão da flexibilidade que se pode esperar de seres humanos especializados. A Companhia Charlie era um grupo especializado de assassinos. Os indivíduos que a compunham tinham, por uma razão ou por outra, assumido o papel de assassinos, e tinham também sido deliberadamente seduzidos pelo sistema para esse papel. Além disso, treinámo-los para esse papel e entregámos-lhes armas para o desempenharem. Será assim tão surpreendente que, dada uma série de outras circunstâncias favoráveis, tenham assassinado indiscriminadamente? Ou que aparentemente não tenham sentido uma enorme culpa em relação àquilo que os levámos a fazer? Será realista encorajar e manipular seres humanos para formarem grupos especializados e simultaneamente esperar que eles, sem qualquer treino significativo, mantenham uma amplitude de visão muito para além da sua especialidade?</div><div align="justify"><br />Um segundo tópico é o recurso subtil mas peremptório ao bode expiatório. O prototípico Larry era um ladrão e aldrabão insignificante, um tipo desagradável pelo qual não é fácil sentir simpatia. Mas também era um bode expiatório. E quando os membros da sua comunidade o empurraram para o Exército, não estavam a tentar lidar com o problema social e humano que ele personificava, mas simplesmente a livrar-se do problema. Purificaram a sua própria comunidade, despejando o lixo nas Forças Armadas e sacrificando Larry ao Deus da Guerra. E também se serviram das Forças Armadas como bode expiatório. Porque uma das funções subliminares das Forças Armadas é, sem dúvida, servir como depósito de alguns dos mais indesejáveis jovens americanos – uma espécie de reformatório nacional. Mas o facto de este sistema funcionar sem percalços, e nem sempre com maus resultados, não nos devia cegar para a natureza expiatória do seu processo.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify">O Exército fez de Larry um bode expiatório ainda maior, ao seduzi-lo para o Vietname. Por um lado, isto tem toda a lógica, do ponto de vista social. Porque é que não hão-de ser os indivíduos como Larry, desordeiros e desajustados, os candidatos mais apropriados para servir de carne para canhão? Se alguém tem de ser morto, porque não aqueles de valor social aparentemente baixo? Mas a decisão de matar não foi de Larry. Nem do Tenente Calley. Nem do seu oficial superior, o Capitão Medina. Nem do Tenente-Coronel Barker. Foi uma decisão dos Estados Unidos da América. Por alguma razão, os Estados Unidos decidiram que haveria matança e, ao matarem, estes homens estavam a obedecer à vontade dos Estados Unidos. Podem ter parecido mais sujos e menos dignos do que o americano comum, mas o facto é que nós, americanos, enquanto sociedade, os escolhemos e empregámos deliberadamente para levarem a cabo a nossa matança – o nosso trabalho sujo – por nós. Nesse sentido, foram todos nossos bodes expiatórios. </div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-5236819821129817452007-05-19T12:27:00.000+01:002007-05-19T12:33:21.165+01:00O rito da guerra e a psique do guerreiro<span ><span style="font-size:85%;">Sam Keen<br /><em>O homem na sua plenitude</em><br />S. Paulo, Cultrix, 1998</span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><br /><em><span style="font-size:85%;">Excertos adaptados</span></em></span><br /><em><span style="font-family:Arial;font-size:85%;"></span></em><br /><em><span style="font-family:Arial;font-size:85%;"></span></em><br /><em><span style="font-family:Arial;font-size:85%;"></span></em><br /><div align="center"><strong><em><span style="font-family:Arial;font-size:130%;">O rito da guerra e a psique do guerreiro </span></em></strong></div><div align="center"><strong><em><span style="font-family:Arial;"><br /> </div></span></em></strong><div align="center"><strong><em><span style="font-family:Arial;"></div></span></em></strong><div align="center"><strong><em><span style="font-family:Arial;"></span></em></strong></div><div align="center"><strong><em><span style="font-family:Arial;"></span></em></strong></div><div align="center"><strong><em><span style="font-family:Arial;"></span></em></strong></div><div align="center"><strong><em><span style="font-family:Arial;"></span></em></strong></div><div align="center"><em><span style="font-family:Arial;"></span></em></div><div align="right"><em>«O direito do mais forte é a mais forte injustiça»<br /></em></div><div align="right"><em><br /> </div></em><div align="right"><em></div></em><div align="right"><em></em></div><div align="right"><em></em></div><div align="right"><em></em></div><div align="right"><em></em></div><div align="right"><em></em></div><div align="justify"><em></em></div><div align="justify">Eu tinha catorze anos quando lutei de verdade pela última vez, com punhos e pés e o que quer que tivesse à mão. Já não me lembro do motivo da briga, talvez fosse uma rapariga, talvez um insulto casual no autocarro da escola, talvez porque “o inimigo” morasse do outro lado da linha imaginária, na rua Bellefonte, e frequentasse outra escola. Do meu ponto de vista, Charley era meio efeminado. Peito cavado, ombros caídos, caminhava com um passo longo de macaco. De qualquer maneira, a guerra fora declarada, e nós concordámos em encontrar-nos no terreno baldio ao lado da casa de Nancy Ritter. Na hora aprazada, aparecemos no campo de batalha, cada qual acompanhado por membros escolhidos das respectivas tribos. Durante algum tempo, limitámo-nos a circular um em volta do outro, esperando que o outro desfechasse o primeiro murro. “Queres alguma coisa?” “Se me puseres a mão em cima, dou cabo de ti.” Aproximámo-nos um pouco mais. Começámos a empurrar-nos, voaram punhos para todos os lados, e o primeiro atingiu-me no nariz. “Raios!”, gritei. Eu era melhor na luta do que no boxe, por isso pensei numa estratégia. Atirei-me ao chão, agarrei-lhe as pernas e derrubei-o. Depois de muito rolar, com o braço encolhido, esperneando, acabei debaixo dele, incapaz de me mover. “Desiste”, ordenou ele, “ou parto-te o braço.” Torceu-me o braço e esfregou-me a cara no cascalho. “Rendes-te?” Doía-me o rosto, porém menos do que o orgulho. Ambos sabíamos que eu estava derrotado, mesmo que não quisesse render-me. Por isso, ele soltou-me o braço e, depois de algumas descomposturas e humilhações obrigatórias, fomos para casa. </div><div align="justify"><br />Naquela noite, seguindo à risca o enredo das histórias de quadradinhos, jurei que nunca mais seria esmurrado por um maldito “maricas”. Mandei vir um curso de Charles Atlas e comecei a transformar um fracote de quarenta e seis quilos numa máquina magra e pequena de combate. No segredo do meu quarto, praticava “tensão dinâmica”, levantava pesos, fazia exercícios abdominais e de levantamento de pernas. Mais tarde, fiz um curso de luta livre. Durante anos, mesmo depois de entrar na casa dos trinta, exercitei-me na Associação Cristã de Rapazes. Aperfeiçoei as minhas técnicas de agarrar e derrubar o adversário e, uma vez por outra, entrei em competições na classe dos pesos médios. Nunca fui campeão, mas aprendi a gostar de lutar. E nunca mais ninguém me esfregou o rosto no chão. </div><div align="justify"><br />Entretanto, estudava filosofia e afiava as armas da dialéctica, do debate e da argumentação. Já com um doutoramento, tinha a mente ainda mais qualificada do que o corpo na arte da defesa pessoal. Como professor, participava de combates diários com colegas e alunos. Era bom no jogo académico, gostava dele e jogava para vencer. Mal notei que, com o passar dos anos, fui adoptando aos poucos uma atitude combativa em relação aos demais – a mente e a postura do guerreiro. Eu era muito melhor a lutar do que a reflectir ou a amar. </div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128650"><strong>Agentes da violência</strong></a> </div><div align="justify"><br />Por que é que o género que nos deu a Capela Sistina nos levou à beira do cosmocídio? Por que é que os melhores e os mais brilhantes exercitaram a inteligência, a imaginação e a energia, e só conseguiram criar um mundo em que a fome e a guerra são mais comuns do que nos tempos neolíticos? Por que é que a história do que nos atrevemos a chamar “progresso” foi marcada pelo aumento do sofrimento humano? </div><div align="justify"><br />Não será porque os homens estão decididos a ser vorazes, agressivos e brutais? Estará algum gene egoísta, algum imperativo territorial, a impelir-nos cegamente para a acção hostil? Estará a história de Caim e Abel gravada no nosso ADN? Estará o excesso de testosterona a condenar-nos à violência e a enfartes prematuros? </div><div align="justify"><br />Como os homens têm sido, historicamente, os principais agentes da violência, é tentador atribuir a culpa à nossa biologia e concluir que o problema reside mais no projecto equivocado da natureza do que na nossa obstinação. Mas todas as explicações deterministas passam por cima do óbvio: os homens são sistematicamente condicionados para suportar a dor, para matar e a morrer ao serviço da tribo, da nação ou do Estado. A psique masculina, antes de mais nada, é a psique do guerreiro. Nada nos plasma, molda e modela tanto como a exigência da sociedade de que nos tornemos especialistas no uso do poder e da violência, ou, como dizemos eufemisticamente, na “defesa”. Historicamente, a principal diferença entre homens e mulheres é que sempre se esperou que os homens fossem capazes de recorrer à violência quando necessário. A capacidade e a disposição para a violência têm sido centrais na nossa autodefinição. A psique masculina não foi construída sobre o racional: “Penso, logo existo”, mas sobre o irracional: “Conquisto, logo existo”. </div><div align="justify"><br />Quanto ao que veio a tornar-se o estado de emergência banal da vida moderna, concedemos ao Estado o poder de interromper a vida dos rapazes, de os convocar para servir o exército e iniciar no ritual da violência. Clichés que passam por sabedoria dizem-nos: “O exército fará de si um homem”, e “Todos os homens precisam de ter a sua guerra”. </div><div align="justify"><br />O ingresso no exército ou – se se é um dos “poucos felizardos” – na marinha, envolve o mesmo processo de destruição sistemática da individualidade que acompanhava a iniciação nas tribos primitivas. A cabeça rapada, o uniforme, os abusivos instrutores de exercícios, as provas de iniciação física e emocional da instrução dos recrutas da marinha, visam destruir a vontade do indivíduo e ensinar ao recruta que a virtude fundamental do homem é não a de pensar por si mesmo, mas antes a de obedecer aos superiores, não seguir o que lhe ordena a consciência, mas cumprir ordens. Como os ritos de todas as sociedades guerreiras, isto ensina os homens a dar valor ao que é duro e a desprezar o que é “feminino” e terno. Em parte alguma, como nas forças armadas, aprendemos com tanta clareza a máxima primitiva de que o indivíduo precisa de se sacrificar à vontade do grupo, vontade essa representada pelas autoridades. </div><div align="justify"><br />Na iniciação mítica, o neófito identifica-se com os heróis tribais, cuja história proporciona o modelo que será sobreposto à sua biografia. Que esse modo mítico-místico de iniciação ainda se encontra vigente na chamada “mente moderna” pode ver-se nas contínuas referências ao grande herói americano John Wayne, e na literatura que está a emergir sobre a experiência vietnamita. “A guerra era vista como uma prova de virilidade em que John Wayne matava todos os inimigos... Ocorriam-me imagens de filmes de John Wayne em que eu era o herói... As pessoas vêem os maus e os bons na televisão e no cinema... Eu queria matar o mau.” Os primeiros cristãos aprendiam que a vida autêntica era uma “imitação de Cristo”; os iniciados nos cultos de mistério transformavam-se no deus Dionísio; os bons rapazes americanos que iam para a batalha transformavam-se em John Wayne, o homem mítico divinizado e imortalizado pelos <em>media</em>. </div><div align="justify"><br />Nos últimos quatro mil anos, o baptismo de fogo tem sido um grande rito masculino de iniciação. A meta do homem era conquistar a medalha de bravura. Numa reportagem sobre o Vietname, Phillip Caputo expõe a tradição de uma forma clássica: “Antes do combate, aqueles fuzileiros navais ajustam-se a ambas as definições da palavra <em>infantaria</em> que, ou significa “corpo de soldados equipados para o serviço a pé”, ou “infantes, meninos, jovens, em colectividade”. A diferença era que a segunda definição já não podia ser-lhes aplicada. Tendo recebido o sacramento fundamental da guerra, o baptismo de fogo, a sua meninice tinha ficado para trás. Na ocasião, nem eles nem eu pensávamos nisso nesses termos. Não nos dizíamos a nós mesmos: “Estivemos debaixo de fogo, derramámos sangue, agora somos homens.” Simplesmente tínhamos consciência, de um modo que não podíamos expressar, de que alguma coisa significativa nos acontecera.</div><div align="justify"><br />Embora apenas uns poucos homens sirvam realmente nas forças militares e menos ainda tenham sido iniciados na fraternidade dos que mataram, todos os homens estão marcados pelo sistema da guerra e pelas virtudes militares. Todos se perguntam: “Sou um homem? Poderia eu matar? Posto à prova, revelar-me-ia um bravo? Tem alguma importância o facto de eu ter realmente matado ou de me ter arriscado a ser morto? </div><div align="justify"><br />Dar-me-iam mais ou menos valor se eu tivesse sido submetido ao baptismo de fogo? Eu dar-me-ia mais ou menos valor? Que mistério especial envolve o iniciado, o veterano? Que certificado de virilidade se equipara ao <em>Purple Heart</em> ou à Medalha de Honra do Congresso?” </div><div align="justify"><br />Os homens foram todos programados culturalmente para conquistar, matar ou morrer. Já no começo da vida, o rapaz aprende que precisa de estar preparado para lutar ou será apelidado de “maricas”, de “mulher”. Muitos homens criativos que conheço eram sensíveis, compassivos demais para lutar. E quase todos cresceram sentindo-se, de certo modo, inferiores e com a certeza de que não tinham passado a prova da masculinidade. Desconfio que muitos escritores ainda estão a mostrar aos valentões do bairro que a pena é mais forte do que a espada. A prova modelou-nos, quer tenhamos lançado bombas ou sido apanhados por elas. </div><div align="justify"><br />Somos todos feridos de guerra. </div><div align="justify"><span style="font-family:Arial;"></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-67639327198167291262007-05-19T12:24:00.000+01:002007-05-19T12:26:36.772+01:00Um mundo perigoso<span style="font-size:85%;color:#003300;">Além-Mar<br />Novembro 2005</span><br /><span style="font-size:85%;color:#003300;"></span><br /><br /><em><span style="font-size:85%;color:#003300;">Excertos</span></em><br /><em><span style="color:#003300;"></span></em><br /><br /><div align="center"><strong><em><span style="font-size:130%;color:#003300;">Um mundo perigoso</span></em></strong></div><div align="center"><strong><em><span style="font-size:130%;color:#003300;"><br /></span></em></strong> </div><div align="center"><strong><em><span style="font-size:130%;color:#003300;"></span></em></strong></div><div align="center"><strong><em><span style="font-size:130%;color:#003300;"></span></em></strong></div><div align="justify"><span style="color:#003300;">Durante décadas, a política nuclear tanto da ex-União Soviética como dos Estados Unidos baseava-se no conceito de dissuasão de destruição mútua assegurada (MAD). Apesar do fim da Guerra Fria, o espectro do terror ainda assombra a humanidade. Os arsenais nucleares foram reduzidos drasticamente, mas ainda existem milhares de ogivas nucleares. Em 1994, Norte-‑Americanos e Russos concordaram em redireccionar os seus mísseis. Já em 2001, George W. Bush afirmou ser necessário voltar a testar armas nucleares. A pesquisa e o desenvolvimento de armas nucleares continuam, a par das mudanças no quadro político mundial. Tradicionalmente, cinco países integravam o clube atómico: Estados Unidos, Rússia, China, França e Grã-‑Bretanha. Contudo, parece consensual que outros países também possuem armas nucleares. A Índia e o Paquistão já realizaram testes nucleares, que acenderam temores de uma escalada armamentista no Sudeste Asiático. Entre outras nações suspeitas de terem programas nucleares contam-se Israel, a Argélia e o Irão. Para além da Coreia do Norte, onde impera um regime desumano e desacreditado que, apesar de sucessivos acordos e ameaças de sanções, recorre sempre ao nuclear para pressionar a comunidade internacional. Mais de 180 países assinaram o Tratado de Não-Proliferação Nuclear, em vigor desde 1970. Até hoje, porém, várias nações sob forte suspeita de ocultarem as suas ambições nucleares ainda não o fizeram.</span></div><div align="justify"><span style="color:#003300;"></span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#003300;">Presentemente, com a globalização do terrorismo, uma das maiores ameaças que pesam sobre o mundo é que algum grupo radical se apodere do material atómico que, no caso da ex-URSS, foi deixado praticamente ao abandono, espalhado por vastas regiões do ex-império soviético. Há provas de que há contrabando de material nuclear e conhece-se até os nomes de alguns grandes traficantes. Mas a revista Scientific American lembrou recentemente que «qualquer tráfico detectado é apenas a ponta do iceberg» e que, naturalmente, «o mercado negro de material nuclear não é excepção». O artigo alerta: «É ingénuo acreditar que as autoridades interceptem mais de 80 por cento do que é traficado. Mas, neste caso, mesmo uma pequena taxa de não apreensões pode ter resultados funestos.» Mikhail Kulik, um especialista em armamento russo, afirma que, «hoje em dia, até mesmo os “stocks” de batatas são provavelmente mais bem guardados do que os materiais radioactivos». Outro perigo: após o desmembramento da URSS, uma boa parte do pessoal que trabalhava no programa militar soviético ou ficou desempregado ou perdeu subitamente o prestígio e o poder de compra. Daí ser grande a tentação de desviar e vender parte dos «stocks» ou de ser aliciado por países ou grupos que paguem melhor pelo seu saber.</span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-84501812912805366912007-05-19T11:49:00.000+01:002007-05-19T12:24:26.351+01:00A bomba está entre nós<span style="font-size:85%;">Hubert Reeves<br /><em>A hora do deslumbramento. Terá o universo um sentido?</em><br />Lisboa, Ed. Gradiva, 1991</span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><br /><span style="font-size:85%;">Excertos adaptados</span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><br /><div align="center"><span style="font-size:130%;"><strong>A bomba está entre nós </strong></span></div><span style="font-size:130%;"><strong></strong></span><br /><p><span style="font-size:130%;"><strong></strong></span> </p><p><span style="font-size:130%;"><strong> </p><div align="center"><br /></div></strong></span><div align="center"><span style="font-size:130%;"><strong></strong></span></div><div align="center"><span style="font-size:130%;"><strong></div></strong></span><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;"></span></strong></div><div align="justify">Da minha janela vejo o pôr-do-sol sobre a cidade. As vidraças reflectem-lhe a luz dourada sobre as ruas já ensombradas. Entre as bancadas do mercado, onde se alinham frutos e legumes, as pessoas discutem, compram e abalam com os cestos bem cheios.</div><div align="justify"><br />Ao observar esta vida calma e pacífica, como pensar na ameaça que pesa sobre ela? Armazenadas nos silos nucleares, 30 000 bombas atómicas estão prontas a saltar em poucos minutos. <em>Uma única</em> bastaria para aniquilar uma cidade inteira, deixando de ponta a ponta uma imensa cratera vítrea como as que se vêem na Lua.</div><div align="justify"><br />Mil milhões de mortos, mil milhões de feridos graves, tal é o cálculo das vítimas imediatas de um conflito nuclear generalizado, mas os efeitos a longo prazo seriam ainda mais aterradores, porque os sobreviventes lamentariam não terem sucumbido prontamente. Segundo as melhores estimativas, milhões de toneladas de poeiras e fuligem, dispersas na atmosfera, mergulhariam grande parte da superfície terrestre numa noite de vários meses e o calor solar deixaria de atingir o solo. A temperatura desceria por toda a parte e manter-se‑ia algumas dezenas de graus abaixo de zero, provocando, assim, o <em>inverno nuclear</em>...</div><div align="justify"><br />Depois disto, tempestades de grande violência disseminariam nos dois hemisférios substâncias tóxicas cujo teor radioactivo neutralizaria as defesas imunológicas de pessoas e animais. A agricultura, os cuidados médicos, os transportes públicos, seriam reduzidos a nada. A fome, o frio, as epidemias, poderiam, segundo alguns, provocar a <em>extinção do género humano</em>. (Estes cálculos e previsões têm sido contestados. O grau de incerteza é grande, mas <em>não exclui</em> o extermínio da nossa espécie).</div><div align="justify"><br />Como chegámos a isto? Por que aceitámos este cavalo de Tróia dentro das nossas muralhas? Por que espécie de perversidade fomos levados a construir, nós próprios, os instrumentos da nossa destruição? Porquê, em vez de nos livrarmos delas, damos em cada ano, a essas armas, uma potência maior, uma precisão mais mortífera?</div><div align="justify"><br />Este primeiro capítulo é uma reflexão sobre um tema entristecedor: <em>a Humanidade faz tudo o que pode (e ainda mais) para chegar o mais depressa possível à sua autodestruição.</em></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128627"><strong><span style="font-size:130%;">E a bomba nasceu...</span></strong></a></div><div align="justify"><br />O advento da bomba é melhor contado no estilo das grandes epopeias mitológicas do que no tom frio e impessoal da história contemporânea; a linguagem épica revela de modo mais eficaz a verdadeira dimensão dos trunfos em jogo.</div><div align="justify"><br />Longe de não ser mais do que uma crendice, cuja falsidade se demonstrou, o mito, tradicionalmente, é uma maneira de transmitir sabedoria e arte de viver. Não se trata de saber se é verdadeiro ou falso, mas sim de medir a sua eficácia como técnica de ensino.</div><div align="justify"><br />O mito de um ser do além que incarna e irrompe no nosso mundo surge com frequência nos escritos tradicionais. Precursores, profetas, grandes sacerdotes e sacerdotisas anunciam e preparam a sua vinda.</div><div align="justify"><br />De todas as divindades, a bomba é, sem dúvida, a mais despótica, a mais cruelmente exigente. Como vestais romanas, os seus discípulos consagram-se inteiramente ao seu serviço. Sentido do dever, competência, eficácia, honestidade científica, todas as qualidades que se exigem aos melhores são indispensáveis para levar a bom termo os trabalhos que o seu nascimento implica.</div><div align="justify"><br />A bomba não tolerará nenhuma lentidão, nenhuma fraqueza, nenhuma infidelidade, e os que quiserem deixá-la arrepender-se-ão. Sem demora serão substituídos por outros adoradores mais zelosos ainda, os quais, em grande número, esperam com impaciência a ocasião de a servir.</div><div align="justify"><br />Em menos de dez anos a bomba atómica passa do estado de especulação pura ao de realidade aterradora, gerada por uma das mais prodigiosas concentrações de matéria cinzenta da história humana. Em 1942, em Los Alamos, vila perdida no deserto do Novo México, reúnem‑se os melhores cientistas do planeta: físicos, matemáticos, químicos.</div><div align="justify"><br />O exército americano instala lá um super-laboratório, onde todos os meios são postos à disposição dos investigadores. O ambiente é de alta tensão, trabalha-se noite e dia, sem quaisquer férias. O parto é longo e difícil. A bomba manifesta-se pela primeira vez em Julho de 1945, em Alamogordo, também no Novo México. Pouco depois revela a sua verdadeira face, com o aniquilamento de duas cidades japonesas: Hiroxima e Nagasáqui. Em alguns segundos dezenas de milhares de pessoas passam, literalmente, ao estado gasoso. No total, mais de 150 000 vítimas.</div><div align="justify"><br />A bomba ganha em potência. No atol de Bikini, nas neves siberianas de Nova Zembla, atingirá o equivalente a <em>dezenas de milhões de toneladas de dinamite</em>. E ela prolifera: mais de 30 000, segundo as últimas notícias, encontram-se disseminadas nos arsenais do planeta.</div><div align="justify"><br />Instaladas sobre engenhos balísticas de assustadora precisão, várias de entre elas são‑nos destinadas e têm o doce nome de Paris, outras chamam-se Nova Iorque, Moscovo, Pequim. Para os técnicos que todos os dias as mantêm e acariciam, Paris é, antes do mais, o nome de um dos seus belos engenhos.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128628"><strong><span style="font-size:130%;">«Um conto de dormir em pé»</span></strong></a></div><div align="justify"><br />Mas voltemos à génese do armamento nuclear. Os primeiros rumores sobre a possibilidade de fabricar uma super-bomba, dita atómica, começam a circular no mundo científico alguns anos antes da Segunda Guerra Mundial.</div><div align="justify"><br />É o despontar da era nuclear. Pressentem-se então as propriedades explosivas do urânio, cujo átomo, radioactivo, se quebra facilmente, com emissão de energia. Um bloco de mineral de urânio liberta continuamente calor. Para o sentir basta tocar-lhe com a mão. Em cada instante, no interior do bloco, dá-se a fissão de milhões de núcleos.</div><div align="justify"><br />Pode-se acelerar artificialmente esta fissão submetendo os átomos a um fluxo de neutrões. Ao absorver um neutrão, o átomo de urânio torna-se muito mais vulnerável à fissão e cinde-se rapidamente, emitindo numerosos neutrões. Daí a possibilidade de uma reacção em cadeia.</div><div align="justify"><br />Um núcleo de urânio absorve um neutrão, cinde-se, emite neutrões, imediatamente absorvidos pelos átomos vizinhos, que se cindem por sua vez, etc.</div><div align="justify"><br />As energias libertadas por cada uma destas fissões somam-se e podem atingir proporções gigantescas. <em>Donde a ideia de uma bomba.</em> Um quilo de urânio liberta, assim, mais calor do que mil toneladas de dinamite. Quanto basta para devastar uma pequena cidade. Uma tonelada de urânio fará desaparecer do mapa a maior das cidades do planeta.</div><div align="justify"><br />Mas naquela época ninguém sabe se o projecto é realizável. As dificuldades técnicas parecem inultrapassáveis; a maior parte dos cientistas mantém-se céptica. Um projecto utópico, a remeter para as prateleiras do esquecimento, juntamente com o «movimento perpétuo» e a «máquina de viajar no tempo».</div><div align="justify"><br />«Um conto de dormir em pé», dizia Ernest Rutherford, um dos maiores físicos do nosso século.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128629"><span style="font-size:130%;"><strong>Numa banheira de um quarto de hotel</strong></span></a></div><div align="justify"><br />No seu livro <em>Os Grandes Momentos da Humanidade</em>, Stefan Zweig descreve certos acontecimentos históricos (os gansos do Capitólio, a escrita do Messias de Händel, etc.) que, mau-grado a sua curta duração e, por vezes, a sua aparência anódina, influenciaram profundamente os destinos da Humanidade.</div><div align="justify"><br />Gostaria de acrescentar um acontecimento à colecção de Zweig. Estamos em Londres em 1935. Um cientista judeu húngaro, recém-chegado de Budapeste, aluga um quarto num hotel e transforma imediatamente a casa de banho em laboratório. Na água da banheira mergulha pequenas fontes radioactivas, subtraídas à universidade onde ensinava e transportadas em segredo na bagagem. Chama-se Leo Szilard e encontra-se submetido a uma viva agitação.</div><div align="justify"><br />Acredita firmemente na possibilidade de <em>libertar a energia dos átomos</em> e espera executar rapidamente as manipulações requeridas para o conseguir.</div><div align="justify"><br />Não o impulsiona somente o entusiasmo por um projecto fantástico; sobre as implicações do eventual êxito da sua tarefa há um olhar lúcido. Szilard sabe da ameaça que pesaria sobre o destino da Humanidade caso conseguisse fabricar uma bomba atómica. «A Humanidade corre para a sua perda», repetiria ele mais tarde, à medida que as dificuldades se aplanavam.</div><div align="justify"><br />Mas ao mesmo tempo sente-se aterrorizado pela amplitude que o movimento nazi vem assumindo desde há alguns anos. Por causa da subida do anti-semitismo abandonara a sua cadeira na Universidade de Budapeste e fugira do continente. São-lhe evidentes as intenções guerreiras de Hitler, a barbárie que ameaça a Europa.</div><div align="justify"><br />Ei-lo, refugiado político sem laboratório, inclinado sobre a sua banheira de hotel, obcecado pela ideia de que é preciso, por <em>qualquer preço</em>, desenvolver a bomba e ganhar a corrida contra os físicos alemães ao serviço do nazismo.</div><div align="justify"><br />Em 1935 Leo Szilard suporta sozinho a carga de angústia que emana da bomba ainda nos limbos. A maior parte dos seus colegas não acredita nela.</div><div align="justify"><br />Mas a bomba não tardará a impor-se. A pouco e pouco, acabará por fascinar toda uma geração de físicos e engenheiros, a quem, como a Szilard, inspirará alguns sentimentos contraditórios: a excitação ante as forças a libertar, a consciência do risco mortal que ela importa, mas também a necessidade imperiosa, em face da conjuntura política, de acelerar, por todos os meios, o seu nascimento.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128630"><span style="font-size:130%;"><strong>Discípulos exemplares...</strong></span></a></div><div align="justify"><br />Em 1935, um rumor; em 1986, uma realidade terrível. Os historiadores que, após um eventual cataclismo nuclear, desejarem narrar as suas etapas preliminares, citarão Los Alamos como um dos lugares altos dessa preparação. Na logística do grande golpe contra a Humanidade, este laboratório terá assumido um papel-chave.</div><div align="justify"><br />Na película <em>The Day after Trinity</em> são entrevistados vários participantes, tanto sobre o seu papel como sobre os seus estados de alma ao longo de todos estes anos. Ao mesmo tempo emocionante e instrutivo, o filme propõe abundante matéria à nossa reflexão.</div><div align="justify"><br />O <em>Dr. Strangelove</em>, de Stanley Kubrick, divulgou a imagem do cientista atómico, paranóico genial, obcecado por engenhos cada vez mais destruidores. Se esta representação não é sempre destituída de fundamento (alguns quiseram ver nela o retrato de Edward Teller, outro refugiado húngaro, grandemente responsável pela bomba H), decerto não se aplica à maioria dos artesãos do «projecto Manhattan» (nome secreto da operação atómica de Los Alamos).</div><div align="justify"><br />Estudante na Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, no fim dos anos cinquenta, conheci, pessoalmente, vários dos responsáveis deste projecto. Todos eram ardentes pacifistas, activos oponentes ao maccartismo, esse anticomunismo primário que, na época, se comprazia em exercer sevícias a torto e a direito.</div><div align="justify"><br />Hans Bethe dirigiu a secção teórica do projecto Manhattan de 1943 a 1946. De origem judia alemã, fugira da Europa alguns anos antes. «É uma das mais belas ofertas da Alemanha nazi aos Estados Unidos», dizia-se dele. Já antes da guerra o classificavam entre os melhores físicos nucleares.</div><div align="justify"><br />Muito jovem, tinha resolvido um problema secular: o da fonte de energia do Sol. Em 1938, com alguns colaboradores, demonstrou que o coração das estrelas era palco de reacções nucleares, cuja energia era mais do que suficiente para explicar a luminosidade das estrelas. Este trabalho valeu-lhe o prémio Nobel em 1967.</div><div align="justify"><br />Estou ainda a vê-lo, alto, digno e sereno, percorrendo a largas passadas os corredores do Rockfeller Hall, edifício do departamento de física da universidade, rodeado por um cenáculo de jovens investigadores.</div><div align="justify"><br />Nas conferências semanais daquele departamento sentava-se no fundo da sala e prosseguia os seus trabalhos, aparentando não dar nenhuma atenção às discussões que se desencadeavam entre os assistentes. Todavia, quando a situação se obscurecia, ouvíamo-lo tossir gravemente. Seguia-se um longo silêncio; depois, em algumas frases, dissipavam-se as brumas, tudo se tornava luminoso. Creio que tínhamos por ele uma verdadeira veneração.</div><div align="justify"><br />A cada um dos estudantes do laboratório dava uma atenção amigável e exigente. Com regularidade, vinha até nós e, fingindo querer saber apenas as novidades, acabava por nos submeter a um interrogatório cerrado sobre o andamento dos nossos trabalhos. A sua passagem criava muita apreensão: «Fulano está com o mestre, vi-os pela janela. Cheira-me que as coisas não vão lá muito bem». Mas apreciávamos muito os seus conselhos, o seu olhar sobre os nossos trabalhos. Deixávamo-nos levar pelo seu vigor e rigor e aceitávamos, de boa mente, as suas normas de excelência.</div><div align="justify"><br />Consciente da responsabilidade do cientista, consagrou, depois de Los Alamos, uma parte importante da sua actividade a opor-se à escalada nuclear, argumentando que só o diálogo entre as partes adversas, só a união ao nível político e humano, podiam afastar a ameaça de guerra. Membro do conselho científico do presidente dos Estados Unidos, a ele ficámos a dever a interdição dos ensaios nucleares na atmosfera, decidida em 1963.</div><div align="justify"><br />Nunca cheguei a saber exactamente qual o papel que Robert Wilson desempenhou em Los Alamos, mas sem dúvida que se ocupou das experiências. Durante os meus estudos em Cornell, partilhava ele com Hans Bethe a direcção do Newman Nuclear Laboratory. Tanto quanto Bethe se nos impunha pela gravidade da sua atitude, assim Wilson era directo e jovial. Durante as suas aulas não perdia ocasião de implicar com os físicos teóricos, afogados em equações. Com ele tudo era simples, claro e eficaz.</div><div align="justify"><br />Wilson é o homem dos aceleradores de partículas. Depois de ter construído o betatrão de Cornell, dirigiu no Fermi Laboratory, de Chicago, um dos maiores aceleradores actuais, comparável ao CERN, de Genebra.</div><div align="justify"><br />Apaixonado pela arquitectura, tinha particular afeição pelas construções do período gótico, de que falava muitas vezes, com competência e calor. Para ele os aceleradores gigantes são, de certo modo, as catedrais dos nossos dias. Wilson tem pelo seu trabalho o fervor de um artesão medieval.</div><div align="justify"><br />Quero apresentar-vos agora Philip Morrison, sem dúvida o meu preferido. Impossível perder um curso, uma conferência pública de Morrison. Era o grande espectáculo. Ouço ainda o seu passo claudicante para o estrado, revejo os seus gestos um pouco patéticos para se instalar e o seu belo sorriso inteligente, um nadinha malicioso.</div><div align="justify"><br />A exposição arrancava a todo o vapor, as ideias encadeavam-se numa torrente inspirada, pontuada de truculência e de entusiasmo irresistíveis. A mistura, sabiamente doseada, de rigor lógico, de arrebatamentos líricos e de piadas insolentes contra as «instituições», mergulhava-nos num estado de êxtase, de que se emergia a custo. Queríamos sempre mais... Um dos seus números favoritos começava por uma iniciação às maravilhas das técnicas de telecomunicações, para terminar por uma sátira contundente à inépcia das mensagens veiculadas pelas ondas.</div><div align="justify"><br />Posto na lista negra das autoridades americanas por causa das suas simpatias de esquerda, foi-lhe cortado, durante os anos cinquenta, todo o acesso aos documentos secretos da defesa nacional. Nessa época, o seu telefone estava ligado a um posto de escuta e o seu correio era sistematicamente aberto.</div><div align="justify"><br />Facecioso, criou um método de detecção das explosões nucleares (pelo seu reflexo sobre a face escura da Lua), de que enviou uma memória a Washington. Aterrorizados, os funcionários lembram-lhe as interdições de que é objecto. «Se não o querem, a quem me sugerem que o envie?».</div><div align="justify"><br />Havia ainda Richard Feynman, preocupado com a filosofia e os problemas religiosos. Almoçava muitas vezes com os estudantes. Sentíamo-nos fascinados por esta personagem genial, que fazia física, como jogava bongo.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128631"><span style="font-size:130%;"><strong>O caminho da bomba está pavimentado de boas intenções</strong></span></a></div><div align="justify"><br />Não conheci Robert Oppenheimer. Segundo a opinião geral, era um ser de excepção. Além do seu perfeito domínio da física, possuía uma vasta cultura literária e filosófica. Sentia-se tão à vontade no domínio das mitologias hindus como no da literatura francesa medieval. Antes da guerra não dava muita importância aos acontecimentos da política internacional.</div><div align="justify"><br />Mas ninguém, sobretudo um judeu, pode desinteressar-se da política no início dos anos quarenta. Em todas as frentes Hitler triunfa. A sua ambição é sem limites, os exércitos alemães invadem a Europa, subjugando populações inteiras. Os campos de extermínio multiplicam-se. A nova ordem que se vai impondo ameaça a própria civilização, é o retorno à barbárie e, para os judeus, a morte a curto prazo.</div><div align="justify"><br />Por acréscimo, certos rumores deixam entender que os nazis se interessam pela bomba atómica... Sabemos agora que os Alemães tentaram, efectivamente, desenvolver o armamento nuclear. Mas não foram muito longe. Para Hitler, o cientista era mais útil na frente de batalha do que no laboratório. Felizmente! Uma bomba atómica alemã teria mudado o curso da história.</div><div align="justify"><br />Nessa época opera-se uma aliança simultaneamente espantosa e significativa. O exército americano confia o projecto nuclear ao general Groves, um militar de carreira, cabeçudo, da extrema-direita, alérgico aos intelectuais e liberais.</div><div align="justify"><br />Para seu colaborador científico principal chama Oppenheimer. Estas duas personagens, na aparência, o mais incompatíveis possível, vão trabalhar em estreita colaboração durante anos.</div><div align="justify"><br />As vitórias alemãs, os campos de extermínio de judeus, estimulam e dinamizam a equipa de Los Alamos. No plano moral, a situação é límpida: não é hora para hesitações e escrúpulos. <em>É preciso</em> fabricar a bomba. <em>E depressa</em>. Creio que, se então tivesse a idade necessária e me tivessem convidado, ter-me-ia lançado com entusiasmo nesta aventura, com o sentimento exaltante de participar na salvação da civilização.</div><div align="justify"><br />Em 8 de Maio de 1945 os exércitos alemães capitulam. É a vitória das forças aliadas na Europa. No Pacífico, os Japoneses resistem ainda, mas, com toda a evidência, a guerra está perdida também para eles. A bomba atómica não está ainda pronta.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128632"><strong><span style="font-size:130%;">Outras intenções menos boas...</span></strong></a></div><div align="justify"><br />Como se reage em Los Alamos? Mais tarde Bob Wilson dirá: «Nesse dia devia ter devolvido o meu distintivo, fechado o laboratório para nunca mais lá pôr os pés. Por que não o fiz? Nunca consegui compreendê-lo. É, em toda a minha vida, o que mais lastimo».</div><div align="justify"><br />A hipótese de uma interrupção dos trabalhos é timidamente evocada por numerosos cientistas, mas sobretudo por descargo de consciência. Ninguém, em verdade, acredita nisso. O clima psicológico não é propício.</div><div align="justify"><br />Sem dúvida, os argumentos a favor da bomba existem ainda, mas de uma forma singularmente enfraquecida. Já não se trata de salvar a civilização, mas apenas de poupar as despesas da invasão do território japonês, poupando, assim, alguns <em>milhões</em> de soldados e civis. Mais vale sacrificar uma <em>centena de milhar</em> de japoneses...</div><div align="justify"><br />É bom em termos contabilísticos, mas de uma contabilidade a curto prazo, porque, a longo prazo, seria necessário ter em conta as <em>centenas de milhões</em> de mortes que uma futura guerra nuclear poderia ocasionar. «Cá estou, cá fico», diz a bomba.</div><div align="justify"><br />Isto conduz-nos ao ponto crucial da nossa discussão: será a bomba inevitável? Suponhamos que, se se tivesse nesse momento decidido fechar a loja, queimar os documentos, destruir as instalações, porque os Russos já se interessavam pela bomba, cedo ou tarde os Americanos seriam forçados a retomar os trabalhos.</div><div align="justify"><br />Como um paquete navegando a toda a velocidade, o projecto, dirá mais tarde Oppenheimer, era <em>irresistivelmente empurrado</em> pelo seu próprio impulso. «Quando se nos depara a possibilidade de cometer a proeza técnica, baixamos a cabeça, e atiramo-nos para a frente, sem perguntar o que nos convirá fazer, uma vez concluída a tarefa. Assim aconteceu com a bomba atómica». Senhora de todos os argumentos, <em>a bomba atómica não sofreu nunca qualquer atraso.</em></div><div align="justify"><br />Os trabalhos prosseguiram sem interrupção e a bomba de ensaio explodiu no Novo México no Verão de 1945.</div><div align="justify"><br />Desde esse momento pôs-se a questão do futuro da bomba. Será preciso usá-la? Em que condições? Uns propõem que se convidem os generais inimigos para um novo ensaio no mesmo local, com o fito de os impressionar. Outros pensam que é necessário fazer explodir a bomba sobre território japonês, mas numa região desabitada.</div><div align="justify"><br />«Ora bolas para os escrúpulos», dizem os falcões de então, «devastemos com firmeza cidades não bombardeadas até aqui, para melhor podermos avaliar a extensão das destruições». É este ponto de vista que triunfa. Depois de Hiroxima e Nagasáqui, os Japoneses pedem a paz.</div><div align="justify"><br />Como terá Hans Bethe vivido estes acontecimentos? «À partida estávamos muito inquietos. O engenho funcionaria? Quando recebemos as notícias do êxito, ficámos, primeiro, descansados, para depois mergulharmos no horror. Que foi que fizemos? Que foi que fizemos?» Desde esse instante data a sua decisão, nunca posta em dúvida, de se opor ao prosseguimento dos ensaios nucleares.</div><div align="justify"><br />«Em Los Alamos não reflectíamos», dirá ele mais tarde, «o trabalho absorvia-nos inteiramente. Era preciso terminá-lo. Penso que, uma vez iniciado, o movimento continuou à custa do seu próprio embalo».</div><div align="justify"><br />Philip Morrison procedeu à última inspecção da bomba na ilha de Tinian, justamente antes da partida para Hiroxima. Na universidade falava livremente, retomando o argumento oficial dos milhões de vítimas que teria custado o desembarque no Japão. Mas sentíamo-lo preocupado, muito mais do que desejava mostrar.</div><div align="justify"><br />Quanto a Bob Wilson, a sua mulher conta que no dia de Hiroxima regressou a casa aos vómitos. «E ainda vomito todas as vezes que penso nisso», acrescenta ele.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128633"><span style="font-size:130%;"><strong>E ilusões: as duas faces de Prometeu</strong></span></a></div><div align="justify"><br />Sobre o estado de alma dos cientistas de Los Alamos, Oppenheimer dirá mais tarde, com grande lucidez – e aborrecimento de muitos –, que os físicos conheceram o pecado.</div><div align="justify"><br />Libertar a energia das estrelas é, como fez Prometeu, arrancar o fogo do céu. É a Natureza controlada, domesticada, dominada, como nunca antes na história dos homens. O físico torna-se demiurgo.</div><div align="justify"><br />É fácil imaginar a exaltação no momento da primeira explosão. Oppenheimer conta como, nesse mesmo instante, lhe vêm à memória as palavras de Krishna no <em>Mahabharata</em> (um dos livros sagrados da tradição hindu). São versos de ressonância profética:</div><div align="justify"><br /><br />Os raios de um milhão de sóis</div><div align="justify">Resplandecendo num só golpe no céu,<br />Assim será o esplendor do Todo-Poderoso.<br />Tornei-me a morte,<br />O destruidor do universo.<br /><br />No seu livro <em>Disturbing the Universe</em>, o físico Freeman Dyson fala, com justeza, do «pacto faustiano». Tal como Fausto aceita o pacto de Mefistófeles, os físicos aliam-se ao exército para ascenderem a um nível superior da ciência e do poderio. Mas, enquanto Fausto suporta sozinho as consequências do seu gesto, o peso das experiências de Los Alamos cai sobre a Humanidade inteira. </div><div align="justify"><br />O mito de Prometeu tem duas faces. A primeira remete-nos para Fausto: a embriaguez do saber e do poder. A segunda é messiânica: Prometeu, <em>benfeitor da Humanidade.</em></div><div align="justify"><br />O mito da «força benevolente» é uma imagem intemporal, um desses arquétipos profundamente gravados na psique humana e que vem regularmente ao de cima na literatura mundial. É Gilgamesh entre os Assírios, Sansão para os Judeus, Hércules na Grécia antiga e, mais próximo de nós, o Super-Homem, Tarzan ou Zorro. O poder que vem em socorro das boas causas, da viúva e do órfão.</div><div align="justify"><br />No mesmo espírito, Oppenheimer evocará outra passagem do <em>Mahabharata</em>, um acontecimento da vida de Xiva, o criador dos mundos, mas também o destruidor universal, quando os tempos chegam ao fim. Xiva tenta trazer à razão um reizinho despótico e quezilento. Como os seus conselhos de nada servem para lhe instilar um receio salutar, Xiva metamorfoseia-se e enverga os terríveis trajes de destruidor dos mundos. «Cada um de nós em Los Alamos foi influenciado, nesse momento ou noutro qualquer, por uma imagem análoga», acrescenta Oppenheimer.</div><div align="justify"><br />«Esperamos que o poder quase ilimitado que vai nascer nos nossos laboratórios sirva para paralisar as más intenções e para impor aos humanos uma conduta razoável. Oferecemos à Humanidade uma arma que, nas mãos das Nações Unidas, se tornará uma garantia de paz». Estas palavras, segundo Oppenheimer, sustentavam os investigadores nas horas de dúvidas e escrúpulos. «Quem ama castiga», diz o provérbio, mas é preciso um chicote. </div><div align="justify"><br />Ainda na mesma via, o financeiro americano Bernard Baruch apresentará, alguns anos mais tarde, um projecto de acordo soviético-americano no qual se pede que as Nações Unidas criem um arsenal atómico para castigar toda a nação que, tendo reconhecido a nova agência, ousasse infringir as suas regras. O projecto foi rejeitado por unanimidade...</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128634"><span style="font-size:130%;"><strong>A bomba provincializa-se</strong></span></a></div><div align="justify"><br />Quem quer que duvide do poder dos mitos, tem de considerar o espectáculo extraordinário ao qual assistimos aqui: uma imagética mítica que durante anos alimentou o fervor e apaziguou a consciência desta elite da inteligência mundial.</div><div align="justify"><br />Ilusão... A sucessão de ocorrências ilustrou abundantemente a vaidade desta esperança. A «força» nunca foi «benevolente». A bomba é <em>uma arma como as outras</em>, se bem que infinitamente mais poderosa.</div><div align="justify"><br />Mais tarde, a linguagem mítica retorna, mas o mito provincializa-se. Truman espera que a América guarde, para sempre, o exclusivismo deste «depósito sagrado» que lhe foi confiado quase por direito divino. Em 1948 pergunta a Oppenheimer: «Quando serão os Russos capazes de fabricar uma bomba atómica?». «Não faço a menor ideia». «Pois eu sei!» «Quando?». «Nunca!», responde Truman, seguro dos seus apoios celestes. Três anos mais tarde um engenho nuclear explodia na União Soviética...</div><div align="justify"><br />Por igual religiosamente inspirado, o senador Brian McMahon afirma, depois da capitulação, que o bombardeamento do Japão é o maior acontecimento da história do mundo desde o nascimento de Jesus Cristo. E acrescenta: «Os Estados Unidos devem manter-se à cabeça na corrida aos armamentos, porque, se por infelicidade a URSS os apanha, este poderio ilimitado nas mãos das <em>forças do mal</em> só poderá conduzir à destruição total».</div><div align="justify"><br />Depois da guerra santa contra o nazismo, a guerra santa contra o comunismo. A bomba, decididamente, tem muita sorte, todos os trunfos no seu jogo. Num ritmo infernal, desenvolve-se, aperfeiçoa-se, arranja descendência. Os arsenais enchem-se. E quem faz ouvir a voz da razão?</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128635"><strong><span style="font-size:130%;">Os murmúrios inaudíveis da razão</span></strong></a></div><div align="justify"></div><div align="justify">A actividade de Niels Bohr, o pai da física quântica, para travar o processo infernal é, sem dúvida, uma das passagens mais emocionantes desta história sombria. «É da máxima urgência», dizia ele antes mesmo de a bomba estar pronta, «pôr Estaline ao corrente. Na ausência deste gesto de confiança e boa vontade, será impossível mais tarde estabelecer um controle internacional da energia nuclear. E teremos direito», predizia ele correctamente, «à escalada do terror».</div><div align="justify"><br />Durante vários meses Bohr tentou, em vão, avistar-se com os dirigentes da época. Finalmente, Churchill concedeu-lhe uma rápida entrevista... na presença de outro convidado. Escutou distraidamente a petição de Bohr, depois voltou-se para o outro visitante para falar de um assunto completamente diferente. «Posso escrever-lhe?», perguntou Bohr, desesperado. «Sim, na condição de não me falar mais de política». Mais tarde Churchill dirá: «Nunca gostei desse sujeito cabeludo, que queria revelar os nossos segredos aos Russos. Era melhor tê-lo debaixo de olho».</div><div align="justify"><br />Com Roosevelt, apesar de mais afável, o resultado será o mesmo. A bomba atómica para os Aliados é uma arma de poder, e não uma força benevolente. E isto desde 1943, muito tempo antes da sua concretização. </div><div align="justify"><br />A pedido de Leo Szilard, Albert Einstein contactou duas vezes com o governo americano. Quando em 1939 quis interessar Roosevelt pelo projecto atómico, foi recebido favoravelmente. Quando, a seguir à vitória sobre a Alemanha, os dois físicos quiseram opor-se ao prosseguimento do projecto Manhattan, a Casa Branca fez ouvidos moucos.</div><div align="justify"><br />Um outro físico inglês, o Dr. Blackett, vencedor do prémio Nobel, apresentou ao primeiro-ministro Attlee, sucessor de Churchill, uma memória contra a continuação do armamento nuclear da Inglaterra. Foi acolhido com rudeza e brutalidade. «O autor, um cientista distinto, fala de problemas políticos e militares de que nada sabe». Para assinalar o facto, Blackett foi excluído da comissão de defesa nacional.</div><div align="justify"><br />Contrariamente ao mundo científico, o mundo político parece ter ficado impermeável ao mito da «força benevolente».</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128636"><strong><span style="font-size:130%;">Os filtros</span></strong></a></div><div align="justify"><br />Inclinado sobre a banheira do hotel em Londres, em 1935, Leo Szilard é, de certa maneira, o anunciador da deusa bomba. O general Graves e Robert Oppenheimer, enfeitiçados por filtros bem diferentes, mas igualmente eficazes, são os seus <em>grandes sacerdotes</em>.</div><div align="justify"><br />Quando Groves escuta «o apelo da bomba», todo ele se desunha a construir depósitos de artilharia. Como verdadeiro soldado, só sonha com a glória militar. «O ministro da guerra designou‑vos para uma missão da mais alta importância. Se a desempenhardes correctamente, a guerra está ganha».</div><div align="justify"><br />Nomeado general-de-brigada, Groves passa imediatamente à acção. Organiza o transporte das suas «tropas» – os melhores cientistas da época, entre os quais alguns prémios Nobel – para um canto perdido do Novo México. Quer que eles vistam o uniforme do exército americano, façam a saudação militar e fiquem sujeitos ao segredo mais completo. Para sua grande decepção, as três exigências são-lhe recusadas.</div><div align="justify"><br />Groves espumará de raiva ao saber que alguns cientistas manifestaram oposição ao lançamento da bomba sobre cidades japonesas. Numa memória intitulada «Tratamento reservado aos investigadores científicos indesejáveis», escreveu que «o projecto Manhattan foi prejudicado logo à partida pela presença de certos homens de ciência de uma discrição aproximativa e de uma lealdade duvidosa».</div><div align="justify"><br />Ao aproximar-se a vitória na Europa, fará circular uma nota de acordo com a sua devoção à causa: «Aconselha-se a que se encarem desde já programas educativos para o pessoal, os quais sublinharão a importância de manter os trabalhos e a necessidade de acelerar o seu ritmo a seguir ao dia da vitória, tomando o Japão como objectivo final. O pessoal receberá instruções no sentido de evitar perdas de tempo a celebrar a vitória sobre a Alemanha com festejos inconsiderados».</div><div align="justify"><br />Mas a bomba não tem pátria, está acima das nações, só deve fidelidade a si mesma. O erro de Groves foi pensar e propagar a ideia de que os Russos seriam incapazes de fabricar bombas atómicas. Embriagado pelo triunfo, convencido da superioridade absoluta da América, Groves redigirá um relatório técnico sobre o projecto Manhattan, uma espécie de «fanfarronada US», distribuído em numerosos exemplares e que os engenheiros soviéticos muito apreciaram e exploraram em seu proveito.</div><div align="justify"><br />Não se lhe perdoou a proeza. O seu zelo intempestivo tornou-o indesejável e foi substituído por homens mais modestos, discretos e competentes. A sua carreira terminou, a bomba vai continuar sem ele.</div><div align="justify"><br />Oppenheimer é uma personagem de tragédia, o seu fim será muito mais dramático. Consagrando a maior parte da sua carreira ao desenvolvimento do armamento nuclear, será «queimado» logo que manifesta algumas reservas. A propósito, rememoro as palavras de uma canção de Edith Piaf: «A vida dá-vos todas as hipóteses, para as anular em seguida».</div><div align="justify"><br />Desde a infância que Robert Oppenheimer é um «pequeno génio». Aos 12 anos apresenta uma comunicação à Academia de Ciências de Nova Iorque sobre os seus trabalhos em geologia.</div><div align="justify"><br />«Nunca encontrei ninguém tão rápido a captar um raciocínio», dirá mais tarde Hans Bethe, que conhecia muito bem a matéria. «Em alguns segundos ele refaz interiormente o trajecto que nós levámos horas a percorrer».</div><div align="justify"><br />Este espírito subtil, familiarizado com as altas esferas da abstracção, logrou levar a bom termo o projecto eminentemente concreto de dirigir um laboratório com várias centenas de pessoas e de fabricar, num tempo recorde, um engenho atómico. Isto ilustra bem os dons extraordinários com que a Natureza o dotara. Acrescentemos, para maior exactidão, a sua grande cultura literária e artística, bem como os talentos culinários, fortemente apreciados pelos colegas.</div><div align="justify"><br />Oppenheimer é a pessoa designada para enfrentar o desafio faustiano da conjuntura política: dar à luz a bomba atómica. Ganhará a parada e será elevado ao vértice da glória. Depois da guerra residirá em Washington, onde as potências mundiais dão às suas palavras a maior consideração. Enquanto milita a favor da bomba, a sua vida roça pelo sonho e as honras chovem sobre ele.</div><div align="justify"><br />O seu destino inflecte-se quando começa a manifestar reticências, objecções de consciência, dúvidas morais. Militares e cientistas não lhe perdoarão o ter penetrado nas suas motivações profundas. Se, para os soldados, a bomba utiliza o filtro da glória militar, é o filtro do poder que é servido aos cientistas, juntamente com o das boas intenções.</div><div align="justify"><br />Quando Oppenheimer insiste em obter isótopos para aplicação médica, é considerado suspeito de pretender leiloar segredos atómicos. Mas sobretudo será censurada a sua oposição à prioridade concedida à estratégia dos bombardeamentos nucleares maciços. Contra ele será montado um processo odioso; o seu passado será vasculhado. A queda será brutal, com a exclusão da comissão de defesa e a proibição de acesso a todo o material científico correspondente. Nunca mais recuperará. As últimas imagens do filme <em>The Day after Trinity</em> mostram-no abatido, precocemente envelhecido, uma sombra de si mesmo.</div><div align="justify"><br />Apesar da sua oposição ao prosseguimento da escalada nuclear, Hans Bethe não sofrerá uma sorte tão cruel. Contudo, passa a ser objecto das críticas acerbas por parte dos jovens lobos da corrida aos armamentos. «O senhor estava cheio de entusiasmo no momento em que se fabricava a bomba atómica, apesar da oposição dos seus antecessores, que a julgavam irrealizável. Portanto, agora acabe com esses sermões e <em>deixe-nos aproveitar as nossas possibilidades</em>». Este discurso dá-nos a medida exacta do nível de reflexão ética e de responsabilidade moral dos novos trabalhadores do armamento nuclear. Quem falará mais eloquentemente da potência dos filtros da bomba?</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128637"><strong><span style="font-size:130%;">A bomba prolifera</span></strong></a></div><div align="justify"><br />A bomba americana nasceu num transporte eufórico de zelo e entusiasmo. A bomba soviética apareceu no terror, sob a vigilância das metralhadoras.</div><div align="justify"><br />Não foi sem razão que Truman duvidou da possibilidade deste engenho nuclear russo. Os Alemães tinham devastado o país, que se transformara num imenso campo de ruínas. Para levarem até ao fim o seu projecto, os Estados Unidos tiveram de usar a fundo a sua formidável infra-estrutura industrial e técnica. Comparando a situação económica dos dois países nessa época, é caso para efectivamente perguntar como conseguiu Estaline que o seu projecto triunfasse.</div><div align="justify"><br />Sabemo-lo hoje. Apesar do estado exangue do território, a bomba, fiel a si própria, ganha aos pontos à reestruturação social. Utiliza-se a mão-de-obra gratuita dos goulags. Em condições por vezes medonhas, centenas de milhares de operários trabalham dia e noite sob a ameaça das espingardas.</div><div align="justify"><br />As instalações são montadas a toda a pressa, sem respeito pelas condições de segurança. Um engenheiro alemão falará mais tarde de «condições criminosas». Aos riscos de incêndio e de inundações junta-se a certeza das irradiações. </div><div align="justify"><br />Em 1947, a explosão de um depósito de dinamite provoca 70 mortos e 170 feridos. Nada afrouxa a cadência de trabalho. Mesmo os físicos são submetidos ao terror. «Que teria acontecido se não tivéssemos conseguido?», escreverá um deles à família. «Teríamos sido simplesmente fuzilados». O destino do físico soviético Sakharov tem analogias com o de Oppenheimer. Pioneiro da bomba de hidrogénio, menino bonito das autoridades militares durante vários anos, as perseguições de que é hoje objecto relacionam-se com a sua oposição às explosões nucleares atmosféricas. Kruchtchev nunca lhe perdoou.</div><div align="justify"><br />E em França? Aproveitando as fraquezas da IV República e as mudanças frequentes de governo, a bomba francesa será obra de um pequeno número de tecnocratas, sem licença oficial do parlamento e, sobretudo, na ausência completa de discussões democráticas. Quando explode, em 1960, contentar-se-ão em a... homologar. Sem vergonha, o seu «desenvolvimento» pesa sobre a nação, deixando recordações pungentes. A última, em data, chama-se... <em>Greenpeace</em>.</div><div align="justify"><br />Em Inglaterra, Churchill, conhecido pelo seu temperamento autoritário, chega ao poder em 1951 e nunca conseguirá compreender como, sob o governo socialista precedente, puderam os engenheiros ingleses gastar um milhão de libras para a bomba, sem que alguma vez o parlamento tivesse ouvido falar dela.</div><div align="justify"><br />A maldição é que a bomba tem todos os trunfos no seu jogo: Bob Wilson mencionava «o impulso irresistível do poderio tecnológico associado à máquina burocrática» quando procurava compreender por que é que a capitulação da Alemanha nazi não provocara a interrupção dos trabalhos.</div><div align="justify"><br />Acrescentemos o pavor paranóico e a histeria causados pela bomba russa, que, na opinião dos especialistas, «nunca devia ter causado um tal pânico». Os falcões passam por cima de tudo e aproveitam todas as circunstâncias sem se preocuparem com as responsabilidades políticas.</div><div align="justify"><br />«Ao longo da história atómica as decisões são sempre apresentadas ao público como i<em>nelutáveis</em>. Contudo, nunca as iniciativas pessoais, os temores histéricos e os entusiasmos passageiros terão, neste ponto, ditado o curso da história mundial.», escreveram Pringle e Spiegelman... em <em>Les barons de l’atome</em>, um livro cuja leitura nunca me cansarei de recomendar.</div><div align="justify"><br />Num autor chamado Peter Sloterdisk encontrei este belo texto, completamente em harmonia com as páginas precedentes: «Perfeita, soberana, indiferente, a bomba atómica é o verdadeiro buda do Ocidente. Imóvel, repousa no seu silo: actualidade pura e pura potencialidade. É a encarnação das energias cósmicas e a participação dos homens nessas energias; é a obra-prima da espécie humana e a exterminadora desta espécie; é o triunfo da racionalidade técnica e a dissolução na paranóia...</div><div align="justify"><br />Não é mais viciosa do que a realidade, nem mais destruidora do que nós. Ela é, muito justamente, o reflexo do que nós somos e a expressão materializada dos nossos modos de agir.</div><div align="justify"><br />Mais do que considerações estratégicas, é um profundo exame que temos de fazer em relação à bomba. Ela não requer nem luta nem resignação, mas a <em>experiência</em> de nós próprios. Nós somos <em>ela</em>».</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128638"><strong><span style="font-size:130%;">A proliferação em 1986</span></strong></a></div><div align="justify"><br />Depois dos Estados Unidos, a União Soviética, a França e a Inglaterra, a China e a Índia fabricaram e fizeram explodir engenhos termonucleares. Cinco outros países encontram-se em excelente posição nesta corrida: a Argentina, o Brasil, Israel, o Paquistão e a União Sul-‑Africana. Embora não possuam ainda um arsenal atómico completo, estas nações deram já grandes passos nesse sentido.</div><div align="justify"><br />Há alguns anos foi assinado por vários governos um tratado de não proliferação, o qual, por razões diversas, tem sido largamente contestado. Duas nações do clube nuclear, a França e a China, recusaram-se a assiná-lo, no que foram compreensivelmente imitadas pela maior parte dos países desejosos de obter a bomba.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128639"><strong><span style="font-size:130%;">Os antepassados da bomba</span></strong></a></div><div align="justify"><br />Corremos o risco de esquecer, ao mitificar a bomba, ao ver nela a encarnação de um ser diabólico, que ela tem antepassados notórios. É a última de uma série de armas mortíferas criadas pela imaginação fértil dos homens durante toda a sua história.</div><div align="justify"><br />Desde a mais alta antiguidade, todas as invenções, todas as energias novas, são <em>sistematicamente</em> usadas para fins guerreiros. Dardos, flechas, fogos, cavalos, juntam-se ao arsenal dos exércitos em conflito. Lucrécio, o nosso «correspondente romano», dá-nos disso um testemunho eloquente: «Aprendeu-se a domar os cavalos, a dirigi-los com um freio e a montá-‑los. Em seguida, tentou-se combater num carro puxado por dois cavalos, mais tarde, por quatro. Depois vieram os carros armados de foices cortantes, em seguida os Cartagineses domesticaram elefantes e treinaram-nos para a guerra.</div><div align="justify"><br />Assim, a <em>cruel discórdia</em> inventou armas cada vez mais mortíferas e aumentou em cada dia os horrores da guerra».</div><div align="justify"><br />Escrito há mais de dois mil anos, este texto é para nós rico de ensinamentos. A última frase podia ter sido escrita ontem mesmo. Apesar do acréscimo prodigioso de conhecimentos, apesar dos progressos tecnológicos, a alma humana mantém-se resolutamente fiel às suas tradições. E esse é que é o problema.</div><div align="justify"><br />Os elefantes de Aníbal ameaçavam somente as legiões romanas. A pólvora de canhão, a dinamite, aumentam consideravelmente os destroços. Com a energia nuclear, a «cruel discórdia» pode pensar a sério na eliminação da espécie humana.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128640"><strong><span style="font-size:130%;">Um erro da natureza?</span></strong></a></div><div align="justify"><br />Mal adaptado, porque com excessivas garantias, nefasto ao equilíbrio do planeta, será o ser humano, em definitivo, um erro da Natureza?</div><div align="justify"><br />Avaliam-se em mais de um milhão as espécies vegetais e animais que vivem actualmente na Terra. O total de espécies aparecidas no decurso da evolução biológica atingirá os dez milhões. No entanto, nove em cada dez desapareceram.</div><div align="justify"><br /><em>Nenhuma espécie é sagrada.</em> Cada uma surge do jogo da Natureza, do acaso das mutações biológicas. Para durar precisa de arranjar um nicho, estabelecer um comportamento de trocas, receber e dar, inserir-se num ecossistema. Caso contrário, a eliminação é inexorável.</div><div align="justify"><br />Há sessenta e cinco milhões de anos, os dinossauros, os fetos gigantes, os amonites, desaparecem bruscamente da superfície terrestre. Sobre a causa desta catástrofe não dispomos de certezas. Pode ter sido a chegada súbita e importante de materiais extraterrestres (meteorito gigante ou nuvem interestelar). Segundo toda a probabilidade, estes seres não foram <em>responsáveis</em> pelo seu desaparecimento. A Natureza não lhes pediu a opinião. Mas o ser humano, se chegar a sua vez de desaparecer, não poderá senão culpar-se a si próprio. Nada nos ameaça além do que nós <em>provocamos</em>.</div><div align="justify"><br />A destruição nuclear da Humanidade poderia arrastar a eliminação de uma fracção importante – mesmo a totalidade – das espécies animais e vegetais. Se o arsenal não é ainda suficiente para causar esta hecatombe, não demorará muito a sê-lo. De novo temos de saudar a eficácia da inteligência humana. Importa aqui reconhecer o papel pouco invejável desempenhado pela nossa cultura ocidental. Se o grau de civilização de um grupo humano se mede pela harmonia das suas relações com o meio ambiente, a nossa quota é a mais baixa. Tomo por testemunho estas palavras desgostosas de um velho índio do meu país: «Os brancos riem-se da terra, do gamo ou do urso. Quando nós, índios, os caçamos, comemos toda a carne; quando procuramos raízes, fazemos pequenos buracos; quando queimamos a erva, por causa dos gafanhotos, não arruinamos tudo. Sacudimos as glandes e as pinhas das árvores. Só utilizamos a madeira morta.<br />Mas o homem branco revira o solo, abate as árvores, destrói tudo. A árvore diz: «Pára, estou ferida, não me faças mal». Mas ele abate-a e corta-a em pranchas. O espírito da terra odeia-o. Ele arranca as árvores e abala-as até às raízes... Ele estoira os rochedos e deixa-os em detritos sobre o solo. A rocha diz: «Pára; tu fazes-me mal». Mas o homem branco não lhe dá atenção. Como poderia o espírito da terra amar o homem branco? Por toda a parte onde toca deixa uma chaga».</div><div align="justify"><br />No nosso planeta habita um grande número de culturas diferentes, cada uma das quais desenvolveu as suas próprias estratégias de subsistência, o seu modo de vida adaptado ao enquadramento natural. A pesca dos Esquimós difere da de Benin. A agricultura maciça das pradarias canadianas não se assemelha à jardinagem familiar dos camponeses da Índia. Tal como as técnicas de vida, as relações do homem com a Natureza variam largamente de um lugar para outro. Como os índios da América, como muitos hindus, numerosas sociedades tradicionais têm pela Natureza um respeito profundo, com vislumbres de animismo.</div><div align="justify"><br />A ciência e a tecnologia do poder nasceram no nosso mundo ocidental, precisamente onde a relação mística com a Natureza foi desde há mais tempo posta em causa. E, sem dúvida, isso não aconteceu por acaso. Reencontramos aqui a imagem de Prometeu arrancando o fogo do céu: o «pecado» que, segundo Oppenheimer, os físicos conheceram em Los Alamos.</div><div align="justify"><br />Se há uma relação entre a rejeição da piedade ancestral e a eclosão da ciência, em que sentido se desenvolve ela? Da impiedade à ciência ou da ciência à impiedade? Com toda a verosimilhança, alternada ou simultaneamente, nos dois sentidos.</div><div align="justify"><br />O importante para nós é o <em>facto histórico</em> do surgimento da cultura tecnológica ocidental, cuja influência hegemónica se propaga e impõe a todo o planeta.</div><div align="justify"><br />Os imperativos industriais e comerciais, os meios de comunicação e transporte, interditam o isolamento do passado. No século XIX os Japoneses foram forçados a abrir as portas ao Ocidente. As últimas tribos da Amazónia extinguem-se em <em>Tristes Trópicos</em>, de Lévi-Strauss.</div><div align="justify"><br />Será inevitável a inteligência e a curiosidade conduzirem à eclosão de uma sociedade tecnológica, apoiada no domínio das energias? Esta interrogação, muitas vezes formulada, parece-me inadequada.</div><div align="justify"><br />Imaginemos um planeta «lambda» onde, como na nossa Terra, uma multidão de culturas diferentes desenvolve em separado as suas relações com a Natureza. Mesmo que a quase totalidade destes grupos mostre apenas um interesse moderado pela ciência e pela tecnologia, basta que esta paixão apareça algures para se impor a todos. A tecnologia é invasora, arrasta a sua própria expansão territorial. </div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128641"><strong><span style="font-size:130%;">A natureza do escorpião</span></strong></a></div><div align="justify"><br />Na margem arenosa de um grande rio africano um leão dorme. É de tarde, faz calor. Não corre a menor aragem.</div><div align="justify"><br />Um escorpião aproxima-se: «Levanta-te. Tenho necessidade da tua ajuda», diz ele, dando uma cotovelada ao leão, «preciso de passar para o outro lado do rio. Aqui não há mais ninguém. Põe-me sobre as tuas costas e leva-me a nado».</div><div align="justify"><br />Surpresa do leão: «Eu, nadar com um escorpião no dorso? Tu vais-me picar e eu morro...». O escorpião defende habilmente a sua causa: «Não sejas estúpido. Se eu te pico, afogamo-nos os dois. Nada te acontecerá». Obstinado, o leão procura argumentos. Mas a agilidade intelectual do escorpião, aliada à lógica insuperável da sua deprecada, acaba por vencer. «Sobe», diz o leão.</div><div align="justify"><br />A passo lento, o leão, desconfiado, avança na água tépida. Começa a nadar. A meio do rio, uma dor viva paralisa-o. O duo é levado pela corrente.</div><div align="justify"><br />«Olha bem o que fizeste», diz o leão, «vamos perecer os dois». «Eu sei», responde o escorpião, «lamento muito, mas ninguém escapa à sua natureza».</div><div align="justify"><br />Os acontecimentos dos últimos decénios dão a esta fábula toda a pertinência. Estará na <em>natureza do homem fabricar</em>, o mais depressa e o mais eficazmente possível, as armas da sua autodestruição? Se tal é o caso, poderemos nós <em>escapar</em> à nossa natureza?</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128642"><strong><span style="font-size:130%;">A aposta cósmica</span></strong></a></div><div align="justify"><br />Neste primeiro capítulo esbocei o balanço de uma situação particularmente alarmante: a do futuro do género humano. A acumulação delirante de engenhos termonucleares, a proliferação do armamento atómico, fazem-nos prever o pior.</div><div align="justify"><br />As armas – a História no-lo ensina – acabam sempre por funcionar. Os pretextos de legítima defesa tornam-se alibis de agressão. Se o passado é a garantia do futuro, quem apostaria no futuro da paz mundial? E, se o tiroteio começa, quem apostará na sobrevivência da espécie humana?</div><div align="justify"><br />Mas qual o efeito produzido no espaço interestelar por um fogo-de-artifício de bombas atómicas no nosso planeta? Praticamente nenhum... Os habitantes dos sistemas planetários, mesmo os mais vizinhos, serão incapazes de o detectar! Uma peripécia perfeitamente desprezível à escala galáctica e do cosmos. Para que diabo tantas histórias?</div><div align="justify"><br />E, contudo... Se a vida existe em outros sistemas planetários, à volta de outras estrelas, se neles apareceram civilizações tecnológicas, não correrão elas também o risco, impulsionadas pela «cruel discórdia», de serem confrontadas com o mesmo problema? Quantas populações planetárias chegaram antes de nós à encruzilhada crucial em que nos encontramos neste momento sobre a Terra? Quantas mergulharam no nada por não terem sabido executar a manobra correcta? E quantas souberam passar no exame da coexistência pacífica com o seu próprio poderio?</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128643"><strong><span style="font-size:130%;">Um silêncio assustador</span></strong></a></div><div align="justify"><br />Pascal assustava-se com o silêncio dos espaços infinitos. Mas o céu, sabemo-lo hoje, não é para nós um estranho. Lá se elaboram, no centro das estrelas, como nas nebulosas, os núcleos, os átomos e as moléculas, que formarão mais tarde a infra-estrutura da consciência.</div><div align="justify"><br />Existirá vida fora da Terra, noutros planetas, ao redor de outras estrelas, entre os milhares de milhões de galáxias do nosso universo? Temos excelentes razões para pensar que os escalões da complexidade são vencidos quando as condições físicas o permitem. E que estas condições férteis existem em milhões e milhões de exemplares no cosmos. </div><div align="justify"><br />Porquê então nunca recebemos mensagens, radiofónicas ou de outro género, provenientes do céu? Há várias respostas. Examinemos, sucessivamente, quatro delas:</div><ol><li><div align="justify">Contrariamente à opinião apresentada acima, estamos sós. A vida não se desenvolveu em qualquer outro lugar. É possível, mas, considerando os conhecimentos actuais, esta explicação é difícil de aceitar;</div></li><li><div align="justify">As civilizações extraterrestres comunicam por métodos de transmissão que escapam ainda à nossa tecnologia. Não se pode refutar esta hipótese;</div></li><li><div align="justify">Os nossos mais próximos vizinhos estão demasiado longe para os nossos receptores actuais, por exemplo, se habitam na galáxia de Andrómeda. As próximas gerações de radiotelescópios poderão então reservar-nos algumas surpresas;</div></li><li><div align="justify">Incapazes de gerir a sua agressividade, as civilizações tecnológicas exterminam‑se logo que disso se tornam capazes.</div></li></ol><p align="justify">Se a boa resposta é a última, o «silêncio dos espaços infinitos» tem um significado assustador muito diferente do que tinha para Pascal.</p>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-52749249655114699022007-05-19T11:47:00.000+01:002007-05-19T11:49:29.747+01:00As armas engordam as economias<span style="font-size:85%;">Além-Mar<br />Dezembro 2001</span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><br /><span style="font-size:85%;">Excertos</span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><div align="center"><a name="_Toc142274730"><strong><span style="font-size:130%;">As armas engordam as economias</span></strong></a></div><div align="center"></div><div align="center"><br /><strong>D. Manuel Martins </strong></div><strong></strong><br /><p><strong></strong> </p><p><strong> </p><div align="center"><br /></div></strong><div align="center"><strong></div></strong><div align="center"><strong></strong></div><div align="justify"></div><div align="justify">Estava há muito pouco tempo em Setúbal, quando fui convidado para visitar uma fábrica e aí celebrar a Eucaristia.</div><div align="justify"><br />Imagine quem for capaz a alegria que senti, até pelas circunstâncias especialíssimas de tempo e lugar.</div><div align="justify"><br />Só que, chegado à fábrica, logo me sinto arrepiado. Sabem porquê? Porque se tratava de uma fábrica de material de guerra, isto é, de armas que não tinham outro destino que não fosse o de matar. E fiquei inclusivamente a saber que aquelas que se fabricavam com o meu testemunho se deveriam enviar, logo que possível, para um desgraçado país do Oriente que ainda hoje não conhece a paz.</div><div align="justify"><br />Isto quer dizer que Portugal também enfileira na lista dos países que entram na corrida da morte. Somos, é verdade, peregrinos da paz, mas, às vezes, fico-me a pensar que, bem cá no fundo, queremos a guerra. E que a guerra, como a droga, dá dinheiro, engorda economias, faz riqueza. E acontece – penso que acontece – que muitos desses «altos senhores» que correm o mundo a promover e a participar em cimeiras de paz já levam consigo, nas suas pastas, contratos para serem assinados, para fornecimento de material de guerra.</div><div align="justify"><br />Sei, com alegria, que se desenvolve no País, com grande sucesso, um abaixo-assinado, com o sentido de se acabar urgentemente com tal actividade – fabrico/fornecimento de armas –, actividade que, para além de todas as suas vergonhas, nos retira toda a legitimidade de falarmos em paz, fazermos manifestações pela paz, promovermos encontros ecuménicos pela paz. E que «a paz é obra da justiça» e a primeira componente da justiça é verdade. A mentira abre portas à guerra, a mentira alimenta a guerra.</div><div align="justify"><br />Sabemos ainda – quem o havia de imaginar? – que muitas dessas armas que matam, mutilam, afogam sonhos e esperança, vão parar às mãos de crianças, que, assim, nunca chegarão a ser gente.</div><div align="justify"></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-82589296543063475862007-05-19T11:38:00.000+01:002007-07-07T16:26:35.038+01:00A guerra contra as crianças<span style="font-size:85%;">Claire Brisset<br /><em>Um mundo que devora as suas crianças</em><br />Porto, CAMPO DAS LETRAS, 2005</span><br /><br /><span style="font-size:85%;">Excertos adaptados</span><br /><br /><div align="center"><a name="_Toc142274729"><strong><span style="font-size:130%;">A guerra contra as crianças</span></strong></a><br /></div><div align="center"></div><div align="center"><br /></div><div align="center"></div><div align="center"></div><div align="center"></div><div align="center"></div><div align="justify">É difícil estabelecer o quadro de honra da violência contra as crianças, visto esta poder assumir um sem-número de formas. Difícil, mas não impossível. À cabeça desta lista encontra-‑se, sem qualquer margem para dúvidas, a guerra – a guerra contra as crianças.</div><div align="justify"><br />Em 1989, o mundo inteiro foi tomado por um devaneio, uma ilusão generalizada. Um sistema desabava no Leste da Europa e consigo toda uma ideologia centenária. Na altura pensava-se que a competição político-belicista que acompanhou passo a passo esse desmoronamento se iria desvanecer quase instantaneamente. Todas as guerras e conflitos exportados para todo o mundo por esse confronto em que se digladiavam valores contraditórios iriam finalmente apaziguar-se. Especialmente para aqueles que tinham vivido o período imediatamente anterior à Segunda Guerra Mundial, esta ilusão evocava a célebre frase de Chamberlain quando, ao regressar da Alemanha, bradava, à saída do avião, agitando uma folha de papel com o texto dos acordos de Munique: “Trago-vos a paz para o nosso tempo.” As consequências dessa miragem não se fizeram esperar.</div><div align="justify"><br />Fim da ilusão. O desmantelamento do Império Soviético não só não deu início a nenhum período de paz, como os conflitos não pararam de se intensificar desde então, tanto a sul como a norte do planeta: Conflitos internacionais e sobretudo conflitos civis, sendo estes tão mortíferos como os primeiros. O envolvimento de civis nestas guerras, e entre eles, de crianças, não pára de crescer.<br />Os números falam por si. Desde 1945, cento e cinquenta conflitos mancharam de sangue o planeta e, há actualmente oitenta países à mercê da violência e da guerra. Quer sejam guerras de pequena dimensão, quer conflitos de enorme amplitude, pouca é a diferença para a população civil, no seio da qual as vítimas se contam aos milhões. De facto, nos últimos dez anos, as guerras mataram mais de dois milhões de crianças. Feriram ou incapacitaram, muitas vezes definitivamente, mais de cinco milhões e traumatizaram psicologicamente perto de doze milhões. O número de órfãos, de crianças separadas da família, arrancadas ao seu lar e à sua terra, é ainda maior. Por último, e derradeira consequência desta violência, as forças armadas recrutam hoje em dia crianças-soldados na ordem das centenas de milhar, as mais jovens das quais terão apenas seis anos de idade.</div><div align="justify"><br />Mas, dir-se-á, o envolvimento de crianças em conflitos armados não é nenhuma novidade. Nas guerras de outros tempos, perde-se a conta do número de cidades incendiadas ou de civis exilados. Basta recordar que a Cruzada das Crianças, em 1212, lançou para as ruas de toda a Europa cerca de 30 000 crianças mobilizadas para a libertação da Terra Santa. E que Condé ou Turenne, com pouco mais de quinze anos, já comandavam regimentos inteiros de crianças. Frederico o Grande e, posteriormente, Napoleão, tampouco hesitavam em recrutar soldados muito jovens. Por fim, Hitler, a meio da Segunda Guerra Mundial, mandou recrutar para o exército alemão batalhões inteiros de adolescentes.</div><div align="justify"><br />Tudo isto é certo, está provado e constitui um facto histórico. Por outro lado, a palavra “infantaria”, já nos diz tudo. <em>In-fans</em>, aquele que não fala, é a criança de tenra idade. A expressão acabou por designar a tropa, a tropa terrestre, “a rainha das batalhas”, como dizia Napoleão. Mas esses exércitos dos tempos passados também inventaram a farda militar, cuja única função consistia em distinguir os civis dos militares. E ao longo dos séculos, fomos começando a acreditar num progresso da consciência moral: pouco a pouco, as sociedades estavam a começar a aprender a proteger os civis nos conflitos, em particular as crianças. Em pleno campo de batalha da guerra da Crimeia, Henry Dunant concebeu o que viria a ser a Cruz Vermelha Internacional, um conjunto de fundamentos segundo os quais os civis devem ser poupados e os feridos tratados, independentemente da facção a que pertencem, algo que viria a contribuir para “humanizar” as guerras. Henri Dunant chegou mesmo a receber o Prémio Nobel da Paz por este feito.</div><div align="justify"><br />“Humanizar” a guerra, poupar os civis... O que se verificou foi exactamente o contrário. Os conflitos do século XX, qual deles o pior, foram um espelho disso. A Primeira Guerra Mundial, a Guerra Civil de Espanha e sobretudo a Segunda Guerra Mundial fizeram com que as crianças entrassem em massa nos conflitos como actores, mas principalmente como vítimas, vítimas da violência cega dos campos de concentração<span style="color:#330099;">[1]</span> e dos bombardeamentos que se abatem indiscriminadamente sobre as populações civis. E quem paga hoje em dia o preço desta evolução são as crianças, um preço cujo impacto é difícil de calcular.</div><div align="justify"><br />Depois da Guerra Civil de Espanha e sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, foram-se aperfeiçoando as técnicas para atingir não só as forças de combate, mas também as suas bases na retaguarda, a sua economia e as suas infra-estruturas, mas também os seus suportes psicológicos e afectivos, ou seja, acima de tudo, as mulheres e crianças. Quando o exército alemão bombardeou Guernica e, mais tarde, Coventry, quando os Aliados arrasaram Dresden e os americanos largaram a primeira bomba atómica sobre Hiroshima, a ideia era obviamente aplicar um golpe fatal não tanto às forças de combate, mas à população em geral. Tanto pior, ou mesmo tanto melhor, se entre os alvos atingidos figurasse a mesma quantidade de objectivos civis do que a de pontos estratégicos militares. Graças às armas modernas e aos bombardeamentos aéreos, a guerra entrou numa nova era. Que se cruzou, na mesma altura, com a concepção industrial da limpeza étnica – foi devido a técnicas avançadíssimas que se pôde aspirar à extinção total de grupos humanos considerados indesejáveis, como os judeus ou os ciganos, não fazendo qualquer distinção entre homens, mulheres e crianças. Todos nós assistimos, pelo desenrolar dos acontecimentos, ao sucesso florescente desta concepção da guerra.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><strong><span style="font-size:130%;">A “criança-alvo”</span></strong></div><div align="justify"><br />Que significa esta evolução? Que as crianças não são protegidas em parte alguma como o deveriam ser, enquanto membros mais frágeis de uma sociedade. A expressão “Mulheres e crianças primeiro!”, utilizada na ocorrência de naufrágios, já não é levada a sério. No entanto, ela fazia todo o sentido, um sentido muito preciso – em caso de fatalidade, não se trata apenas de proteger os mais fracos, trata-se também de garantir o futuro.</div><div align="justify"><br />Actualmente, muito pelo contrário, os conflitos fazem das mulheres e mais ainda das crianças, os seus alvos privilegiados. Assassinar crianças, feri-las ou violentá-las é aplicar um duro golpe no grupo humano que se pretende exterminar ou subjugar. Foi assim que se pôde ouvir a <em>Radio Mille Collines </em>inundar o Ruanda com este <em>slogan</em> em 1994 – “Para eliminar os ratos maiores, temos de matar os mais pequenos.” Ou seja, as crianças tutsis. E foi assim que mulheres grávidas foram esventradas para eliminar futuros tutsis e adolescentes violadas aos milhares para que ficassem marcadas com um ferro impossível de apagar. Uma atitude idêntica esteve sempre bem presente durante todo o conflito jugoslavo. Quando os atiradores furtivos visavam sem erro as crianças, nos passeios das ruas de Sarajevo, estavam a seguir obviamente a mesma lógica. Quando as granadas, cuidadosamente dirigidas, se abatiam sobre uma padaria ou sobre o mercado central da capital bósnia, também aqui, e mais uma vez, se seguia a mesma linha desta nova “estratégia”.</div><div align="justify"><br />As crianças são cada vez mais assassinadas, feridas e massacradas nestas guerras “modernas” que se multiplicaram desde 1945 e cuja amplitude não pára de crescer perante os nossos olhos. Da América Central ao Camboja, do Líbano à República Democrática do Congo, surgem conflitos em todos os pontos do planeta que se abatem sobre as crianças, incluindo as mais jovens, como se todo o cuidado em protegê-las não só fosse aniquilado, apesar de todos os esforços dos partidários do Direito Humanitário Internacional, mas mesmo literalmente subvertido.</div><div align="justify"><br />A evolução do armamento enquadra-se perfeitamente nesta óptica. Os aperfeiçoamentos técnicos não tornaram só os bombardeamentos (nucleares, químicos ou convencionais) muito mais eficazes. Tornaram igualmente a indústria das minas perfeitamente adaptada a esta nova concepção da guerra. É indispensável transformar o território do inimigo num campo de minas. Desta forma, será aplicado um rude golpe na moral dos civis e na sua capacidade de sobreviver ao conflito, de uma forma extremamente eficaz.</div><div align="justify"><br />E é assim que hoje em dia, um certo número de países, que aliás se encontram entre os mais pobres do mundo, foram transformados efectivamente em imensos campos de minas – o Afeganistão, o Camboja e Angola são os países mais minados do mundo; segundo os peritos, o Afeganistão, por si só, tem enterradas no seu solo entre dez e quinze milhões de minas. O Camboja conta com oito milhões, ou seja, uma mina por habitante, e é o país que actualmente possui o maior número de mutilados do mundo. Mas o continente africano não lhe fica nada atrás, com um sem-número de campos de batalha, de Angola a Moçambique e do Ruanda à Somália. No total, em todo o mundo, encontram-se cerca de cento e dez milhões de minas espalhadas no solo de sessenta e quatro países. Não só “no solo”, aliás, porque graças aos progressos científicos, existem também minas aquáticas, adaptadas aos arrozais, por exemplo, e minas para as árvores. Há também a mina “saltitante”, concebida para explodir a um metro do solo, para melhor incapacitar ou assassinar, a mina “borboleta”, com o aspecto de um brinquedo colorido, a mina camuflada dentro de bonecas... a imaginação dos fabricantes não tem limites.</div><div align="justify"><br />Ora estas minas, que destroem literalmente a vida civil de comunidades inteiras, são particularmente perigosas para as crianças. As crianças constituem, por si só, metade das seiscentas mil vítimas de minas (assassinadas ou mutiladas) nos últimos vinte anos. Os riscos que elas correm são ainda mais graves do que os que ameaçam um adulto. O corpo de uma criança, mais pequeno, não protege tão bem os órgãos vitais como o de um adulto e a sua resistência face à perda de sangue é menor. O ponto de impacto da explosão acontecerá a uma distância menor dos órgãos vitais, da face, dos olhos, e em consequência, muitas ficarão cegas. As crianças também são um alvo fácil porque têm tendência para explorar os: espaços desconhecidos para procurar (levadas pela curiosidade natural infantil) novas brincadeiras e construir brinquedos com os explosivos que encontram. As minas borboleta, tão tentadoras para os petizes, já assassinaram milhares de crianças no Afeganistão.</div><div align="justify"><br />Por fim, quem é que vai buscar a lenha, a água, guardar o rebanho, atravessar os campos para chegar à escola, senão as próprias crianças? Depois da deflagração da mina e da descoberta da criança inanimada (quando é descoberta) é necessário amputá-la ou, no melhor dos casos, colocar-lhe uma prótese. Mas uma prótese – quando existe – é muito cara no Camboja, no Afeganistão ou em Angola. Dá-se então prioridade aos adultos porque estes são mais rentáveis para a sociedade. Por outro lado, uma criança está a crescer e irá precisar de duas, três, ou quatro próteses. É demasiado caro. Demasiado complicado. Muitas vezes, o que se seguirá será a rejeição da criança amputada e inválida pelo grupo social, sobretudo se a mutilação for vista como uma condenação divina, uma maldição sobrenatural, como acontece no Camboja.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><strong><em><span style="font-size:130%;">Abatidas, refugiadas no silêncio</span></em></strong></div><div align="justify"><br />Mas a história não acaba aqui. A guerra não afecta só o bem-estar das crianças por intermédio de bombas, granadas e minas. Ela mata muito mais eficazmente quando interrompe todos os circuitos da produção agrícola, quando bloqueia todas as redes de comunicação e quando impede o fornecimento de géneros alimentares ou de medicamentos. A guerra destrói os sistemas de alimentares ou inunda-os de feridos, impede a medicina preventiva, as campanhas de vacinação e favorece o aparecimento de surtos de epidemias, da fome e da pilhagem da ajuda externa.</div><div align="justify"><br />Na Somália, estima-se que a guerra tenha feito desaparecer entre metade e três quartos das crianças com menos de cinco anos. Mas só um pequeno número terá sido vítima dos efeitos directos dos combates, dos tiros da artilharia e dos bombardeamentos. Quase todas morreram de fome e da completa e total desorganização da vida económica e social em que o país se encontra.</div><div align="justify"><br />O mesmo esquema repete-se um pouco por todo o lado. Na Etiópia, durante a grande fome dos anos 1984-1985, a esmagadora maioria das vítimas sucumbiu mais rapidamente à malnutrição e às epidemias do que à guerra propriamente dita. No Camboja, durante o regime dos Khmers Vermelhos, não foram as execuções sumárias, a tortura ou os massacres que provocaram o maior número de mortos (se bem que ainda não se saiba a que escala foram praticados), mas a deportação maciça, os trabalhos forçados e a malnutrição.</div><div align="justify"><br />A desorganização da vida económica nem sempre é um subproduto espontâneo da guerra. De facto, raramente o é. Muito frequentemente, resulta de uma deliberada política de terra queimada, levada a cabo pelas facções em conflito que destroem pontes, estradas e vias ferroviárias e regam a napalm ou a produtos tóxicos o território inimigo. Ou então, como foi o caso do Camboja, assiste-se a uma tentativa demente de “reorganização” do país, com base em teorias perfeitamente disparatadas.</div><div align="justify"><br />A guerra destrói, então, tudo o que as crianças necessitam para viver e para se desenvolverem. Ela priva-as, em primeiro lugar, dos próprios pais, umas vezes fisicamente em consequência dos combates e massacres, e outras por causa do caos geral que instaura. Foi assim que no fim do Verão de 1994, mais de cento e dez mil crianças ruandesas foram recolhidas pelas organizações humanitárias, não só porque um grande número de adultos tinha desaparecido devido aos assassinatos ou à cólera, mas também porque, no pânico da fuga para a fronteira Este com a República Democrática do Congo, muitas crianças se perderam, afastando-se inexoravelmente das familias.</div><div align="justify"><br />O que acontecerá a estas crianças que, depois de terem assistido a massacres, se vêem sós, paradoxalmente sós no meio de milhares de outras, nessas enormes instituições, nesses orfanatos onde, apesar de uma imensa boa-vontade se torna praticamente impossível realizar qualquer tratamento individual ou recriar laços reais, esses laços sem os quais uma criança é incapaz de se projectar no futuro? As sequelas psicológicas das guerras “modernas” são muitas vezes tão graves quanto as sequelas físicas com as quais as crianças têm de viver. Algumas saltam imediatamente à vista – crianças abatidas, refugiadas no silêncio, por vezes até incapazes de chorar, ou de contar o que sofreram; crianças violentas, agressivas, ou, pelo contrário, apáticas, passivas. Crianças desapossadas de si próprias, desprovidas dos seus objectos de afeição, de identificação. Crianças que se mutilam, que se culpam por estarem vivas quando tantas outras estão mortas. Outras vezes, as feridas psicológicas não são aparentes e a criança parece relativamente insensível face ao que lhe aconteceu. Mas essas feridas irão irromper mais tarde, na adolescência ou na idade adulta, quando a “cicatrização” já se tiver tornado irremediavelmente impossível.</div><div align="justify"><br />Uma das melhores curas e uma das únicas formas de se conseguir ajudar estas crianças a regressar à vida passa pela reactivação das escolas. Mas as escolas também sofreram as consequências da guerra, e quase nunca por acaso. É desta forma que em Moçambique, quando a guerra chegou ao fim em 1993, dois terços das crianças já não tinham qualquer acesso ao ensino primário. No Camboja, os Khmers Vermelhos eliminaram, arrasaram, toda e qualquer forma de sistema escolar, símbolo de uma cultura maldita. Na Etiópia e na Somália, com as escolas destruídas e os professores enviados para a frente de batalha, já nada resta do antigo sistema de educação, já de si deficitário, nas províncias do norte e do este. Quanto às crianças ruandesas refugiadas na República Democrática do Congo, não tiveram qualquer acompanhamento escolar durante três anos.</div><div align="justify"><br />No entanto, sabemos que uma das primeiras medidas a ser levada a cabo no fim dos conflitos não passa apenas por retirar as crianças das imensas instituições onde foram colocadas de urgência para as devolver aos familiares, mesmo afastados, ou a famílias de acolhimento; tampouco se limita a oferecer-lhes alimentação e cuidados adequados. Consiste também em recriar condições para uma escolarização, mesmo que rudimentar, para que elas possam reaver ao menos um vislumbre de uma vida de criança; para que lhes sejam restituídos os objectos de investimento que a guerra lhes roubou por completo. Tem-se tentado pôr em prática diversas estratégias, embora ainda não seja possível avaliar o seu impacto: psicoterapias de grupo, terapias através do jogo e do teatro, cerimónias de luto colectivas, rituais tradicionais. Todas estas estratégias, por mais necessárias que sejam, podem parecer insignificantes face aos dramas insondáveis que estas crianças viveram. Sem a reconstituição de autênticos laços interpessoais, sem a libertação da palavra que exteriorize os dramas inscritos na memória, corre-se o enorme risco de o trauma se instalar, talvez para sempre. E por vezes também, o risco do aparecimento da violência como único meio possível de expressão. Violência que é dirigida aos outros, mas também a si própria.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><strong><span style="font-size:130%;">O efeito perverso dos embargos</span></strong></div><div align="justify"><br />Porém, podem surgir outros obstáculos no caminho deste penoso regresso à normalidade, desta vez sob a forma de obstáculos políticos. Quando um país, já de si vítima de uma guerra ou de conflitos civis violentos tem, como se não bastasse, “atitudes politicamente incorrectas”, pode abater-se sobre ele, mais precisamente sobre a população civil e sobretudo sobre as crianças, uma nova forma de calamidade – as sanções económicas. Assim, para “punir” Saddam Hussein por ter tentado anexar o Kuwait, o Conselho de Segurança das Nações Unidas decidiu proibi-lo de exportar o seu petróleo para o mercado mundial, ou, por outras palavras, decidiu asfixiá-lo financeiramente. Para estrangular o sistema, foi proibido ao Iraque não só exportar a sua única produção, mas também importar aquilo de que necessitava para alimentar, tratar e educar a sua população. A interdição afectava produtos como a farinha, o azeite, os medicamentos e as vacinas, assim como cadernos, borrachas e lápis.</div><div align="justify"><br />Os resultados não foram imediatamente visíveis, porque o Iraque não era um país pobre e dispunha de algumas reservas. O seu sistema de saúde, de distribuição de alimentos e de educação figurava mesmo entre os mais desenvolvidos do Médio Oriente. Mas os efeitos do embargo acabaram por aparecer com toda a clareza. Embora os benefícios políticos obtidos pela comunidade internacional ainda não estejam completamente demonstrados, o impacto das sanções sobre a população civil não podia ser mais claro. A taxa de mortalidade de crianças com menos de cinco anos duplicou no país desde o fim da guerra do Golfo e é actualmente superior à de países como o Brasil, o Peru ou o Egipto. Calcula-se que tenham já morrido quinhentas mil crianças em consequência do embargo. A malnutrição generalizou-se e os sistemas de abastecimento de medicamentos e de água potável desmoronaram-se. O sistema escolar teve idêntica sorte - as crianças que continuam a ir à escola sentam-se no chão e trabalham com materiais obsoletos que não podem ser substituídos. A taxa de abandono escolar subiu em flecha, sobretudo no que se refere às meninas entre os dez e os doze anos, que são obrigadas a procurar trabalho para completar os rendimentos da família no fim do mês. O abrandamento do embargo, acordado desde o início de 1997, irá permitir ao Iraque regressar à sua situação anterior? Dificilmente o fará, já que os efeitos de uma tal derrocada irão certamente persistir durante muito tempo.</div><div align="justify"><br />Os efeitos do embargo foram semelhantes no Haiti, podendo, no entanto, ser mais graves tendo em conta o nível de pobreza inicial do país. Aí, as sanções económicas foram aplicadas durante três anos, depois do golpe de estado militar de 1991. Entre essa data e o final de 1993, a taxa de malnutrição que se verificou entre crianças com menos de cinco anos examinadas nas instituições de apoio da ilha subiu de 27% para mais de 50%. O impacto das sanções foi desastroso para o conjunto dos já escassos sistemas de saúde e educação em todo o país.</div><div align="justify"><br />O último exemplo é o do Burundi, um país à mercê de intensas tensões políticas, de um genocídio encapotado e cujos vizinhos decidiram que precisava de ser “punido”. Punido porquê? Pelo facto de possuir um chefe de Estado auto proclamado, como se toda a região circundante não padecesse também de um défice democrático generalizado. As consequências não se fizeram esperar – as tensões internas ficaram ao rubro, começaram a suceder-se massacres atrás de massacres e as organizações humanitárias estão a deparar-se com imensos obstáculos na sua tarefa de ajudar a população.</div><div align="justify"><br />Todas estas sanções, cujo impacto na vida dos civis pudemos observar também na Sérvia, parecem repetir-se falhando sistematicamente o alvo – impotentes para atingir o corpo político visado, geralmente um chefe de Estado muito pouco preocupado com o bem-estar da população civil, elas castigam, na realidade, sobretudo aqueles cujo poder político é praticamente inexistente – as crianças. Sistema absurdo este, cujo impacto no futuro dos países “sancionados” está ainda longe de se conseguir determinar, e em que o tirano, virtuosamente denunciado, acaba por não ser atingido. Se por sancionar, se subentende na realidade eliminar o chefe de Estado incriminado, então a solução não passará certamente por aí e deveriam ser levantadas algumas restrições, deixando passar, por exemplo, bens de primeira necessidade indispensáveis para as crianças. Nunca ninguém tentou iniciar uma acção capaz de penalizar realmente os políticos responsáveis pelos infortúnios daqueles que são governados. O que podemos observar, pelo contrário, são os antigos ditadores a gozar as suas reformas tranquilas e principescas, graças ao dinheiro que conseguiram roubar ao seu povo, uns na Côte d'Azur, como Baby Doc do Haiti, e outros em residências rurais no Zimbabué, como o sanguinário coronel Mengistu. Os exemplos vão-se acumulando. Quanto àqueles que ainda estão no poder, é do conhecimento geral que não estão propriamente nas ruas da amargura, seja em Bagdade, em Belgrado ou em qualquer outra parte do mundo<span style="color:#330099;">[2].</span></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><strong><span style="font-size:130%;">Refugiados e “deslocados</span></strong><strong><span style="font-size:130%;">”</span></strong></div><strong><span style="font-size:130%;"></span></strong><div align="justify"><br />Outra consequência inevitável da guerra é a imensidão das deslocações de população e dos agrupamentos de refugiados, nos quais as crianças acabam por ser as primeiras vítimas da escassez de provisões e dos êxodos precipitados impostos pelas peripécias político-militares, como pudemos observar a partir de 1994 na região Oriental da República Democrática do Congo.</div><div align="justify"><br />Hoje em dia existem por todo o mundo vinte e oito milhões de “refugiados” – aqueles que atravessaram uma fronteira – e de “deslocados”, que são aqueles que permaneceram no seu país. Distinção teórica que pouca diferença faz na vida dos interessados. Do ponto de vista do Direito, só os refugiados podem reivindicar uma protecção jurídica especial, porque se viram forçados a abandonar o seu país, enquanto que os “deslocados” são, na realidade, refugiados no seu próprio país. Na prática, esta distinção não faz muito sentido – os “deslocados” do Sudão, que fugiram de uma guerra devastadora no sul do país, estão numa situação a todos os títulos comparável à dos seus compatriotas refugiados nos países vizinhos. Quanto à protecção jurídica de que os refugiados deveriam beneficiar, esta de nada valeu aos ruandeses massacrados desde o início de 1997 na região noroeste da República Democrática do Congo. Massacrados pelas armas e pela fome.</div><div align="justify"><br />Quer se trate de “refugiados” quer de “deslocados”, mais de três quartos e, por vezes, mesmo nove décimos de entre eles, são compostos por mulheres e crianças. Imensas concentrações desumanas onde a vida gravita em torno da distribuição de víveres, e onde as crianças deambulam sem objectivo, de um acampamento para outro; campos enormes onde reinam a insegurança, a promiscuidade e a violência; onde circulam armas, onde os mais jovens se deixam levar pelos agentes recrutadores, onde os adolescentes são agredidos. Centenas de milhares de crianças nascem e sobrevivem nesses campos sem escolarização – em todo o mundo, apenas têm acesso à escola menos de 15% das crianças destes campos. Por outro lado, muitas destas crianças são privadas da sua nacionalidade, logo, de um sentimento de identidade nacional que provavelmente permanecerá ausente durante toda a vida. A idade permanecerá em muitos casos uma incógnita nas suas vidas e, para aqueles que se perderam dos pais, o próprio nome também. Podemos citar como exemplo o caso dos trezentos e cinquenta mil refugiados cambojanos imobilizados na fronteira khmero-tailandesa, com a Tailândia e o Camboja a “atirarem a batata quente” de um lado para o outro, a primeira negando-lhes a nacionalidade tailandesa e o segundo recusando-lhes a nacionalidade khmer, porque eles tinham fugido do país na altura sob a mão de ferro dos Khmers Vermelhos. Como sobreviver no mundo actual sem identidade, sem nacionalidade e sem saber a idade nem o próprio nome?</div><div align="justify"><br />Para além disso, as condições de vida nos campos são cada vez mais precárias. Nos últimos quinze anos, o número de refugiados e deslocados tem vindo a dilatar-se desmesuradamente em consequência dos conflitos mais recentes – as guerras na América Central, no Afeganistão, em Moçambique, no Ruanda, etc., mas os recursos que a comunidade internacional põe à sua disposição não sofreram praticamente qualquer alteração. Muito pelo contrário, as rações alimentares foram diminuindo ao longo dos anos e a malnutrição existente nos campos tem aumentado. Aumenta ainda mais quando estes campos servem de base a soldados perdidos que não mostram qualquer escrúpulo em se servirem primeiro dos produtos alimentares, para eventualmente os revenderem e comprarem armas. Verifica-se, assim, que a malnutrição nunca foi tão grave nem tão frequente nesses campos como o é agora. Segundo a Unicef, a incidência da emaciação, ou emagrecimento muito acentuado, atinge nas crianças a tremenda percentagem de 40% em Angola, na Libéria e no Sudão.</div><div align="justify"><br />Ninguém duvida que viver nesses campos deve ser semelhante a viver um autêntico pesadelo, mas este é um pesadelo que pode vir a durar quinze ou mais anos, como vimos no caso dos três milhões de refugiados afegãos fixados no Irão e no Paquistão, dos eritreus instalados no Sudão, dos moçambicanos no Malávi, dos cambojanos na Tailândia, etc. Em casos como estes, em que se tornarão as crianças? Adolescentes para quem o regresso ao país natal aparece como uma ideia abstracta, um país que eles nem sequer conhecem, ao mesmo tempo que vêem impedida a sua integração no país de “acolhimento”. Presas fáceis dos agentes de recrutamento e dos proxenetas que infestam os campos de refugiados.</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><span style="font-size:130%;"><strong>A criança treinada para matar</strong></span></div><div align="justify"><br />O auge deste circo de horrores é precisamente atingido pelo recrutamento de crianças-‑soldado. Quantos “soldados” de seis, oito e doze anos existirão por esse mundo fora? A última estimativa credível remonta ao ano de 1988. Nessa altura, atingia já o número pungente de duzentos milhares de crianças. Mas isto foi antes dos conflitos do Ruanda, do Burundi, da Libéria, da Serra Leoa, antes da explosão do conflito na Jugoslávia, antes ou mesmo durante a guerra entre o Irão e o Iraque, mas em todo o caso, antes de serem tornadas públicas as atrocidades que tiveram lugar neste último conflito.</div><div align="justify"><br />Esta estimativa encontra-se assim claramente desactualizada, e neste momento é impossível proceder a um novo estudo. Mas todos os que se deslocaram recentemente aos campos de batalha, principalmente em África, são testemunhas da notória juventude de alguns “combatentes”. Tivemos oportunidade de ver com os nossos próprios olhos grupos de “soldados”, no Ruanda, em que os mais velhos nem sequer doze anos tinham. No Camboja, as facções que ainda hoje continuam a assassinar-se pelo poder mantiveram certos hábitos do tempo de Pol Pot e continuam a recrutar soldados pré-adolescentes.</div><div align="justify"><br />A história recente põe à nossa disposição um leque enorme de exemplos desta tendência, sendo que o mais abjecto de todos será o de obrigar crianças com apenas dez anos a matar e a torturar, às vezes os próprios pais, fazendo-lhes literalmente uma lavagem ao cérebro. Foi o que aconteceu ou ainda acontece em Moçambique, no Uganda, na Libéria e na Serra Leoa. No Afeganistão, na Nicarágua e em El Salvador, foram raptadas dezenas de milhares de crianças para irem engrossar as fileiras dos guerrilheiros e para as obrigar a cometer atrocidades a que os próprios soldados adultos às vezes se recusavam.</div><div align="justify"><br />Por vezes, para chegar a este ponto, a violência ou a coacção não são suficientes. É necessário um doutrinamento, uma fanatização cuidadosamente organizados. Esta foi a política adoptada pelo Irão durante a guerra com o Iraque. Por deliberação dos dirigentes, não se podiam perder muitos homens válidos nos campos de minas. Para desminar, as crianças serviam muito bem. Então, explicava-se-lhes no meio de reuniões “religiosas” que elas iriam servir o seu país, e mais tarde, alcançar directamente o paraíso. Para tal, foram instruídos actores encarregados de lhes mostrarem o caminho e que, a dado momento, davam o sinal de partida. E foi assim que vimos milhares de crianças precipitando-se sobre campos de minas, levando ao pescoço chaves de plástico, as chaves do paraíso, e gritando antes da mina explodir a seus pés: “Allah Akbar!” Pensa-se que cerca de cinquenta mil crianças iranianas terão morrido assim em nome de Deus. Menos sorte tiveram as sobreviventes, enclausuradas durante anos nas prisões iraquianas, mortificadas por terem sobrevivido, aterrorizadas com a ideia de voltar ao seu país, envergonhadas por ainda estarem vivas.</div><div align="justify"><br />Mas em certas ocasiões, o recurso à religião não basta. É nesse caso que intervém uma técnica que consiste em fazer com que a criança cometa repetidamente atrocidades, de preferência sobre a sua própria família. Este método foi abundantemente utilizado em Moçambique pela Renamo, guerrilha nessa altura financiada pela África do Sul, e mais recentemente pelas facções em conflito na Libéria e na Serra Leoa. Os “meninos-lobos”, como eram apelidados em Moçambique, eram obrigados a matar, a matar os parentes, de maneira a destruírem quaisquer laços afectivos que os ligassem à sua família, ficando assim completamente dependentes da guerrilha que os tinha raptado. Obrigadas a assassinar os pais, os camponeses e as pessoas mais próximas, as crianças tornar-se-iam dóceis; qualquer tentativa de voltar atrás seria impedida. A dado momento, a Renamo dispunha de pelo menos dez mil dessas crianças-soldado, as mais jovens das quais mal tinham completado os seis anos de idade. Em Angola, de acordo com um inquérito levado a cabo em 1995<span style="color:#330099;">[3],</span> 36% do total de crianças do país tinham “acompanhado” ou ajudado os soldados.</div><div align="justify"><br />Mas há situações que requerem algo mais, além da religião, do doutrinamento e da coacção. E é aqui que surge a droga. “Davam-nos marijuana e comprimidos” – conta-nos uma criança liberiana “desmobilizada” – “Quando se toma essas coisas, não se sente mais nada, não se pensa em mais nada que não seja matar.”</div><div align="justify"><br />Porque razão alguns exércitos e algumas guerrilhas se interessam tanto pelas crianças-‑soldado que, a priori, se poderiam considerar inexperientes e pouco eficazes? Antes de mais há que ter em conta a escassez de soldados adultos – há alturas em que os exércitos precisam de mais mãos para trabalhar e, por isso vão-se buscar crianças para integrarem contingentes suplementares, como no caso da decisão tomada pelo exército nazi em 1944, de incorporar soldados de dezasseis anos.</div><div align="justify"><br />Mas isto não é tudo. Segundo o raciocínio dos recrutadores, uma criança é infinitamente mais maleável, mais facilmente manipulável e condicionável do que um adulto; é menos propensa à revolta e mais sensível aos métodos de terror infligidos. </div><div align="justify"><br />Não exige soldo nem qualquer gratificação especial, a não ser a sensação de pertencer a um grupo de recrutas, a um grupo onde seja reconhecida. Neste raciocínio entra também a ideia de que uma criança pode não se aperceber do que lhe estão realmente a pedir; de que a fronteira entre o bem e o mal ainda é indistinta para ela. Tendo em conta tudo isto, porque não aproveitar um recurso tão valioso, que abunda em excesso nos campos de refugiados, nos orfanatos, nas cidades e nas escolas?</div><div align="justify"><br />Raptam-se então os rapazes, tal como pudemos assistir muito recentemente em vários cenários de conflitos armados, mas também se raptam meninas, situação que está a decorrer neste preciso momento a Norte do Uganda. O destino dessas meninas é o “casamento” com um soldado, a sujeição a relações sexuais, e a fazer tudo o que é necessário a um exército em movimento: cozinhar, limpar, etc. Várias centenas destas meninas ugandesas, raptadas pelo “Exército de Resistência do Senhor”, foram libertadas recentemente e estão actualmente em fase de tratamento. Mas existirá alguma forma de as resgatar verdadeiramente da guerra? Qual será a ajuda que lhes poderemos oferecer quando aquilo por que elas passaram está muito além da nossa imaginação? Também elas foram obrigadas a cometer atrocidades, a beber sangue humano, a sujeitarem-se a todos os delírios dos soldados. Quando isto acontece a uma criança de oito, nove anos de idade, o que fazer para que ela se reconcilie de novo com a vida?</div><div align="justify"><br />Para algumas destas crianças, o condicionamento e a solidão são de tal maneira extremos que o exército se torna, paradoxalmente, no seu único refúgio, no único lugar com que se conseguem identificar, uma espécie de substituto da família que perderam. Em Maio de 1993, o governo da Serra Leoa ordenou a desmobilização de todos os soldados com menos de quinze anos. A “desmobilização” foi, no entanto, mais problemática do que se previa inicialmente. É absolutamente indispensável um trabalho de equipa que as consiga dissociar da nova “família” que pensavam ter encontrado, sem que se sintam órfãs uma segunda vez.</div><div align="justify"><br />O progresso tecnológico do armamento militar também faz com que o recrutamento de crianças-soldado se vá tornando cada vez mais fácil, dada a proliferação de armas leves ou de pequeno calibre. Antigamente, as armas eram demasiadamente grandes ou pesadas para elas. Hoje em dia a história é outra. Uma espingarda de assalto de origem soviética AK 47 ou uma M 16 norte-americana são ao mesmo tempo leves, fáceis de montar e desmontar e bastante acessíveis. O “preço corrente” de uma AK 47, por exemplo, é neste momento inferior a dez dólares em África e existem M 16 disponíveis em todo o lado.</div><div align="justify"><br />Com efeito, os responsáveis por este alistamento maciço de crianças na guerra andam de mãos dadas com aqueles que compram as armas e as colocam à disposição de todos, e aqueles que as vendem. Todos lucram com isso. Lucros militares por um lado, lucros comerciais por outro. O negócio das minas continua de vento em popa, não obstante os esforços meritórios de todos aqueles que lutam para que elas sejam completamente banidas. No entanto, o mercado dos armamentos tradicionais vai proliferando a uma escala bem maior. De resto, os números falam por si, ao revelar que os orçamentos militares de todo o mundo, em francos ou em dólares constantes, se multiplicaram por quinze a partir de 1945, tendo atingido em 1993 os valores alucinantes de 790 biliões de dólares (destes, 121 biliões foram gastos pelo Terceiro Mundo). É verdade que esta quantia revela uma ligeira diminuição em relação ao pico histórico atingido em 1987, o que significa que pelo menos neste aspecto, o desmoronamento do Império Soviético teve a sua utilidade. Mas os números continuam a ser impressionantes, sobretudo se os compararmos com os orçamentos destinados em todo o mundo às áreas da educação e da saúde e os que se referem à totalidade dos serviços destinados às crianças, em que as quantias envolvidas são cerca de cem vezes inferiores.</div><div align="justify"><br />No entanto, não apontemos o dedo acusador aos progressos tecnológicos nem aos interesses económicos. O culpado é ainda, e sempre, o mais profundo desprezo em relação à criança. Recrutar crianças, manipulá-las, obrigá-las a matar ou a torturar, são ideias que à partida não decorrem de estratégias financeiras, embora os traficantes de armas acabem por beneficiar largamente desta situação. Elas são uma opção deliberada de estrategas em ponto pequeno que arrancam as crianças das escolas e forçam a guerra a entrar nas suas vidas e para sempre. Essa escolha é uma escolha racional, deliberada, calculada. O mundo saturado de imagens e de horrores em que vivemos ainda não conseguiu avaliar bem a amplitude dessa abjecção. De que é que estará à espera?</div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330099;">[1]</span> Foi publicado recentemente um livro incontornável sobre esta temática, um testemunho de um sobrevivente do campo de concentração de Maidanek. O autor tinha quatro anos quando foi levado para o campo. Frangments, Une enfance 1939-1948, Binjamin Wilkomirski, Calmann-Lévy, Paris, 1997.<br /><span style="color:#330099;">[2]</span> N.T. -O conteúdo global desta obra, e nomeadamente este excerto, deve ser lido atendendo ao facto de a sua edição original datar do ano de 1997.<br /><span style="color:#330099;">[3] </span><em>A Situação Mundial da Infância</em>, Unicef, Brasília, 1997.</div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-24781078019800222852007-05-19T11:17:00.000+01:002007-05-22T23:27:27.017+01:00Violência «com sentido» e violência «gratuita»<span style="font-size:85%;">Wolfgang Salewski; Peter Lanz<br /><em>A Nova Violência – e como enfrentá-la</em><br />Lisboa, Ed.Livros do Brasil, 1978</span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><span style="font-size:85%;">Excertos adaptados</span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><span style="font-size:85%;"></span><br /><div align="center"><a name="_Toc142274728"></a><a name="_Toc118128646"><span style="font-size:130%;"><strong>Violência «com sentido» e violência «gratuita»</strong></span></a><br /></div><div align="center"></div><div align="center"><br /></div><div align="center"></div><div align="center"></div><div align="center"></div><div align="center"></div><div align="right"><em>«O direito do mais forte é a mais forte injustiça»</em><br /><strong>Marie von Ebner-Eschenbach</strong></div><span style="font-size:85%;"></span><br /><div align="center"><span style="font-size:130%;"></span></div><div align="justify"><br />Ainda não foi há muito tempo que lemos, na obra mestra da criminologia alemã (Ernst Seeljg, <em>Lehrbuch der Kriminologie</em>, 2ª Ed. Nürenberg, Düsseldorf, 1951), o seguinte: </div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><em>Nas cidades europeias, pelo contrário, quase não se dão assaltos à mão armada a casas de comércio e bancos, enquanto que, na América, essa maneira de agir se tornou no modo mais generalizado de acção dos bandos dos gangsters (o Hold-up). Um outro método dos gangsters, disseminado na América, é o rapto de pessoas com vista ao resgate (o Kidnapping), que veio a transformar-se quase num novo desporto, principalmente depois do rapto e assassínio do bebé do grande aviador Lindbergh, o primeiro a atravessar sozinho o Atlântico Norte (1932).</em> </div><div align="justify"></div><div align="justify"><br />Aquilo que então era quase inimaginável na Europa, é hoje em dia, na Alemanha, uma actividade diária, como o demonstram os assaltos a bancos e a tomada de reféns. Os autores desta nova violência são muitas vezes levados por motivos diferentes dos dos <em>kidnappers</em>; mas servem-se dos mesmos métodos. A nova violência apanhou-nos de surpresa e temos dificuldade de a compreender. Chegou aliada a uma brutalidade mais forte do que os delitos até agora usuais. Basta-nos contemplar a crónica dos últimos anos para verificarmos como as <em>inibições</em> de ferir outras pessoas ou até de matá-las decresceram constantemente. Observemos alguns números provenientes da República Federal da Alemanha. Desde 1967 que o crime de roubo cresceu mais de duzentos por cento, nos casos de assaltos a bancos e estações de correio e ainda a lojas. A Polícia teve de registar, entre 1972 e 1976, um recrudescimento de mais de sessenta por cento. Em 1976, na República Federal da Alemanha, foi cometido “um assalto de meia em meia hora”, num total de 19 466 roubos. Proporcionalmente, a maré de criminosos aumentava para o dobro do crescimento normal da população. Acções de terror fizeram cem mortos e feridos. Em média, anualmente, eram destruídas vinte e uma mil cabinas telefónicas. Só no ano de 1976 a Polícia registou, nos seus processos, dois mil casos em que pessoas foram feridas com armas de fogo. Num período de doze meses, lamentaram-se setenta e duas vítimas da fúria de disparos com armas de fogo. </div><div align="justify"><br />Estupefactas, as pessoas reagem contra a violência crescente: seiscentos milhões de marcos são todos os anos empregues na instalação de sistemas de alarme. O número daqueles que possuem armas de fogo, sem licença para isso, só muito dificilmente pode ser avaliado: situa-se no campo sombrio dos vinte e cinco a trinta milhões. Porém, o certo é que essas pessoas que adquiriram esses milhões de pistolas, revólveres ou espingardas, as compraram nalgum sítio. Há duas possibilidades de chegar a essas armas: pode comprar-se a arma no estrangeiro (como, segundo alguns cálculos, o fazem, por ano, cinco mil turistas e viajantes em negócios), ou adquirem-se no mercado negro. No caso da compra no mercado negro, fecha-se o círculo, porque é grande a possibilidade de que nele se tenha comprado uma arma roubada. Seja como for, o que se sabe é que em 1876 trocaram de donos 3145 armas de fogo roubadas. </div><div align="justify"><br />Ao mesmo tempo entra em acção um novo círculo diabólico: a arma, concebida para assustar, tem de ser experimentada. Vejamos um caso dos últimos tempos. Certa manhã, em Wetzlar, cidade com cerca de 37 000 habitantes junto do rio Lahn, o dirigente da companhia de electricidade local conduziu o seu carro para o parque de estacionamento, em frente do seu local de trabalho. Infelizmente, porém, não levou o carro para o local que lhe estava destinado, mas para um outro, reservado a um serralheiro da mesma companhia. O presumível atrevimento do director da companhia enraiveceu de tal modo o serralheiro que, no decorrer da discussão, este pegou na pistola que sempre trazia consigo, e feriu imediatamente o seu opositor, com quatro tiros mortais. </div><div align="justify"><br />A cerca de quinhentos quilómetros de Wetzlar, em Munique, deu-se um caso semelhante no dia 5 de Fevereiro de 1977. Por volta das dezanove horas e quinze, um empregado do comércio de 53 anos, Josef B., atravessou a estrada para Pelkoven (esquina da Rua Jakob), em Hagenbuch, no bairro de Moosach. Atravessou, segundo as regras, pela passadeira, e foi quase atingido pelo automóvel do mecânico de 29 anos, Rüdiger H.. Furioso, o peão desferiu um golpe, com um saco de plástico que levava na mão, no guarda-lamas do carro, fazendo-lhe uma pequena mossa. E continuou o seu caminho, sem se voltar para trás. O outro ouvira a pancada, parou, desceu e deu a volta ao automóvel. Quando viu que Josef B. se afastava, correu atrás dele e segurou-o pela manga do casaco, para o obrigar a explicar-se. Josef B. soltou-se-lhe das mãos, deu alguns passos atrás, tirou uma pistola da algibeira e disparou alguns tiros sobre o condutor do automóvel. Rüdiger H. ficou gravemente ferido e, alguns dias mais tarde, Josef B. foi preso pela Polícia. De um momento para o outro, nos dois casos descritos, vê-se que a arma que se destinava à defesa se transforma numa arma de ataque. </div><div align="justify"><br />Acontecimentos como estes provocam uma outra reacção altamente inquietante: mesmo até entre os que não estão envolvidos nasce, involuntariamente, o desejo de possuírem uma arma de fogo, quando chegam à conclusão de que outras pessoas transportam armas. Segue-se a ideia de que «também tenho de possuir uma arma, para poder defender-me de eventuais agressores». É por isso que se encontram constantemente passageiros de avião que procuram levar armas consigo para sua própria defesa. Só no aeroporto de Düsseldorf a Polícia surpreendeu, de Janeiro a Setembro de 1977, noventa e três homens e mulheres que transportavam, nas suas bagagens, armas letais. Em Hamburgo, no mesmo espaço de tempo, foram contados vinte e seis passageiros; em Colónia, dez; em Berlim, quatro e em Hannover, três. Ao todo, os passageiros procuraram levar consigo, num ano, cerca de vinte mil armas e objectos contundentes, como facas, machados, bengalas de ferro, e até explosivos; isto apenas em aeroportos da Alemanha Federal, antes do início da viagem. </div><div align="justify"><br />A necessidade de desmontar a violência, enquanto se encosta os outros à parede, provoca uma reacção contrária e faz com que a violência entre numa escalada. O voluntário ou involuntário desrespeito das leis demonstrado pelos assaltantes parece justificar a própria indiferença que os restantes cidadãos manifestam. Desconfia-se da protecção do Estado, e todos querem agir por conta própria. Isto é, para uma pessoa se defender do perigo, torna-se perigosa e coloca-se, assim, ainda mais em perigo. </div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128647"><strong><span style="font-size:130%;">De como as crianças e os jovens se vêem a si próprios</span></strong></a></div><div align="justify"><br />Na República Federal da Alemanha a revista juvenil <em>Bravo</em> inquiriu os seus leitores acerca do tema da violência. 120 000 jovens, rapazes e raparigas, responderam, no Outono de 1977, a um questionário cujas trinta perguntas foram examinadas por um computador. E aí se demonstrou quão forte é o impulso da juventude para a violência. À pergunta «Podeis imaginar ter de empregar a violência física contra outras pessoas?», só responderam com «não» 13,5 por cento de raparigas e 8 por cento de rapazes. Todos os outros confessaram exercer a violência de vez em quando, fosse por necessidade de defesa, fosse porque tivessem sido provocados por outros, por terem bebido, por não aceitarem a opinião política de outrem ou, simplesmente «porque sou agressivo» (foi assim que se confessaram 4 por cento de raparigas e quase 5 por cento de rapazes). Os jovens, assim o demonstra o inquérito, não dirigem a sua violência apenas contra os outros, mas até contra si próprios. Uma em cada duas raparigas já pensara uma ou mais vezes no suicídio: 4,3 por cento das raparigas já tinha tentado matar-se; 0,9 por cento das raparigas e 0,9 por cento dos rapazes já tinham cometido várias tentativas de suicídio. E de novo nos aparece o grupo etário, entre os 18 e os 20 anos, como especialmente ameaçado. 17,7 por cento das raparigas nessa idade confessaram já terem atentado contra a vida. </div><div align="justify"><br />Nesse questionário também se demonstra que os rapazes são mais predispostos a resolverem os seus problemas por intermédio da agressividade (55,3 por cento dos rapazes responderam nunca na vida terem pensado em suicídio; e é por isso que mais de metade dos rapazes reage com violência contra os outros que os provocam), enquanto as raparigas preferem fugir de casa. Isto também pode ser confirmado pelas estatísticas dos departamentos juvenis da República Federal. Todos os anos desaparecem, na Alemanha, vinte mil raparigas e dez mil rapazes. A maior parte deles são de novo apanhados, mas tentam também novamente fugir de casa. A maior parte das raparigas que foge de casa tem uma idade compreendida entre os 12 e os 18 anos. </div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc118128648"><strong><span style="font-size:130%;">Os erros da nossa sociedade</span></strong></a><strong><span style="font-size:130%;"> </span></strong></div><strong><span style="font-size:130%;"><div align="justify"><br /></span></strong></div>Evidentemente que é uma reacção completamente falsa responder a essa tendência unilateral com um cego fatalismo ou com medidas draconianas. Não só porque não se domina o seu desenvolvimento, mas também porque ultrapassa as origens do crescimento da criminalidade juvenil e os fenómenos da nova violência. <div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc102840957"><em><strong><span style="font-size:130%;">Já não falamos uns com os outros</span></strong></em></a><span style="font-size:130%;"> </span></div><div align="justify"><br />Tem de se enfrentar a nova violência com novos métodos e novas soluções. O que significa que devemos desistir dos princípios de vingança e de ameaça sobre os que atentam contra a lei, pensando, sim, em novos métodos para solucionar o problema. Para encontrá‑los, teremos de descobrir qual a evolução errada que se processa na nossa sociedade e como esta está na base da nova violência.</div><div align="justify"><br />A <em>Münchner Abendzeitung</em> informou, em Dezembro de 1977, num artigo de duas colunas, com o título «O silêncio das vítimas enfurece os malfeitores», o seguinte: </div><div align="justify"><br />Um caso horrendo de brutalidade e perversidade teve lugar no domingo à noite no centro de Munique. Quatro jovens arruaceiros assaltaram três rapazitos de quinze e dezasseis anos, atiraram-nos ao chão e esfaquearam-nos. As vítimas eram surdos-mudos. Os três rapazes voltavam de um passeio de domingo e dirigiam-se para o seu Lar nas proximidades da Praça Goethe. Pouco depois das vinte e duas horas, atravessaram o velho Jardim Botânico na Rua Elisa, quando, de súbito, surgiram “dos arbustos, quatro jovens vestidos à maneira dos rockers, que lhes cortaram o caminho e lhes dirigiram insultos.” Dado que os surdos-mudos não podiam obviamente compreendê-los, tentaram a fuga, mas foram depressa agarrados pelos díscolos. Presumivelmente os malfeitores interpretaram como cobardia o silêncio dos atacados, dado que os seus insultos começaram a ser cada vez mais contundentes, descambando finalmente em pancada. Quando os assaltados tentaram defender-se, brilharam as facas. E de facas em riste, os malfeitores atiraram-se às suas vítimas, ferindo um na mão, enquanto ao outro lhe cortaram a pele das costas, de alto a baixo. Foi devido a ter-se aproximado gente que os assaltantes interromperam a sua agressão. Desapareceram na escuridão. </div><div align="justify"><br />Embora a Polícia tenha iniciado imediatamente buscas, os malfeitores conseguiram fugir sem deixar rasto. O autor que escreveu este artigo enganou-se num ponto decisivo. Os malandros que atacaram os surdos-mudos não consideraram o seu mutismo como cobardia mas como agressividade. A essa presumível agressividade reagiram como lhes tinha sido inculcado: com violência! O caso dos surdos-mudos mostra-nos, com toda a clareza, quais as formas que a agressividade pode tomar. Porque quem não comunica também procede, aos olhos dos outros, em certas circunstâncias, com agressividade. Uma discussão que não podia ser resolvida pelos surdos-mudos de outra maneira que não fosse através do mutismo e de fuga, é muitas vezes resolvida pelos pais, todos os dias, perante os filhos, da mesmíssima maneira. Aqueles calam-se e afastam-se. As crianças sentem isso como um acto de agressividade, o que é compreensível porque também nós nos sentimos provocados quando, numa discussão factual, deparamos, de súbito, com o mutismo do nosso interlocutor. Quem tiver a intenção de discutir com alguém, espera compreensão e resposta. Se estas são negadas, cresce a agressividade.</div><div align="justify"><br />Os pais têm aparentemente bons motivos para provocar os filhos através da desatenção e da falta de diálogo. Têm de ir para o trabalho, têm de ganhar dinheiro, estão cansados. À pergunta: “Por que motivo têm de ir trabalhar”, aparece prontamente uma resposta muito lógica e natural: “O nosso filho deverá ter um dia uma vida muito melhor do que nós.” Mas, analisando com maior acuidade, isto é uma grande asneira: na medida em que os pais não dedicam aos filhos tempo para lhes prestar atenção, negam-lhes o caminho para um futuro feliz. E não importa que queiram suprir essa falta com meios materiais. O fenómeno de já não falarmos uns com os outros não se limita a pais e filhos. É um mal do nosso tempo e um pesado erro da nossa sociedade.</div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc102840958"><em><strong><span style="font-size:130%;">Já não nos ouvimos uns aos outros</span></strong></em></a></div><div align="justify"><br />De Mark Twain, conta-se a seguinte história verídica: o escritor e satírico americano chegou, certa vez, demasiado tarde a um jantar para o qual tinha sido convidado. Quando a dona da casa, distraída pela organização do banquete e pelo grupo de ilustres convidados, lhe deu as boas-vindas, Twain pediu desculpa pelo seu atraso com as seguintes palavras: “Tem de desculpar-me por ter chegado só agora, minha querida senhora, mas tive necessidade de matar a minha velha tia antes de vir.” E a dona da casa respondeu-lhe: “Claro que lhe perdoo, caro mestre, isso por vezes acontece.” Assim, superficialmente, a história pode provocar o riso. Mas, se pensarmos um pouco, podemos ser invadidos pelo medo. O que há cem anos Mark Twain quis tratar como uma graça tornou-se hoje numa triste verdade. Trocam-se argumentos sem, de facto, se entrar em contacto uns com os outros. Falamos, sem dúvida, mais do que outrora. Os meios técnicos de comunicação tornam possível as pessoas falarem umas com as outras, em quase todos os pontos do mundo. Com o auxílio de cabos submarinos e satélites transpõem-se os oceanos. No entanto, compreendemo-nos cada vez menos. </div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><a name="_Toc102840959"><em><strong><span style="font-size:130%;">Falar traz a cura do homem</span></strong></em></a></div><div align="justify"><br />Os nossos próximos conseguem ser muito mais do que um mero espelho de nós mesmos, da nossa alma. Permitem também a cura espiritual. Para explicar melhor, basta-nos apontar um exemplo muito simples. Um terapeuta que procure tratar um comportamento humano errado, não o faz que não seja através da fala. Fala em privado com o seu paciente e procura desenterrar as raízes dos seus problemas. Ou, então, vários pacientes tentam, entre si, auxiliar-se nas terapias de grupo, sob a orientação de um terapeuta. Possivelmente, embora cada homem saiba, enquanto adulto, o significado de uma conversa, a verdade é que não se deixa convencer por ela. Porque não falamos “directamente” do coração.</div><div align="justify"><br />Pelo contrário, há cada vez mais pessoas que sentem o desejo de se isolar, de viverem numa ilha deserta, para se sentirem felizes, sem os seus entes mais próximos. Estes sonhos de muitos milhares, se não milhões de pessoas, uma vez realizados, transformam-se numa pura desilusão. O isolamento, a solidão egoísta, não são uma finalidade digna de ser procurada pelo homem, mas sim um castigo. Os tribunais aplicam ainda hoje uma forma especial de castigo: o isolamento prisional. Ao delinquente, não só é negado o acesso ao trabalho, mas também o de conviver com outras pessoas. Aquilo que, por lei, é reconhecido em diversos países como um castigo draconiano, é o que, hoje em dia, já costumamos fazer em liberdade. Retiramo-nos para dentro de nós próprios, e privamo-nos, assim, da possibilidade de, em conversa com outras pessoas, nos libertarmos de um enorme peso sentimental. À pessoa madura é possível, mas só até um certo grau, substituir a falta de comunicação com as outras pessoas. Pode fazê-lo por meios especiais, dentro de uma profissão, ou através de um extraordinário envolvimento social.</div><div align="justify"><br />Nas crianças e nos jovens, tudo é diferente. Sentem a contradição entre o sentimento e a possibilidade de lhe dar expressão, e sentem-no com muito mais força. Evidentemente que, devido à sua experiência e ao convívio com outras pessoas, se conseguem adaptar uns aos outros. No entanto, o mal-estar perdura. As consequências estão à vista: desvios de comportamento, quer sejam o roer das unhas e “descuidos” na cama, gaguez, emagrecimento inexplicável, más digestões e enfermidades do estômago. Uma criança, entre cinco, na República Federal, pode ser incluída neste caso. Este panorama foi reconhecido por diversos psicólogos e atesta já graves desvios de comportamento. Uma criança, entre dez que frequentam a escola, tem dificuldade de contactos, é surpreendida em mentiras, ou em pequenos roubos. Completamente isentos de defeitos psíquicos, assim o calcularam os especialistas, só se encontram cinquenta por cento dos alunos da República Federal. Da impossibilidade de comunicar sentimentos podem, porém, nascer: a fúria súbita, a raiva, a agressividade – marcas infantis que apontam veementemente para um futuro desvio para a violência.</div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /><em><strong><span style="font-size:130%;">Os pais não ajudam as crianças a encontrar a sua identidade</span></strong></em></div><div align="justify"><br />No melhor dos casos, a busca da identidade não se opera sem sofrimento. Por exemplo, um rapaz de 15 anos quer “medir-se” com o pai. Mas, nessa idade, o rapaz é ainda muito fraco para entrar em disputas com o pai. O que, na verdade, sente, compele-o a um processo de construção de uma imagem inimiga, cujas piores características exagera. Para o rapaz, o pai já não é a autoridade, aquele sobre o qual não teve dúvidas durante os primeiros anos; agora é o inimigo. O super-homem do passado manifesta falhas que são alvo de crítica. Na realidade, pode suster-se essa evolução, na medida em que se fale abertamente, sobretudo com a criança em crescimento. Porém, como os pais não dedicam tempo suficiente à família, os erros inevitáveis crescem desmesuradamente, aumentando as possibilidades de a criança só ver erros no seu educador. Erros que já não conseguem ser corrigidos na imagem padrão. A isto junta-se ainda o facto de, para os crescidos, muito do que é reconhecido negativamente pelas crianças não ser considerado acção incorrecta. Quando os pais não têm tempo para a família, há motivações que são consideradas pertinentes pela sociedade que pode, inclusivamente, louvá-los.</div><div align="justify"><br />Analisemos dois casos extremos. Num deles, o pai de uma menina tem o tempo continuamente ocupado. Trabalha como guarda-livros de uma grande firma. Faz horas extraordinárias, só volta para casa quando a filha já dorme e, nos fins-de-semana, assiste a aulas de reciclagem, ou toma parte em conferências de negócios. Quando a criança vê o pai, o que acontece raramente e por acaso, fica logo de mau humor e ensonada. Mas o pai ganha muito dinheiro e, todos os anos, a família pode adquirir um automóvel novo. No outro caso, o pai de uma outra menina, também se demora no emprego. É pastor da Igreja Evangélica e encontra-se dia e noite ao dispor dos seus paroquianos. Nos fins-de-semana, lecciona cursos de Bíblia. Quando a criança consegue ver o pai fica de mau humor e ensonada. Mas o pastor sacrifica-se pelos outros. A nossa sociedade dá diferentes valores aos dois «sacrifícios». No primeiro dos casos, houve um certo desprezo pela família unicamente devido ao dinheiro. No outro caso, porém, o auto-sacrifício tem alto valor moral. É um sacrifício por outras pessoas à custa da própria família. Esse sacrifício é totalmente reconhecido pela sociedade. É um bom sacrifício.</div><div align="justify"><br />As crianças, porém, não vêem as coisas sob esse prisma. Nem sequer compreendem o que se passa na sua verdadeira dimensão; não percebem que, graças ao trabalho do pai, todos os anos podem viajar num automóvel novo, nem sequer apreciam o sacrifício do pastor, que deve ser-lhes dedicado a elas, crianças. As crianças vivem ambos os casos de «ausência» com infelicidade, independentemente da noção de que essa «ausência» tenha sido dedicada aos crentes, doentes, pobres, ou ao êxito na profissão. Assim se esclarece também a contradição entre a família “intacta” para o exterior (cujo chefe se encontra ao serviço dos outros e age perante o reconhecimento da sociedade) e a força destruidora que se cria nessa mesma família. </div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"></div><div align="justify"><br /></div><div align="justify"></div><div align="justify">Em resumo: com o desenvolvimento do consciente, a criança inicia a busca de um papel na vida. Essa procura da identificação é apoiada com conversas por parte da família; então os pais dedicam certa compreensão à criança, conseguindo, assim, ultrapassar os anos difíceis, sem muitas perturbações. Mas se as conversas forem substituídas por ameaças, dogmas e refreamentos de contacto, dificulta-se à criança a sua identificação tornando-a impossível. Entramos assim no caminho de uma melhor compreensão da nova violência, dando um passo decisivo: <em>um dos factores deflagradores da nova violência é a comprovação de que o portador dessa violência não conseguiu encontrar a sua identidade.</em></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-17705348338412543582007-05-19T11:11:00.000+01:002007-06-08T16:01:23.525+01:00Os Conquistadores<div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Era uma vez um vasto país governado por um General. </span></div><div align="justify"> </div><div align="justify"><span style="color:#000066;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;color:#000066;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#000066;"></span></div><div align="justify"><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Os habitantes acreditavam que o seu modo de vida era o melhor.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Tinham um exército muito forte e dispunham de canhões.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">De tempos a tempos, o General reunia o exército e atacava um país vizinho.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">“É para o bem deles,”dizia. “Para que possam ser como nós.”</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Os outros países resistiam, mas acabavam sempre por ser conquistados.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Com o tempo, o General acabou por dominar todos os países. Todos, excepto um…</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Tratava-se de um país tão pequeno que o General nunca se tinha dado ao incómodo de o invadir. Só que agora era o único que restava. Assim, o General e o seu exército puseram-se a caminho.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">O pequeno país surpreendeu o General.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Não tinha exército nem ofereceu resistência.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">As pessoas saudaram os soldados invasores como se fossem convidados bem-vindos.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">O General instalou-se na casa mais confortável do país e os soldados ficaram em casa dos habitantes.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Todas as manhãs, o General levava os soldados para a parada e, depois, escrevia cartas à mulher e ao filho.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Os soldados falavam com as pessoas, jogavam com elas, escutavam as suas histórias, cantavam as suas canções e riam-se das suas piadas.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">A comida era diferente da deles.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Viam-na a ser preparada e depois comiam-na. Era deliciosa.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Como não tinham mais nada que fazer, ajudavam as pessoas no seu trabalho.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Quando o General se apercebeu do que se estava a passar, ficou furioso.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Mandou os soldados para casa e substituiu-os por outros.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Mas os novos soldados comportaram-se como os outros o tinham feito.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">O General percebeu que não precisava de um grande exército.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Decidiu regressar a casa e deixar apenas alguns soldados a ocupar o país.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Logo que o General partiu, os soldados penduraram os uniformes e juntaram-se à população nas tarefas do quotidiano.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">O General regressou triunfante a casa, com os soldados a cantarem, como era hábito:</span></div><div align="center"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;"><em>Somos os conquistadores.</em></span></div><div align="center"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;"><em>Somos os conquistadores.</em></span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">O General estava contente por ter regressado, embora sentisse que algo mudara.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Os cozinhados cheiravam aos cozinhados do pequeno país.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">As pessoas jogavam os jogos do pequeno país.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Até algumas roupas eram iguais às roupas do pequeno país.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Sorriu e pensou: “Ah! Os despojos da guerra.”</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Nessa noite, quando foi deitar o filho, o menino pediu-lhe que cantasse para ele.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">O General cantou-lhe as únicas canções de que se lembrava.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">Eram as canções do pequeno país.</span></div><div align="justify"><br /><span style="font-family:trebuchet ms;color:#000066;">O pequeno país que ele conquistara.</span></div><div align="justify"><span style="font-family:Trebuchet MS;color:#000066;"></span></div><div align="right"><span style="font-family:Trebuchet MS;font-size:85%;color:#000066;">tradução e adaptação</span></div><div align="right"><span style="color:#000066;"></span></div><div align="justify"><span style="color:#000066;"></span></div><div align="right"><span style="font-family:verdana;font-size:85%;color:#000066;">David McKee<br /><em>The Conquerors</em><br />London, Anderson Press, 2004</span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-49324418195202592492007-05-19T11:06:00.000+01:002007-06-11T23:34:43.829+01:00A estrela de Erika<div align="center"><span style="font-size:130%;color:#330033;"><strong></strong></span></div><div align="center"><span style="font-size:130%;color:#330033;"><strong>A estrela de Erika</strong></span></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span></strong></div><div align="center"><strong><span style="font-size:130%;color:#330033;"></span></strong></div><div align="justify"><em><span style="color:#330033;">Nota da autora</span></em></div><div align="justify"><br /><em><span style="color:#330033;">Em 1995, cinquenta anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, encontrei a mulher de que fala esta história. O meu marido e eu estávamos sentados na borda de um passeio em Rothenburg, na Alemanha. Observávamos uns trabalhadores a limparem as ruínas do telhado da Câmara. Na noite anterior, um tornado tinha-se abatido sobre esta bonita aldeia medieval. Havia entulho um pouco por todo o lado. Um velho comerciante disse-nos que os estragos causados por este tornado se assemelhavam aos da última ofensiva dos Aliados durante a guerra. O comerciante entrou na sua loja e uma senhora, sentada perto de nós, apresentou-‑se como sendo Erika.<br />Perguntou-nos se tínhamos vindo fazer turismo naquela região. Quando lhe disse que vínhamos de Jerusalém, onde passáramos duas semanas a fazer pesquisas, confessou-nos, com um suspiro, que desejava muito lá ir mas que não tinha dinheiro para a viagem. Ao ver uma estrela de David pendurada ao seu pescoço, disse-lhe que, no regresso de Israel, tínhamos passado pelo campo de concentração de Mauthausen, na Áustria. Erika confessou-nos que, um dia, tinha tentado visitar o campo de Dachau, mas que não conseguira franquear a porta. </span></em></div><em><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Depois, contou-nos a sua história…</span></div><div align="justify"><span style="color:#330033;"></span></em></div><div align="justify"><em><span style="color:#330033;"></span></em></div><div align="justify"><em><span style="color:#330033;"></span></em></div><div align="center"><em><span style="font-family:webdings;color:#330033;">l l l</span></em></div><div align="center"><em><span style="font-family:Webdings;color:#330033;"></span></em></div><div align="center"><span style="color:#330033;"></span></div><div align="center"><em><span style="font-family:Webdings;color:#330033;"></span></em></div><div align="center"><em><span style="font-family:Webdings;color:#330033;"></span></em></div><div align="justify"><span style="color:#330033;">Entre 1933 e 1945, seis milhões de homens e mulheres do meu povo foram mortos. Muitos foram fuzilados. Muitos morreram de fome. Muitos foram incinerados nos fornos ou asfixiados nas câmaras de gás. Eu escapei.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Nasci em 1944.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Não sei o dia.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Não sei como me chamava ao nascer.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Não sei em que cidade nem em que país nasci.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Não sei se tive irmãos ou irmãs.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">O que sei é que, apenas com alguns meses, escapei ao Holocausto.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Imagino muitas vezes como seria a vida dos membros da minha família durante as últimas semanas que passámos juntos. Imagino o meu pai e a minha mãe, despojados de todos os seus bens, forçados a abandonar a sua casa, enviados para o gueto.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Talvez depois tenhamos sido expulsos do gueto. De certeza que os meus pais tinham pressa de deixar o bairro rodeado de arame farpado para onde tinham sido relegados, de escapar ao tifo, ao excesso de pessoas, à imundície e à fome. Mas teriam alguma ideia do local para onde estavam a ser enviados? Ter-lhes-iam dito que iam para um local mais acolhedor, onde teriam comida e trabalho? Terão chegado até eles os rumores sobre os campos da morte?</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Pergunto-me o que terão sentido quando os conduziram à estação, juntamente com centenas de outros judeus. Amontoados num vagão de transporte de animais. De pé, uns contra os outros, por falta de espaço. Terão entrado em pânico quando ouviram correr os ferrolhos?</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">De aldeia em aldeia, o comboio deve ter atravessado paisagens campestres estranhamente poupadas ao terror. Durante quantos dias ficámos naquele comboio? Quantas horas os meus pais passaram apertados um contra o outro?</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Imagino que a minha mãe devia ter-me bem encostada a ela para me proteger dos maus cheiros, dos gritos, do medo, que reinavam neste vagão lotado. Tinha de certeza compreendido que não íamos para um lugar seguro.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Pergunto-me onde estaria exactamente. No meio do vagão? O meu pai estaria junto dela? Ter-lhe-á dito que fosse corajosa? Terão falado do que iam fazer?</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Quando teriam tomado aquela decisão? Será que a minha mãe disse “Desculpa. Desculpa. Desculpa.”? Terá aberto a custo um caminho por entre aquela mole humana até à janela do vagão? Terá murmurado o meu nome ao embrulhar-me num cobertor bem quente? Terá coberto a minha cara de beijos e dito que me amava? Terá chorado? Rezado?</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Logo que o comboio abrandou, ao atravessar uma aldeia, a minha mãe deve ter espreitado pela fresta do vagão. Ajudada pelo meu pai, deve ter afastado o arame farpado que ocultava a abertura. Deve ter esticado os braços para a luz pálida do dia. A única coisa que sei com certeza foi o que aconteceu a seguir.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">A minha mãe atirou-me pela janela do comboio. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Atirou-me para cima de um pequeno quadrado de relva, junto de uma passagem de nível. Havia pessoas à espera de que o comboio passasse; viram-me cair do vagão de carga. No caminho que conduzia à morte, a minha mãe lançou-me à vida. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Alguém pegou em mim e levou-me para casa de uma mulher que se ocupou de mim. Que arriscou a vida por mim. Calculou a minha idade e atribuiu-me uma data de nascimento. Decidiu que me chamaria Erika. Deu-me um lar. Alimentou-me, vestiu-me, mandou-me à escola. Fez tudo por mim.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Casei aos vinte e um anos com um homem maravilhoso. Aliviou muita da tristeza que me assaltava com frequência, percebeu o meu desejo de pertencer a uma família. Tivemos três filhos, que hoje têm os seus filhos também. No rosto deles, reconheço o meu.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">Dizia-se outrora que o meu povo seria um dia tão numeroso como as estrelas do céu. Entre 1933 e 1945 caíram seis milhões de estrelas do céu. Cada uma delas corresponde a um membro do meu povo, cuja vida foi rasgada, cuja árvore genealógica foi arrancada.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">A minha árvore lançou raízes.</span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#330033;">A minha estrela ainda brilha.<br /><br /></span></div><div align="right"><br /><br /><span style="color:#330033;">Ruth Vander Zee; Roberto Innocenti<br /><em>L’étoile d’Erika</em><br />Toulouse, Milan Jeunesse, 2003</span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-37977894681210478162007-05-19T10:59:00.000+01:002007-06-20T20:29:06.031+01:00Ynari, a menina das cinco tranças - Ondjaki<div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#330033;"></span></div><div align="center"><span style="font-family:verdana;color:#330033;"></span></div><div align="justify"><span style="font-size:110;color:#330033;">Era uma vez uma menina que tinha cinco tranças lindas e se chamava Ynari. Ela gostava muito de passear perto da sua aldeia, ver o campo, ouvir os passarinhos, e sentar-se junto à margem do rio. </span></div><div align="justify"><span style="font-size:110;color:#330033;">Certa tarde, já o Sol se punha, Ynari ouviu um barulho. Não eram os peixes a saltar na água, não era o cágado que às vezes lhe fazia companhia, nem era um passarinho verde. Do capim alto saiu um homem muito pequenino com um sorriso muito grande. E embora ele não fosse do tamanho dos homens da aldeia de Ynari, ela não se assustou. </span></div><div align="justify"><span style="font-size:110;color:#330033;">O homem muito pequenino andava devagarinho e devagarinho se aproximou. </span></div><div align="justify"><span style="font-size:110;color:#330033;">— Olá! — cumprimentou.<br />— Olá — respondeu Ynari, receando que estivesse a falar alto demais para o tamanho do ouvido do homem muito pequenino.<br />— Desculpa, mas não sei o teu nome...<br />— Eu também não sei o meu nome... — desculpou-se o homem muito pequenino. — Mas chamam-me homem pequenino.<br />— Ah, está bem... — sorriu Ynari, enquanto se deitava na relva para ficar mais perto dele. — Eu tenho um nome só, quer dizer, uma só palavra: chamo-me Ynari.<br />— Ynari é um nome muito bonito — o homem sentou-se, ficando, assim, ainda mais pequeno.<br />— Posso fazer uma pergunta, homem muito pequenino?<br />— Podes fazer muitas perguntas.<br />— De onde vens?<br />— Venho da minha aldeia, que fica mais para cima, junto à nascente do rio.<br />— E lá, na tua aldeia, são todos pequeninos?<br />— Sim, somos todos mais pequenos que vocês, quer dizer, depende daquilo que entendemos por «pequeno». Não achas?<br />— Nunca tinha pensado nisso. Sempre pensei que uma coisa menor fosse uma coisa pequena...<br />— Pode não ser assim... Conheces a palavra «coração»?<br />— Conheço! — sorriu Ynari. — E não é só uma palavra, é isto que bate dentro de nós — e mostrou no seu peito onde o coração batia.<br />— Claro, e... O coração é pequeno para ti?<br />— É... e não é! Cabe tanta coisa lá dentro, o amor, os nossos amigos, a nossa família...<br />— Vês? — disse o homem mais pequeno que ela. — Às vezes uma coisa pequenina pode ser tão grande...<br />Os dois ficaram por um tempo calados, olhando o Sol que, do outro lado do rio, quase já tinha desaparecido. Assim, tão amarelada que estava a tarde, parecia que o Sol se ia afogar no rio e que os peixes, saltando, se queimavam nos seus raios avermelhados. Estiveram algum tempo assim, até que Ynari começou a brincar com as suas tranças: eram cinco tranças lindas, negras, compridas. A menina tinha olhos enormes que brilhavam muito e lábios carnudos muito bonitos.<br />— E tu, de onde vens? — perguntou o homem mais pequeno que Ynari.<br />— Eu venho daquela aldeia ali — apontou a menina na direcção das cubatas. — Vivo ali com a minha mãe, o meu pai, a minha avó e o meu povo.<br />— E quem te faz as tranças?<br />— Ninguém me faz estas tranças, porque elas não se desfazem... A minha avó diz que eu já nasci com as tranças e que um dia vou saber porquê. Eu gosto muito de brincar com as minhas tranças.<br />Levantaram-se, os dois, e caminharam junto ao rio. Agora o homem mais pequenino que Ynari já não lhe parecia tão pequenino, nem era estranho caminhar ao seu lado, embora ele fosse muito mais baixo do que a menina. De vez em quando, Ynari afastava os capins mais altos para que o homem mais pequeno pudesse caminhar livremente.<br />— Não tens medo dos bichos? — ela perguntou.<br />— Não. Os bichos não fazem mal nenhum... E mesmo a palavra «medo» pode ser vivida de várias maneiras.<br />— Mas quando estás perto de uma palanca negra gigante, tens medo, ou não?<br />— Sabes, Ynari, nunca estive muito perto de uma palanca negra gigante, embora já a tenha visto muitas vezes. E tu?<br />— Eu só a vejo de longe.<br />— A palanca negra gigante correu até perto de ti, fez-te mal?<br />— Não, nunca.<br />— Vês... não precisas de usar a palavra «medo».<br />— Também acho... — disse Ynari, dando a mão ao homem simplesmente pequeno.<br />Já era mesmo de noite. O céu não tinha nuvens nenhumas e estava cheio de estrelas para se contar. Os dois olharam o céu, que era escuro e brilhante ao mesmo tempo.<br />— Olha tantas estrelas...<br />— Estou a olhar — disse o homem simplesmente pequeno.<br />— Parece que dançam! — Ynari sorria de contente.<br />— É verdade... parece mesmo. Deve ser altura de usarmos a palavra «admiração», não achas? — sorriu o homem simplesmente pequeno.<br />— Acho, sim... Mas, olha, tenho que ir.<br />— Se tens que ir, tens que ir.<br />— Amanhã posso ver-te? — perguntou Ynari.<br />— Podes. Amanhã estarei ali, no mesmo sítio onde hoje nos encontrámos, junto ao rio, ao nascer do Sol.<br />— Amanhã podemos brincar com mais palavras?<br />— Claro. Podemos sempre brincar com as palavras...! — sorriu o homem que já não parecia tão pequenino.<br />— Bons sonhos — despediu-se Ynari, a correr. — Até amanhã.<br />— Até amanhã. Bons sonhos para ti também.<br />Ynari voltou a correr para a sua aldeia e decidiu não dizer a ninguém que tinha encontrado um homem que era pequenino mas que não era tão pequenino assim. Os caçadores tinham regressado, e o povo estava à volta da fogueira, contente com a caçada, de modo que ninguém lhe ia ralhar por chegar tarde. Ynari não gostava de ver os olongos mortos, embora a sua avó lhe tivesse explicado que os homens da sua aldeia só caçavam para comer.<br />Já deitada, a menina das cinco tranças sentiu que a avó se aproximava. A avó, que se mexia devagarinho porque era muito velhinha (e que também estava a ficar pequenininha embora não tão pequenininha como o homem que já não lhe parecia tão pequenino), veio deitar-se ao pé dela.<br />— Estás triste por causa dos olongos? — a avó perguntou.<br />— Não… Hoje o meu coração não ficou triste. Hoje… — e Ynari quase revelou o seu segredo.<br />— Hoje o quê? — perguntou a avó.<br />— Nada, avó… Não te posso contar ainda. Mas hoje foi um dia muito especial para mim — disse Ynari, deu um beijinho à avó e adormeceu.<br />No dia seguinte, muito cedo, mesmo antes de os galos cantarem, Ynari afastou-se da aldeia em direcção ao rio. Sentou-se e ouviu ruídos nos capins altos.<br />O homem que agora não lhe parecia tão pequeno apareceu com o mesmo sorriso nos lábios. Ela virou-se e cumprimentou:<br />— Bom dia, homem pequenino. Estou contente por te ver.<br />— Bom dia, menina das cinco tranças… Também o meu coração se alegrou quando te vi.<br />— Sabes, esta noite tive um sonho...<br />— Queres contar-me? — o homem pequeno sentou-se.<br />— Sonhei que eu e tu estávamos aqui sentados, em frente ao rio. E depois íamos para muito longe, acho que era a tua aldeia...<br />— E depois?<br />— Depois falávamos com muitos homens... E havia muitas palavras, e crianças... Vi muitas imagens, não me lembro de tudo.<br />— Se calhar devemos aqui usar a palavra «confusão»... É isso? — sorriu o homem menos pequenino...<br />— É mesmo — desatou a rir Ynari, a menina das cinco tranças.<br />— É uma grande confusão, sim...<br />Estavam assim os dois conversando sobre as palavras, a importância que as palavras tinham na vida de cada um, como as usavam, quando as usavam, com quem as usavam, e que significados tinham para o coração de cada um deles.<br />Ynari tentou explicar-lhe que havia palavras que para ela tinham mais do que um significado ou que lhe provocavam mais do que uma só alegria ou uma só tristeza. A menina disse que era difícil explicar às crianças da sua idade como gostava de palavras, e o que as palavras podiam fazer entre duas pessoas.<br />— Sempre gostei muito das palavras, mesmo daquelas que ainda não conheço, sabes? Existem palavras que estão no nosso coração e que nunca estiveram na nossa boca... Nunca sentiste isso? — perguntou finalmente Ynari, depois de tantas e tantas palavras ditas.<br />O homem mais ou menos pequeno escutou, atento a tudo. E ia começar a falar quando, do outro lado do rio, lá em cima de uma montanha, um grupo de homens com armas na mão começou a disparar contra outro grupo de homens com armas na mão.<br />Dali, daquele lado do rio, Ynari e o homem mais ou menos pequeno podiam ver tudo: aqueles homens não gostavam uns dos outros, e usavam as armas e as balas e as vidas uns dos outros para mostrar a sua raiva. Ynari estava assustada mas não se mexeu. O homem mais ou menos pequeno fechou um bocadinho os olhos, como fazem as pessoas que querem ver melhor coisas que estão a acontecer muito longe. Depois os tiros pararam e alguns homens correram em direcção a esta margem do rio. Ynari e o homem mais ou menos pequeno esconderam-se atrás dos capins altos e agacharam-se sem fazer barulho. Ynari tremia de medo e os seus olhos mostravam que estava assustada. Apertou com muita força a mão daquele homem pequeno, e ele disse-lhe baixinho:<br />— Não tenhas medo, Ynari...<br />Os homens com armas na mão vieram e puseram-se a dormir. O homem pequeno saiu dos capins altos, foi até muito perto deles. Mexia-se de um modo estranho e dizia, baixinho, umas tantas palavras. De repente, as armas dos homens que estavam a dormir transformaram-‑se em armas de barro.<br />Ynari espreitava nos capins altos e ficou com a boca toda aberta de espanto: era um homem pequeno e mágico!<br />O homem pequeno e mágico voltou devagarinho, pegou na mão de Ynari e caminharam para norte, sempre junto ao rio. Parecia que não tinham caminhado muito, mas a vegetação era toda diferente: as flores eram mais amareladas e as árvores mais altas.<br />Depois afastaram-se do rio e finalmente pararam junto de duas enormes árvores que, lá bem em cima, se tocavam.<br />— Para isto... podemos usar as palavras «portão de árvore»? — disse Ynari, enquanto olhava muito espantada, porque o «portão de árvore» era muito alto e bonito.<br />— Sim — respondeu o homem pequeno e mágico. — Podes usar essas palavras... Este é o portão de árvore onde começa a minha aldeia!<br />— Ah! — exclamou Ynari, cheia de curiosidade.<br />Entraram na aldeia. O que pisavam era um capim muito curto, muito verde, muito bom de se pisar porque era suave e estava sempre molhado. Quando olhou com mais cuidado, Ynari viu muitas árvores pequenas e percebeu que eram as casas dos homens pequenos. Eram, como ela mesma pensou, «as casas pequenas dos homens pequenos».<br />Muitos homens e mulheres (todos pequenos) espreitavam das suas árvores pequenas para olhar a menina que passava de mãos dadas com o homem pequeno e mágico.<br />— És tu o soba da aldeia? — Ynari perguntou.<br />— Não — sorriu o homem pequeno e mágico. — Nesta aldeia não temos soba.<br />Pararam diante de uma árvore muito antiga. O homem pequeno e mágico roçou o cotovelo no casco da árvore, e ouviram-se passinhos vindos de dentro. Ynari encolheu-se atrás do homem pequeno e mágico.<br />— Não tenhas medo, Ynari, quero-te apresentar duas pessoas muito especiais.<br />Era um velho muito velho com umas barbas muito grandes que quase chegavam ao chão. Caminhava com a ajuda de um pau torto, muito torto, que era como se fosse a sua bengala pequenina.<br />— Ynari: este é o velho muito velho que inventa as palavras — disse o homem pequeno e mágico.<br />O velho olhou para cima, para o rosto belo de Ynari, e sorriu. Bateu três vezes com a sua bengala pequenina no chão, que era a sua maneira de dizer que estava contente. Atrás dele apareceu outra velha muito velhinha, só que não tinha barbas, tinha uma trança branca muito comprida.<br />— Ynari: esta é a velha muito velha que destrói as palavras — disse o homem pequeno e mágico.<br />Logo depois, Ynari foi sendo apresentada a outros homens pequenos e mulheres pequenas. Enquanto se preparava uma festa pequenina por causa da chegada de Ynari, ela afastou-se com o homem pequeno e mágico e sentaram-se numa pedra alta, de onde se via toda a aldeia dos homens pequenos.<br />— Tu és um mágico, homem pequeno! — disse Ynari, espantada.<br />— Todos somos mágicos, Ynari. Aqui vais aprender que todos somos mágicos...<br />— Tu encantas as armas! As armas ficaram de barro — disse, espantada, Ynari. — Imagino quando eles agora forem disparar! — desatou a rir a menina das cinco tranças.<br />— Aquelas armas já não disparam. Agora podemos utilizar a palavra «inútil».<br />— O que é «inútil»? — quis saber Ynari.<br />— É aquilo que já não é útil, ou seja, que já não serve para nada.<br />— Ah... Diz-me uma coisa — Ynari olhou para o homem pequeno e mágico. — Todos somos mesmo mágicos?<br />— Sim, todos. Mas cada um tem que descobrir a sua magia.<br />— Eu queria descobrir a minha...<br />— Já não falta muito — disse o homem pequeno e mágico enquanto se levantava. — Já não falta muito, Ynari.<br />Entretanto a festa estava pronta.<br />Alguns homens pequenos com batuques pequenininhos começaram a tocar, outros dançavam, e muitos riam alegremente. Comeram, e Ynari teve que comer muitas vezes porque a comida era pequenina e ela estava com muita fome.<br />Depois a música parou.<br />Todos se sentaram e então Ynari, a menina das cinco tranças, viu que as pessoas pequenas se afastavam para deixar passar o velho muito velho que inventa as palavras e a velha muito velha que destrói as palavras.<br />Ynari sentou-se também e ficou a olhar.<br />No meio das pessoas havia uma enorme cabaça mas, mesmo assim, claro, era uma cabaça pequena, onde o velho muito velho e a velha muito velha deitavam ervas e diziam algumas palavras que ela nunca tinha ouvido nem conseguia sequer entendê-las para as repetir dentro de si.<br />Alguns homens pequenos aproximaram-se da velha muito velha que destrói as palavras, e cada um deles disse, no ouvido dela, uma palavra. A velha muito velha que destrói as palavras ouviu todas as palavras que os homens pequenos tinham trazido de fora da aldeia e decidiu que ia destruir algumas delas.<br />— São palavras que já não servem para nada, e têm que desaparecer... — disse a velha muito velha que destrói as palavras.<br />— São palavras «inúteis», é isso? — perguntou baixinho Ynari.<br />— Sim — confirmou o homem pequeno e mágico.<br />Depois, outro grupo de homens pequenos aproximou-se da roda de pessoas. O velho muito velho que inventa palavras pôs novas ervas na cabaça enorme mas pequena, disse também algumas palavras que Ynari não conseguia lembrar, mesmo assim, estando ainda as palavras tão frescas. Os homens pequenos punham a mão na cabaça enorme mas pequena, bebiam um pouco do líquido e aproximavam-se do velho muito velho que inventa palavras. Ele dizia uma palavra no ouvido de cada um e eles abandonavam a aldeia dos homens pequeninos para voltarem só no próximo cacimbo.<br />O homem pequeno e mágico foi chamado ao centro, e apresentou Ynari, a menina das cinco tranças.<br />Também Ynari foi chamada ao centro pela velha muito velha e pelo velho muito velho.<br />Ela foi devagarinho, caminhando envergonhada por estar tanta gente pequenina a olhar para ela.<br />— Agora és tu, Ynari — disse o homem pequeno e mágico<br />— Vou saber a minha magia? — perguntou Ynari.<br />O homem pequeno e mágico foi-se sentar, e Ynari, a menina das cinco tranças, ficou perto da cabaça enorme mas pequena, ouvindo a velha e o velho.<br />A velha muito velha que destrói as palavras falou assim:<br />— Cada pessoa sua magia; cada árvore sua raiz. O peixe só sabe nadar na água. O humbi-humbi preso, nas gaiolas, morre. Coisa de metal que sai metal e fumo, destruímos. Coisa de metal que vira semente e mata, destruímos. De noite, olhar e respeitar as estrelas. De dia, olhar e imitar os animais. Primeiro somos crianças, depois somos caçadores, depois temos crianças, depois ficamos a olhar as crianças. O cágado, sempre lento, é quem chega primeiro. Mais sabedoria tem a palanca negra gigante que só olha os homens de longe. Falei.<br />Ynari estava quietinha porque sabia que tinha de ouvir os mais-velhos sem nada dizer, mas olhava para o homem pequeno e mágico, porque pouco entendia aquelas palavras. Então, o velho muito velho que inventa as palavras falou assim:<br />— Cada rio suas águas; cada céu suas nuvens. Peixe dentro da água brinca, fora da água sofre. O humbi-humbi não conhece gaiola, só respeita nuvem. Coisa de metal que sai fumo, vira barro. Coisa de metal como semente, vira embondeiro. De noite, as estrelas olhar e uma só escolher. De dia, os animais caçar, seja, o alimento. Primeiro somos crianças e coração bate. Depois somos caçados por nosso coração. Depois descobrimos criança no coração. Depois a criança nos ensina outros caminhos do coração. O cágado também sabe perder. A palanca negra gigante também sabe fugir. Falei.<br />Então, juntos, os velhos deitaram ervas na cabaça enorme mas pequena. Olharam durante algum tempo para Ynari, e finalmente sorriram. Parecia que os dois velhos muito velhos falavam numa só voz:<br />— Não temos uma magia para te dar, tens que ser tu a descobrir a tua magia...Todas as cacimbas nos reunimos aqui, para destruir palavras que já não servem, e inventar algumas que vão servir para alguma coisa. Nós conhecemos a sombra da tua magia, mas só tu podes saber onde está a própria magia. Hoje queremos oferecer-te uma palavra e dar-te uma fórmula.<br />Ynari sorriu, estava contente, sentiu que todas aquelas palavras lhe eram muito «úteis».<br />— Leva contigo a palavra «permuta» — disseram-lhe.<br />— E a fórmula? — perguntou Ynari.<br />— A fórmula está dentro do teu coração.<br />Ynari estava muito contente ao sair da aldeia dos homens pequeninos, e não ficou triste com a despedida. O homem pequeno e mágico acompanhava-a, e voltaram muito depressa para junto do rio.<br />— Tenho que ir. Amanhã posso ver-te?<br />— Sim, claro que podes ver-me. Amanhã cá estarei.<br />— Bons sonhos para ti.<br />— Bons sonhos para ti também, menina das cinco tranças.<br />— Sabes uma coisa? — disse Ynari.<br />— O que é?<br />— Os sonhos ajudam-me a viver. Acho que eles também me vão ajudar a descobrir a minha magia…<br />Ynari foi a correr em direcção à sua aldeia.<br />Era o segundo dia a seguir à caçada e ninguém se zangou por ela ter chegado um pouco mais tarde.<br />Ynari foi-se deitar e teve um sonho com muitas palavras novas. Durante o sonho, um velho muito velho que explica o significado das palavras explicou--lhe o que queria dizer a palavra «permuta». Ela fez muitas perguntas a esse velho muito velho, e finalmente pensou que uma permuta era uma troca justa, em que alguém dá alguma coisa e também recebe algo, pode não ser do mesmo tamanho, ou da mesma cor, ou até do mesmo sabor... Mas Ynari entendeu que numa permuta é bom que duas pessoas, ou dois povos, fiquem contentes com o resultado dessa troca.<br />A menina das cinco tranças acordou muito cedo nesse dia.<br />Caminhou em direcção ao rio. As suas águas estavam calmas e Ynari pensou que se calhar os peixes ainda estavam a dormir, e talvez estivessem mesmo a sonhar.<br />Dos capins altos saiu, mais uma vez, o homem pequeno e mágico.<br />— Bom dia, homem pequeno e mágico — sorriu Ynari. — Estou contente por te ver!<br />— Bom dia, menina das cinco tranças. Eu também estou contente por te ver.<br />— Sabes, esta noite tive mais um sonho.<br />— E queres contar-me? — sentou-se o homem pequeno e mágico.<br />— Sonhei primeiro com um velho muito velho que explica o significado das palavras.<br />— Sim, sei quem é.<br />— E ele explicou-me o significado da palavra «permuta»... Mas eu também queria perguntar coisas sobre a palavra «guerra». Eu até sei como usam essa palavra, mas... para que serve a palavra «guerra»?<br />— Sabes, Ynari, embora eu não seja o velho muito velho que explica o significado das palavras, também eu tenho guardado no meu coração o significado de algumas palavras. E eu acho que a palavra «guerra» não serve para nada!<br />— E a palavra «explosão»?<br />— Eu acho que a palavra «explosão» só devia ser usada noutras situações, não em situações de guerra.<br />— Em que situações? — perguntou Ynari, enquanto olhava para o rio, porque os peixes já saltavam, já tinham acordado.<br />— Queres pensar comigo? — disse o homem pequeno e mágico.<br />— Começa tu — pediu Ynari.<br />— Então, eu acho que a palavra «explosão» podia ser mais utilizada entre as estrelas. Quando elas chocam, nós aqui no planeta Terra vemos uma coisa linda acontecer no céu...<br />— Ah!, que bonito — exclamou Ynari. — E uma «explosão de alegria», pode ser?<br />— Claro! — riu bem alto o homem pequeno e mágico. — E uma «explosão de cores»?<br />— Também... Também pode ser.<br />Estiveram um bom tempo em silêncio observando os peixes que nadavam e os pássaros que voavam. Realmente, quando se sabe ver as coisas simples da vida, descobre-se que o mundo é muito, muito bonito.<br />Ynari, a menina das cinco tranças, deu a mão ao homem pequeno e mágico, e foram caminhando junto ao rio, sempre para sul.<br />— Eu acho que já descobri a minha magia — disse a menina. — Podes vir comigo a cinco aldeias?<br />— Posso, se quiseres que eu vá contigo...<br />— Quero. Quero que vejas o que eu vou fazer e que depois vás à tua aldeia dar um recado meu à velha muito velha que destrói as palavras.<br />— Está bem — concordou o homem pequeno e mágico.<br />Ynari tinha aprendido com o homem pequeno que um sítio fica muito perto se quisermos que esse sítio esteja perto de nós.<br />Caminharam muito, mas não estavam cansados, e assim chegaram à primeira aldeia. Ynari bateu as palmas e o soba da aldeia veio falar com eles.<br />— Bom dia, mais-velho — Ynari cumprimentou. Mas o mais-velho não escutou porque era surdo. Então Ynari falou com ele por gestos e ele entendeu.<br />— Bom dia, menina — disse, por gestos, o mais-velho.<br />— Diz-me uma coisa: esta aldeia está em guerra?<br />— Sim, estamos em guerra com outra aldeia.<br />— E porquê?<br />— Porque nós não ouvimos os passarinhos, e eles ouvem! E nós também queremos ouvir os passarinhos, as quedas-d'água, a voz das pessoas — gesticulou o mais-velho.<br />— Já entendi, mas diz-me uma coisa...<br />— O que é? — perguntou o mais-velho.<br />— Se eu vos ensinar a ouvir os passarinhos, vocês deixam de estar em guerra?<br />— Sim. Nós só queremos saber usar a palavra «ouvir».<br />— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a palavra «ouvir».<br />Assim foi.<br />Preparou-se a festa, uma cabaça enorme foi posta ao lume, e toda a aldeia foi chamada para estar presente. Afinal, estava na aldeia uma menina com cinco tranças que ia ensinar a palavra «ouvir».<br />Ynari pediu que todos os habitantes da aldeia fizessem uma fila, trouxessem do rio um bocadinho de água na mão, e pusessem essa água na cabaça. A fogueira já estava acesa, já todos tinham posto o seu bocadinho de água na cabaça, quando Ynari disse algumas palavras, e depois ouviu-se a palavra «permuta». Com a catana do mais-velho ela cortou uma trança e deitou-a na enorme cabaça.<br />— Agora vão todos dormir... — pediu Ynari.<br />No dia seguinte, quando acordaram, ainda saía fumo da cabaça enorme, e em cima dela estavam muitos passarinhos de muitas cores a cantar. O mais-velho da aldeia desatou a dançar alegremente porque podia ouvir os passarinhos.<br />Ele quis saber onde estava a menina das cinco tranças, mas ela já não estava na aldeia, e já não tinha cinco tranças...<br />A menina das quatro tranças caminhava com o homem pequeno em direcção à segunda aldeia, que era a aldeia dos que não podiam dizer palavras. Também nesta aldeia se comunicava com gestos, e assim Ynari percebeu que estas pessoas não conseguiam falar. Mas Ynari tinha aprendido muitos gestos na aldeia anterior e não teve dificuldade em entender as pessoas.<br />Assim, mais uma vez por gestos, começou a falar:<br />— Chamo-me Ynari e venho ensinar o significado da palavra «falar»...<br />— Pois... — lamentou-se, por gestos, o mais-velho daquela aldeia. — Nós não conseguimos «falar», e por isso andamos em guerra com outra aldeia.<br />— Já entendi. Mas diz-me uma coisa...<br />— O que é? — perguntou o mais-velho.<br />— Se eu vos ensinar a «falar», vocês deixam de estar em guerra?<br />— Sim. Nós só queremos conseguir «falar».<br />— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a «falar».<br />— Entendi, mas diz-me uma coisa — gesticulou o mais-velho.<br />— O que é? — perguntou Ynari.<br />— Porque usas quatro tranças?<br />— Porque já só preciso de quatro tranças para usar a palavra «paz» — sorriu a menina das quatro tranças.<br />— Ah sim? Então mostra-nos como é.<br />— Hoje à noite mostro... — disse Ynari, enquanto piscava o olho ao homem pequeno que estava de mãos dadas com ela.<br />Assim foi.<br />Como já tinha acontecido na outra aldeia, todos trouxeram na mão um pouco de água do rio, todos estiveram junto à fogueira vendo Ynari murmurar as palavras estranhas, a palavra «permuta», e vendo também a sua quarta trança ser cortada. Depois Ynari pôs a trança dentro da enorme cabaça e todos foram dormir.<br />Pela manhã, o mais-velho daquela aldeia desatou aos gritos, imitando os passarinhos e os galos, muito contente porque já conseguia «falar».<br />Entretanto, a menina das três tranças e o homem pequeno já estavam a caminho de outra aldeia: a aldeia daqueles que não viam o rio. Estes podiam «falar» e até «ouvir» mas andavam na guerra porque queriam «ver». O mais-velho explicou a Ynari que era muito difícil estar na guerra sem ver nada, que morria muita gente por causa disso, e Ynari explicou-lhe que a guerra era isso mesmo, uma cegueira que só trazia mortes.<br />— Mas diz-me uma coisa...<br />— O que é? — perguntou o mais-velho.<br />— Se eu vos ensinar a «ver», vocês deixam de estar em guerra?<br />— Sim. Nós só queremos saber «ver».<br />— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a «ver».<br />— Entendi, mas diz-me uma coisa — gesticulou o mais-velho.<br />— O que é? — perguntou Ynari.<br />— Por que usas três tranças?<br />— Porque já só preciso de três tranças para usar a palavra «paz» — sorriu a menina.<br />— Ah sim? Então mostra-nos como é.<br />E mais uma vez se reuniu o povo, se acendeu a fogueira com muito cuidado, e Ynari murmurou as suas palavras estranhas, a palavra «permuta», e cortou a terceira trança. Depois todos se foram deitar.<br />No dia seguinte, o mais-velho da aldeia desatou aos gritos logo muito cedo, pois tinha sido acordado pelos primeiros raios de Sol. Todos alegres, foram olhar as coisas: o rio, os animais, a cor das flores e do céu, e já não tinham nenhuma razão para usar a palavra «guerra».<br />Ainda mais para sul a menina e o homem pequeno chegaram à aldeia dos que não sentiam o cheiro das flores. O mais-velho da aldeia explicou a Ynari que eles nunca tinham sentido o cheiro das coisas, da fruta, do peixe-seco, da fuba. E que estavam em guerra com outra aldeia para que pudessem saber o significado da palavra «cheirar».<br />— Mas diz-me uma coisa...<br />— O que é? — perguntou o mais-velho.<br />— Se eu vos ensinar a «cheirar», vocês deixam de estar em guerra?<br />— Sim. Nós só queremos saber «cheirar».<br />— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a «cheirar».<br />— Entendi, mas diz-me uma coisa — quis saber o mais-velho.<br />— O que é? — perguntou Ynari.<br />— Porque usas duas tranças?<br />— Porque já só preciso de duas tranças para usar a palavra «paz» — sorriu a menina.<br />— Ah sim? Então mostra-nos como é.<br />E foi o mesmo de sempre: cabaça enorme, fogueira, todos de água na mão, e Ynari murmurando as palavras estranhas, a palavra «permuta», e cortando mais uma trança.<br />No dia seguinte, todos naquela aldeia sentiram o cheiro das flores, muitos espirraram por causa do pó das asas das borboletas, outros brincaram deitados no chão cheirando a relva ou pequenas flores.<br />Ynari caminhava de mãos dadas com o homem pequeno e chegaram à quinta aldeia. Nesta aldeia não sentiam o sabor dos alimentos. Comiam de tudo, mas não conheciam a diferença entre o doce e o salgado, entre a manga e o maboque, entre a cana-de-açúcar e o peixe-seco. E só por isso andavam em guerra.<br />— Bom dia, mais-velho... — Ynari cumprimentou.<br />— Bom dia, menina de uma trança só — disse o mais-velho.<br />— Diz-me uma coisa: esta aldeia está em guerra?<br />— Sim, estamos em guerra com outra aldeia.<br />— E porquê?<br />— Porque nós não sabemos o significado da palavra «sabor»! E nós também queremos experimentar o «sabor» dos alimentos — explicou o mais-velho.<br />— Já entendi... Mas diz-me uma coisa...<br />— O que é? — perguntou o mais-velho.<br />— Se eu vos ensinar a sentir o «sabor», vocês deixam de estar em guerra?<br />— Sim. Nós só queremos saber usar a palavra «sabor».<br />— Muito bem. Então peço-te que juntes todo o teu povo hoje de noite, faças uma fogueira, arranjes uma cabaça. E eu vou ensinar-vos a palavra «sabor».<br />— Mas diz-me uma coisa — quis saber o mais-velho.<br />— O que é? — perguntou Ynari.<br />— Porque usas uma trança só?<br />— Porque já só preciso de uma trança para usar a palavra «paz» — sorriu a menina.<br />— Ah sim? Então mostra-nos como é.<br />Era uma aldeia muito grande, e também foi grande a fila que fizeram desde o rio até à cabaça enorme que estava em cima do fogo.<br />Ynari, a menina que já só tinha uma trança, murmurou as palavras estranhas, disse a palavra «permuta», e cortou a última trança que tinha. Depois falou para todos:<br />— Hoje usei a minha última trança. Amanhã de manhã, já podem comer as frutas e todos os alimentos sabendo o significado da palavra «sabor». Queria pedir-vos uma coisa: deixem de usar a palavra «guerra». Estive numa aldeia onde ninguém conhecia o significado da palavra «ver», e andavam em guerra com outra aldeia pensando que isso lhes ia ensinar a «ver». Mas não, a palavra «guerra» é parecida com a palavra «desaparecer», que é parecida com as palavras «deixar de viver». A partir de amanhã não procurem mais a palavra «guerra» porque ela vai deixar de existir... — piscou o olho ao homem pequeno.<br />Na manhã seguinte, muito cedo, as pessoas da aldeia foram comer, comeram muito, até de mais, porque queriam conhecer os vários significados da palavra «sabor», que era diferente se comessem peixe ou carne, banana ou mandioca.<br />Caminhavam de novo junto ao rio. Ynari, a menina sem tranças, e o homem pequeno voltaram a sentar-se no mesmo sítio de sempre, onde pela primeira vez se tinham encontrado.<br />— Sabes, homem pequeno — começou a falar Ynari. — Estou muito contente por ter descoberto a minha magia.<br />— Eu também estou contente por ti, Ynari.<br />— Agora quero pedir-te um favor.<br />— E qual é?<br />— Quando chegares à tua aldeia, vai falar com a velha muito velha que destrói as palavras e diz-lhe que eu mandei por ti uma palavra para ela destruir...<br />— Queres que ela destrua a palavra «guerra»?<br />— Sim. Explica-lhe o que vimos e o que ouvimos. Acho que é uma palavra que ela vai querer destruir.<br />— Está bem, vou dar o teu recado.<br />— Olha, tenho que ir. Na minha aldeia já devem estar preocupados. Desta vez demorámos mesmo muito tempo — sorriu a menina sem tranças.<br />— Está bem — concordou o homem pequeno.<br />— Acho que está na hora de usarmos a palavra «despedida»...<br />— Também acho.<br />— Sabes uma coisa, homem pequeno?<br />— O que é, Ynari?<br />— Para mim, a palavra «despedida» tem muito da palavra «encontro» e um bocadinho também da palavra «saudade».<br />— Explica-me — disse o homem pequeno enquanto se levantava.<br />— Não sei explicar muito bem... Mas, desde a primeira vez que te vi, eu senti uma coisa no meu coração...<br />— No teu coração?<br />— Sim, cá dentro, neste coração que é pequenino e que é tão grande... Eu vou contar-‑te um segredo.<br />— Conta.<br />— Mas não digas nada ao velho muito velho que inventa as palavras.<br />— Está bem — sorriu o homem pequeno.<br />— Eu acho que o meu coração também inventa palavras... No dia em que te vi, logo, logo, o meu coração inventou para nós a palavra «amizade».<br />— Eu sei, Ynari, eu também senti o mesmo.<br />— A sério?<br />— Sim — disse o homem pequeno. — Agora já sabes...<br />— Já sei o quê? — perguntou Ynari, a menina sem tranças.<br />— Assim como há um velho muito velho que inventa as palavras, também o nosso coração, quando precisa, sabe inventar palavras.<br />Ynari levantou-se. Já tinham usado a palavra «despedida», agora estavam a usar as palavras «olhar para o outro». Estiveram assim algum tempo.<br />— Quando é que nos voltamos a ver? — perguntou Ynari.<br />— Sempre que quisermos.<br />— Mas tu vives tão longe...<br />— Há muitas maneiras de se ir muito longe — disse o homem pequeno.<br />— Diz-me uma.<br />— Tu sabes...<br />— Achas que posso apanhar boleia do humbi-humbi?<br />— É uma ideia, ele é rápido.<br />— Mas eu sou tão pesada para ele...<br />— Mas não és pesada para o coração dele — sorriu o homem pequeno.<br />— Experimenta viajar no coração do humbi-humbi...<br />— Está bem, está bem — começou a correr Ynari. — Adeus, até qualquer dia!<br />— Adeus. Estamos juntos. Eu também sei viajar no coração do humbi-humbi.<br />— Eu sei — disse Ynari. — Agora já sei!<br />E, como dizem os mais-velhos, foi assim que aconteceu.<br /></span></div><div align="right"><br /><br /><span style="color:#330033;">Ondjaki<br /><em>Ynari. A menina das cinco tranças</em><br />Lisboa, Ed. Caminho, 2004</span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-69635308624304118022007-05-19T10:53:00.000+01:002007-05-29T00:17:51.075+01:00O pássaro e a guerra<div align="center"><span style="font-size:130%;color:#663366;">O pássaro e a guerra</span></div><br /><br /><br /><div align="center"><em><span style="color:#663366;">Nesta fábula dos Legas (do Zaire), um pássaro explica-nos como são absurdas as guerras dos homens.<br />Ai se os homens lhe dessem ouvidos…</span></em></div><div align="justify"><br /><br /><span style="color:#663366;">Kansisi é um pássaro branco com as asas negras e faz o ninho nos bananais em redor das aldeias. Testemunha da vida quotidiana das pessoas, sabe muita coisa sobre o comportamento dos homens. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;">Por isso, um dia, o seu amigo Monkonia, pássaro que frequenta pouco estes sítios, veio colocar-lhe um problema que há muito o apoquentava: </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;">— Porque é que os homens fazem a guerra? </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;">Kansisi deu uma gargalhada. Mas o amigo voltou a insistir: </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;">— Os homens dizem que são inteligentes e racionais; como é que não conseguem, então, estar de acordo? Não há ninguém que cometa tantas asneiras como eles. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;">— Por diversos motivos — respondeu Kansisi. — A avidez, a inveja, a vingança levam-nos a pegar em armas uns contra os outros. Guerreiam-se até por coisas banais, sem pensar nas consequências. Anda comigo, que eu mostro-te um exemplo concreto. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;">Voaram juntos até à aldeia vizinha. Monkonia poisou numa folha de bananeira, de onde podia observar tudo o que acontecia. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;">Era meio-dia, e o sol queimava. A aldeia estava deserta, parecia adormecida. Só uma criança pequena brincava no meio do pó, junto de alguns potes de barro ainda frescos, a secar ao sol antes de serem cozidos no forno. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;">Kansisi poisou num desses potes. A criança viu-o e correu para o espantar com um pau. O pássaro voou para mais longe e a criança acabou por bater no pote, que rolou no chão, com uma pequena mossa. Ao ouvir o barulho, a dona dos potes saiu cá para fora e deu duas valentes chapadas na criança. Ouvindo a criança a chorar, a mãe agarrou num ramo de árvore e deu com ele na mulher, que gritou por socorro. O marido dela saiu de casa com uma faca, e a mãe da criança fugiu chamando pelo marido. Ouvindo esta barulheira toda, mais homens e mulheres saíram de casa gritando e brandindo bastões, sachos e facas. Voavam insultos e ameaças de todos os lados. Dez minutos mais tarde, a aldeia estava em pé de guerra: o clã da dona dos potes contra o clã da outra mulher. Ninguém fazia ideia do motivo que causara esta situação e nem queria saber nem pensar nas consequências do conflito. A briga durou o tempo suficiente para provocar danos irreparáveis; houve mesmo mortos e feridos. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;">Entretanto, Kansisi, regressando para junto do amigo, contemplava com satisfação o desenvolvimento da peleja. </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;">— Aí tens! — disse ao amigo. — É assim que nascem as guerras entre os homens. A conclusão podes tirá-la tu mesmo! </span></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;">Ela está bem expressa em dois provérbios dos Lega: </span></div><div align="justify"><br /><em><span style="color:#663366;">O pássaro Kansisi provoca a guerra, mas fica em paz pousado na sua folha. </span></em></div><div align="justify"><br /><span style="color:#663366;"><em>O estulto entra na rixa sem medir as causas nem os efeitos. </em><br /></span></div><div align="justify"><span style="color:#663366;"></span></div><div align="right"><span style="color:#663366;">Além-Mar<br />Abril 2004<br /></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-55636047177560677102007-05-19T10:51:00.000+01:002007-05-19T10:53:20.449+01:00As balas<span style="color:#336666;"></span><br /><div align="justify"><span style="color:#336666;"><span style="font-family:georgia;"><span style="font-family:lucida grande;font-size:130%;">AS BALAS</span><br /></span><br /></span><span style="font-family:verdana;color:#336666;">Dá o Outono as uvas e o vinho<br />Dos olivais o azeite nos é dado<br />Dá a cama e a mesa o verde pinho<br />As balas dão o sangue derramado<br /><br />Dá a chuva o Inverno criador<br />Às sementes dá sulcos o arado<br />No lar a lenha em chama dá calor<br />As balas dão o sangue derramado<br /><br />Dá a Primavera o campo colorido<br />Glória e coroa do mundo renovado<br />Aos corações dá amor renascido<br />As balas dão o sangue derramado<br /><br />Dá o sol as searas pelo Verão<br />O fermento ao trigo amassado<br />No esbraseado forno dá o pão<br />As balas dão o sangue derramado<br /><br />Dá cada dia ao homem novo alento<br />De conquistar o bem que lhe é negado<br />Dá a conquista um puro sentimento<br />As balas dão o sangue derramado<br /><br />Que as balas só dão sangue derramado<br />Só roubo e fome e sangue derramado<br />Só ruína e peste e sangue derramado<br />Só crime e morte e sangue derramado.<br /><br /></span></div><span style="font-family:verdana;"><div align="right"><br /><span style="color:#336666;">Manuel da Fonseca<br /><br /></span><span style="font-size:85%;color:#336666;">José Fanha (org.)<br />DE PALAVRA EM PUNHO<br />Porto, Campo das Letras, 2004</span></span></div>Unknownnoreply@blogger.comtag:blogger.com,1999:blog-1204446923802751147.post-33725639536879155682007-05-19T10:47:00.000+01:002007-06-08T08:46:18.180+01:00Enquanto<div align="justify"><span style="font-size:130%;"><br /><span style="color:#990000;">ENQUANTO</span></span><br /><br /><br /><span style="color:#990000;">Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio<br /><br />e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé<br /><br />para ver como é;<br /><br />enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas<br /><br />e correr pelos interstícios das pedras,<br /><br />pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;<br /><br />enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,<br /><br />órfãs de pais e de mães,<br /><br />andarem acossadas pelas ruas<br /><br />como matilhas de cães;<br /><br />enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto<br /><br />com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,<br /><br />num silêncio de espanto<br /><br />rasgado pelo grito da sereia estridente;<br /><br />enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio<br /><br />cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas<br /><br />amassando na mesma lama de extermínio<br /><br />os ossos dos homens e as traves das suas casas;<br /><br />enquanto tudo isto acontecer, e o mais que se não diz por ser verdade, enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,<br /><br />o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade:<br /><br />ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA.<br /><br /></span></div><div align="right"><br /><span style="color:#990000;">António Gedeão<br /><em>Obra Poética</em><br />Lisboa, Ed. João Sá Couto, 2001</span></div>Unknownnoreply@blogger.com